MANUSCRITOS VI

Uma grande aventura

“Uma aventura se caracteriza todas as vezes que deixamos o mundo onde vivemos para nos arriscarmos em universos desconhecidos. Abrimos mão da segurança e do conforto habitual em troca de inusitadas experiências que podem nos levar aonde nunca estivemos. Aventurar-se é ir além de si mesmo. Haverá desconfortos e perigos. Não se vive uma aventura sem assumir riscos. No entanto, ninguém consegue caminhar sem sair do lugar. Não existe vida sem aventuras”, explicou Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de ensinar a filosofia ancestral do seu povo através de histórias e canções.

Falávamos também sobre a importância e os limites dos cerimoniais mágicos, assim denominados por nos conduzir à estados alterados de consciência, permitindo alcançar entendimentos até então não perceptíveis e despertar sentimentos adormecidos. “Magia é transformação. Expandir o entendimento da verdade e ampliar a capacidade de amar são as mais poderosas de todas as magias. Se o cerimonial não trouxer uma transformação intrínseca, foi apenas um ritual de comunhão, muito importante pelo bem-estar que provoca. No entanto, não alcançou o seu aspecto evolutivo. Você continuou no mesmo lugar que estava, sem se aventurar a ir onde nunca esteve dentro de si mesmo”, esclareceu o xamã enquanto baforava o seu indefectível cachimbo com fornilho de pedra vermelha. Essa conversa ocorrera havia muito tempo.

Lembrei dela quando o Nicolau, um monge da OEMM – Ordem Esotérica dos Monges da Montanha –, me convidou a acompanhá-lo em uma viagem. Ele era fascinado pela cultura do Antigo Egito, as teorias sobre os exilados de Capela, os inexplicáveis avanços em diversos campos das ciências, assim como pelos conhecimentos místicos desenvolvidos por um povo com características bem marcantes. Uma cultura à frente do seu tempo, que desapareceu da forma como surgiu, vertical e misteriosamente. Peças e monumentos deixados como legados, são como rastros para as civilizações modernas seguirem, caso algum dia queiram entender uma sociedade sem qualquer paradigma na História. Desde então, muitas teses foram desenvolvidas, todas incríveis, nenhuma definitiva.

Embora tivesse lido alguns livros sobre o assunto e assistido a várias palestras na Ordem a respeito do tema, confesso que nunca me empolguei em fazer uma viagem para conhecer, in loco, as famosas Pirâmides de Gizé, cujas construções têm mais de quarenta séculos. A animação de Nicolau foi determinante. Ele era um ótimo amigo e tínhamos uma convivência alegre e agradável. Isto era um excelente motivo para fazer o passeio. Seria bem-vindo todo o conhecimento agregado à viagem.

Chegamos ao Cairo em um momento inoportuno. Manifestações em prol de mudanças sociais e políticas tornavam a cidade tensa e insegura. Como ficaríamos poucos dias, Nicolau havia contratado um guia local para que pudéssemos aproveitar melhor o tempo disponível. Foi uma decisão acertada que, em verdade, tinha conexão com um desejo inconfessável de Nicolau: passar a noite dentro da Pirâmide de Quéops, a maior delas, algo proibido pelas leis egípcias. Ele pensava em sentir as vibrações e energias ancestrais daquele povo fantástico, onde acreditava estarem ancoradas. Para o meu amigo, seria uma aventura e um cerimonial mágico. Sem nada me contar, havia meses, o Nicolau articulava junto às autoridades e funcionários consulares a obtenção de tamanha permissão. O guia turístico funcionava também como uma espécie de intermediário desses contatos e conexões. Soube de todos esses detalhes apenas no dia marcado para visitarmos os monumentos. Quando Nicolau me revelou os seus planos, não acreditei em um primeiro momento. Ainda que pese as fantásticas teorias sobre as pirâmides, no mínimo, era bizarra a ideia de dormir em um mausoléu, mormente por se tratar de território sagrado, embora já vilipendiado, para aquele povo ancestral. Penso que não devemos nos comportar de maneira negligente em solo santo, sem os devidos preceitos e autorizações. Eu não me referia às autoridades contemporâneas, mas às que não mais estavam de corpo presente. Não se tratava de medo, mas do mais puro e indispensável respeito. Há que se compreender os limites. Combinamos que eu aguardaria do lado de fora, deitado sobre as areias do deserto, observando as estrelas.

Ao chegar nas pirâmides, não senti nenhuma vibração ancorada, algo que me surpreendeu, pois, é comum aos espaços físicos guardados por outras esferas existenciais. Toda a energia ancestral tinha se dissipado, possivelmente havia tempos, em decorrência da mistura dos anseios mundanos movidos por ganância e outros interesses vis. É inegável o poder destruidor de comportamentos densos para as atmosferas sutis. Ao menos para mim, não se tratava mais de um vórtex energético, ao contrário de vários outros que eu havia conhecido. As pirâmides eram tão e somente monumentais obras da engenharia antiga. Sozinho, adormeci encantado com a beleza da noite em um céu salpicado de múltiplos mundos.

Na manhã seguinte, acordei com os primeiros raios de sol acariciando o meu rosto. Sorri de alegria. Sem demora, acompanhado do guia, Nicolau retornou da pirâmide, onde tinham passado a noite. O meu amigo se declarou encantado com a experiência, disse ter muita coisa para me contar. Comigo mesmo, ponderei que eu talvez tivesse feito uma análise equivocada.

Como a agitação nas ruas do Cairo se avolumava, fomos aconselhados a partir imediatamente. Conseguimos um voo, no mesmo dia, para Portugal. A urgência fez com que nos sentássemos em poltronas distantes no avião. Somente em Lisboa encontramos a tranquilidade para conversar sobre o ocorrido dentro da pirâmide. Devidamente acomodados em uma das agradáveis mesas coletivas, típicas do Mercado da Ribeira, com duas taças de um bom tinto do Douro, Nicolau se adiantou para declarar: “Escalei uma oitava na minha régua evolutiva”, conforme o vocabulário que gostava de usar. “Foi engrandecedor, a maior aventura da minha vida”, acrescentou, acompanhado por um suspiro de satisfação. Eu pedi para que contasse sobre a experiência transformadora que o havia levado a outro nível de consciência, possibilitando o refinamento da percepção e da sensibilidade, fosse sobre si mesmo, fosse sobre a realidade de todas as coisas.

Nicolau explicou que se viu envolvido por fortes vibrações, nunca antes sentidas. Falei que aquilo era maravilhoso, mas quis entender o que havia sido modificado dentro dele que o levou a tamanho aprimoramento. Expliquei que para ter caráter evolutivo, a experiência precisa ser transformadora. Do contrário, será somente agradável, dolorosa, estranha ou divertida. Nada mais. Por não conseguir responder ao questionamento, o meu amigo se mostrou irritado. Porém, como era um sujeito polido, mudou de assunto. Mais tarde, quando tentei retomar a conversa, ele voltou a desviar o tema. Compreendi que ele não mais queria conversar sobre aquela noite nos arredores do Cairo. Entendi, também, que eu tinha a resposta para minha pergunta.

Naquela tarde, Nicolau recebeu um telefonema da esposa. O seu irmão tivera um problema de saúde. Estava internado. As sequelas tinham sido graves e os médicos relataram que a sua saúde passava por um momento delicado e indefinido. Uma lágrima escapou para confessar um sentimento contido. Dei-lhe um forte abraço e, caso ele se sentisse à vontade, eu estava disposto a ouvir sobre as dores que o assolavam. A importância do falar reside na possibilidade de escutar a própria alma.

Nicolau falou muito. Contou que o irmão e ele tiveram uma relação de amor e ódio desde a infância. Ora se ajudavam, ora boicotavam um ao outro, sem que soubesse explicar a razão. Confessou existir muita mágoa em seu coração. Deixei que falasse até esgotar as palavras. Ao final, expliquei que cabia a ele decidir quem venceria aquela batalha, se o amor ou o ódio.

Se fosse o ódio, era mais fácil; bastava virar as costas. Caso quisesse que o amor saísse vitorioso, teria de se conciliar com o irmão. Algo difícil, trabalhoso, porém, transformador. Conciliar é encontrar um ponto de equilíbrio e paz com outra pessoa; é se consagrar com alguém ao se tornar sagrado pelo amor jardinado. Para tanto, é preciso viver a aventura de sair do mundo seguro e confortável para percorrer veredas desconhecidas, assumir riscos de rejeição e reações ásperas. Sem viver o perigo do imponderável não ocorrerá qualquer avanço. Sem enfrentar a escuridão não se chega à Luz. Ele tinha uma grande aventura à sua espera.  

Nicolau argumentou que a conciliação com o irmão não dependia apenas dele próprio. Poderia não encontrar reciprocidade ou nem mesmo boa vontade. Concordei, era um raciocínio verdadeiro. Porém, ao assumir o risco da aventura de ir além de onde sempre estivera, talvez não encontrasse do outro lado o movimento mínimo necessário para qualquer avanço naquela relação, sem atingir um estágio básico de harmonia. Porém, desde que fosse vivida com intensidade, a aventura o levaria a lugares inimagináveis em territórios desconhecidos e sagrados. O Nicolau conheceria, ao menos, mais uma das faces ocultas da sua própria alma. Então, percepção e sensibilidade se aperfeiçoariam. Lembrei, ainda, que estivesse preparado, pois, o inusitado e o imprevisível estarão sempre presentes às aventuras da vida. Tristezas e alegrias são elementos comuns às experiências evolutivas.

Nicolau não disse palavra. Como as nossas férias tinham chegado ao fim, nos despedimos e cada um retornou à sua cidade.

Um ano depois, o dia ainda amanhecia, eu estava sentado à mesa perto da janela na cantina do mosteiro. Distraído com uma caneca de café, pensava nos monges que logo chegariam para mais um período de estudos. Ouvi o barulho do motor de um carro no estacionamento. Passados alguns minutos, vejo Nicolau entrando na cantina. Trocamos sorrisos sinceros de alegria. Ele encheu uma caneca com café e se sentou ao meu lado. Disse que precisava me contar sobre o seu irmão: “Não sei dizer se foi um encontro ou mais um dos muitos desencontros. As mágoas do meu irmão eram mais profundas do que as minhas. Embora o nosso desentendimento se agravasse à medida de cada reação impulsiva, desprovida de razão e virtudes, porém, movida por ressentimentos que se avolumavam, compreendi que tanto ele quanto eu tínhamos o olhar centrado somente nos erros do outro, como modo de negar, ou melhor, esconder de si mesmo os próprios equívocos e dificuldades evidentes. Em verdade, cada qual mentia para si mesmo e se empenhava em vencer uma hipotética e absurda batalha: quem era o mais forte? Não percebíamos que não há vencedor quando o ódio é instrumento de luta”.

Perguntei qual tinha sido o avanço, pois não havia entendido. Nicolau explicou: “Até ali, nenhum. Eu nem mesmo havia entendido isto que agora coloco em palavras”. Bebeu um gole de café e prosseguiu: “Algumas semanas depois, a esposa do meu irmão sofreu um acidente de carro e veio a falecer. Eles não tinham filhos. Como estava acamado, exigindo muitos cuidados, meu irmão ficou sem ter quem cuidasse dele”. Tornou a fazer uma pausa, os seus olhos ficaram marejados e continuou: “Confesso que fui tomado por dúvidas terríveis. A minha vida estava tranquila e organizada. Meus dias eram dedicados a fazer coisas prazerosas. Por que mudar uma rotina que é tão agradável? Por que deixar os prazeres da vida para se dedicar a alguém que nunca quis ficar bem comigo? Foi quando me lembrei da nossa conversa e me questionei: que prazeres são esses que o ódio será o vencedor? Que prazeres são esses que nos leva a não considerar o amor em nossas escolhas? Decidi que cuidaria do meu irmão”.

Perguntei como tinha sido a reação do irmão de Nicolau. O meu amigo contou: “A pior possível. Ele me rejeitou. Disse que tinha dinheiro para contratar uma enfermeira. Não precisava de mim. O seu orgulho era uma barreira intransponível a qualquer ajuda. Tivemos uma discussão horrorosa. Contudo, foi como uma daquelas tempestades que derrubam tudo, sem deixar nada de pé”. Preocupado, franzi as sobrancelhas. Nicolau riu e esclareceu: “Foi a melhor coisa que aconteceu. Como tínhamos nos destruído, um ao outro, fosse pela acidez das palavras, fosse pela crueldade das críticas, não havia sobrado um único tijolo na nossa relação. O ódio tinha vencido e a história que tínhamos em comum chegara ao fim”.

Esvaziou a caneca de café, se levantou para tornar a enchê-la. Pedi que também completasse a minha. Havia lágrimas em seus olhos. Depois, se sentou e prosseguiu a narrativa: “Naquele instante percebi que a raiz dos conflitos pessoais reside na seguinte questão: desejamos que as pessoas sejam compreensivas com as nossas limitações, entendam os problemas que temos e tenham paciência com as nossas dificuldades. Em contrapartida, exigimos a perfeição de todos. Não oferecemos nem uma pequena parte daquilo que cobramos. Então, a existência se torna insana. E indigna, pois não posso me tornar credor daquilo que nunca entreguei”.

“Entendi isso uma semana depois, quando já estava convencido de inexistir qualquer possibilidade de relacionamento. Voltei à casa do meu irmão para conversar com ele. A destruição total provocada pela discussão tempestuosa abria a possibilidade para a construção de uma nova relação, norteada por parâmetros nunca antes utilizados. Em nossa amizade faltavam virtudes como a tolerância, a paciência, a compaixão, a delicadeza, a humildade, entre várias outras. Naquele momento, podíamos retirar o ponto final da história, colocar uma vírgula e recomeçar novos capítulos. Dar uma chance para o amor será sempre uma escolha possível”.

“Estávamos cansados de sofrer. Este foi o ponto da virada. Não fazia sentido continuar dessa maneira. Muitas vezes, somente depois de uma overdose de sombras é que começamos a entender o poder de cura da luz. Já sabíamos aquilo que não mais nos servia, restava entender como faríamos diferente”. Bebericou o café e admitiu: “Tínhamos uma grande aventura pela frente”.

Nicolau contou que foi mais simples que imaginavam. Como moravam próximos, ninguém precisou mudar de casa. Ajudou ao irmão a contratar uma enfermeira, assim pôde seguir sem prejuízo no seu trabalho. Todos os dias, Nicolau preparava o jantar e compartilhavam a refeição. Mais importante, conversavam muito. Entenderam os erros e, mais importante, como o olhar enevoado pela mágoa escondia a verdade de um para o outro. Conseguiram ascender a um elevado patamar do amor, o perdão. O movimento físico é muito importante para a jardinagem da mente e do coração. Nicolau lembrou de outro aspecto: “É impressionante como pequeníssimas doses diárias de ódio, uma emoção que muitas vezes negamos como regente de nossas escolhas, roubam a alegria, a beleza e a leveza da vida”. Em seguida, ponderou. “Compreendi a importância de ficarmos atentos para entender os fundamentos das razões e dos sentimentos que nos movem. Mesmo quando tenho a melhor das razões, me perco da verdade se me deixo impulsionar por emoções densas. Permaneço incompleto”. 

Argumentei que tinha sido uma valiosa experiência evolutiva pelos diversos aspectos transformadores proporcionados. Em seguida, comentei: “Não é necessário viajar para os confins do mundo para se viver uma grande aventura. Não raro, a temos todos os dias dentro de nós”. 

Os monges começavam a chegar. Então, Nicolau encerrou a conversa com a lição derradeira: “Entender o amor é a grande aventura da humanidade”.

7 comments

Terumi outubro 9, 2020 at 9:40 pm

Gratidão! 🙏

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Fernando Cesar Machado outubro 10, 2020 at 8:06 am

Gratidão profunda e sem fim Yoskhaz, sem fim…

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Viviane Barbosa outubro 12, 2020 at 1:43 pm

Gratidão por esse texto tão cheio de verdades e amor.

Maravilhoso.

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Gleiza Jordânia outubro 12, 2020 at 6:32 pm

Gratidão! 😊🌟🌟🌟

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ADRIANO CAMARGO VIEIRA outubro 13, 2020 at 7:08 pm

Gratidão!

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Marcela Manente novembro 15, 2020 at 10:27 am

Bonito ver que serve para qualquer tipo de relacionamento seja amizade, amoroso, familiar… ótima reflexão e saio com uma percepção muito bonita e profunda ao terminar de ler o texto. Gratidão 💛✨🙏🏾

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Adélia Maria Milani dezembro 14, 2020 at 4:17 pm

Gratidão!!!🙏🙏🙏❤️

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