MANUSCRITOS VI

O som e o silêncio

Todos os anos, no mês de julho, existem animadas comemorações em homenagem a Santiago Apóstolo, em Compostela. As estreitas e sinuosas ruas da área histórica desta cidade medieval ficam lotadas de peregrinos e turistas. Além da missa solene na belíssima Catedral, há apresentações de bandas de música, grupos teatrais, exposições, desfiles, além de uma sensacional queima de fogos. Na igreja, a missa tem a participação do famoso fumeiro, um enorme defumador com ervas aromáticas que, pendurado no teto em pêndulo, é movimentado através de uma grossa corda por uma dúzia de monges, incensando a todos ali presentes. Desde sempre, tive uma intensa ligação com a cidade. No entanto, sempre evitei as datas festivas por ser um amante da quietude e do silêncio. Naquele ano, como vários integrantes da OEMM prestigiariam o evento, me animei a ir também. As ruas estavam animadas; bares e restaurantes, lotados. Naquela noite, depois de assistir alguns espetáculos, fomos jantar. Por todos os lados, as pessoas falavam, riam e se divertiam. Em determinado momento, os colegas que estavam à mesa comigo, começaram a comentar sobre um assunto bastante delicado para mim por me lembrar de uma situação, ocorrida havia anos, na qual fiz péssimas escolhas. Embora falassem de um fato distinto, e nem soubessem sobre as minhas decisões em passado tão distante, me senti julgado pelas críticas ácidas que faziam. Toda aquela falação e barulho começou a me incomodar. Aleguei cansaço, pedi licença e fui em busca de um pouco silêncio e quietude. Como eu não queria ir para o hotel aquela hora, ainda cedo para dormir, flanei pelas ruas apinhadas de gente. Todo o movimento de sons e cores que antes me animavam, naquele momento começaram a me incomodar. Andei e andei sem conseguir encontrar um canto sossegado. Quando me dei conta, estava diante da Catedral, fechada àquela hora. Pensei que seria o lugar adequado para me aquietar e refletir. Percorri o seu perímetro movido por uma absurda ideia até que achei uma pequena porta lateral que, embora fechada, não estava trancada. Entrei. Não havia ninguém. Lá dentro, iluminada apenas pelas velas acesas no altar, eu encontrara o silêncio que tanto ansiava naquele instante. Sentei-me em um dos bancos de madeira e aproveitei a maravilhosa sensação de bem-estar. Passado algum tempo, vindo do altar em minha direção, se aproximou um monge. Como estava com o capuz sobre a cabeça e a iluminação era bem precária, não me foi possível perceber a fisionomia nem qualquer traço do seu rosto. Tive certeza de que ele me pediria para sair dali. Ao contrário do eu que imaginara, o monge apenas se sentou ao meu lado e não disse palavra.

Como a sua presença não alterou a agradável sensação de bem-estar que eu sentia, fechei os olhos e me concentrei em oração. Algum tempo depois, a voz do monge me trouxe de volta: “Por que você teme o som?”, perguntou. Havia tanto firmeza quanto doçura no tom da sua fala. Refeito do susto inicial, respondi que não tinha medo do som, apenas preferia o silêncio. Ele disse: “O som é do mundo; o silêncio pertence a alma. Ambos são igualmente importantes. Um é o fundamento para o outro existir e mostrar o seu valor. Não se caminha somente com o silêncio, tampouco apenas com o som. Um nos faz navegar, o outro nos mostra a direção”.

Em seguida, acrescentou: “De nada adianta navegar à deriva; muito menos saber para onde ir sem jamais se lançar ao mar”.

Argumentei que amava a música; ouvia jazz e bossa nova todos os dias. Eram os meus ritmos de trabalho. O monge disse: “A música é um indispensável alimento para a alma, mas não falo disso. Faz-se necessário o som oriundo do movimento, das palavras ditas e ouvidas; é indispensável à vida. Ninguém vive toda amplitude possível sem interagir com o mundo; ninguém conhece a verdadeira profundidade longe do silencio da alma”. Sustentei que não havia inércia nem estagnação em meus dias. Eu buscava encontros, descobertas e conquistas; eu me movia. No mais, não que repudiasse o som, mas preferia o silêncio. O monge esclareceu: “A virtude está no equilíbrio. É preciso apreciar o convívio das pessoas tanto quanto se delicia com os momentos nos quais se está sozinho. Extroversão e introspecção. É importante se sentir à vontade no meio da multidão tanto quanto quando estamos sós. O mundo é o campo de provas, de onde vamos extrair a experiências para serem elaboradas no laboratório da alma. Daí surgem aprendizados e posteriores transmutações para novas vivências, outras maneiras de ser e caminhar. Silêncio e som, em trocas constantes e valiosas”.

Falei que conhecia a teoria através dos estudos taoístas, que nos ensina o valor dos movimentos Yin e Yang. O monge fez sim com cabeça coberta pelo capuz e me surpreendeu: “Em todo conhecimento existem múltiplas camadas de percepção a espera de revelação. São os mistérios sem fim do saber. Há muito dessa valiosa teoria que nunca lhe ocorreu”. Estranhei a sua fala, como se ele me conhecesse de algum lugar, mas nada comentei. Apenas disse não saber ao que ele se referia. O monge explicou: “Os que gostam do silêncio não são somente aqueles que amam estar consigo mesmo em rico diálogo de autoconhecimento. Entres os amantes do silêncio, há também os que gostam da quietude para se esconder do mundo, como quem se esconde no fundo de uma caverna existencial. Sentem-se desconfortáveis na convivência com outras pessoas. Alegam desinteresse por divergência de interesses ou citam comportamentos inconvenientes como motivos para se afastarem de todos. Entretanto, este comportamento revela uma ferida aberta que precisa de cura. Os relacionamentos de todos os tipos são importantes fontes das quais extrairemos o indispensável entendimento de quem ainda não somos. Tudo o que me incomoda sinaliza algo em mim que precisa de reconstrução. Afasto-me das pessoas para não ter que enfrentar as minhas dificuldades e me encontrar com as minhas imperfeições”. Fez uma pausa para ressaltar: “Alguns se recolhem para a quietude e silêncio de um templo; outros, para a escuridão da caverna a fim de não serem vistos nem lembrados. É preciso compreender os fundamentos de cada movimento”.

Em seguida acrescentou: “A voz do mundo é um indispensável elemento de diálogo para a minha alma. Aquela auxilia no despertar desta. Não que a opinião dos outros vá desenhar quem eu sou, mas me ajudará a entender muitos dos meus enganos. Nem tudo que o mundo pensa a meu respeito é verdadeiro; contudo, muito do que acredito ser também não passa de um equívoco que precisa de reformulação. Sem a voz do mundo o diálogo com a alma fica empobrecido”.

O monge era um bom professor: “Do mesmo modo, aqueles que se interessam apenas pelo mundo, dando as costas para a alma, precisam entender qual a razão do azedume de ficarem a sós diante de si mesmos. Precisam se perguntar o motivo pelo qual se escondem, negam ou fogem deles próprios. Dias movimentados e de intensa correria representar apenas conquistas superficiais. Sem ouvir a voz da alma, a vivência no mundo restará rasa”.

Virado para o altar, em posição que não me era permitido ver o seu rosto, aprofundou: “Existe som no silêncio. Sem ouvir o silêncio da alma, o som do mundo será vazio. Há silêncio no som. Sem silenciar o som do mundo, a voz da alma será inaudível”.

Como se falasse para si mesmo, filosofou: “É a harmonia entre o silêncio e o som que permite a criação da música; quando desalinhados, somente se ouvirá o barulho dos ruídos e a ameaça dos rugidos comuns ao tumulto e ao medo. O silêncio se justifica no encontro luminoso consigo mesmo, nunca pela ausência de escuta, virtudes ou amor. Do contrário, o silêncio se fará abandono e provocará agonia e desespero. No mesmo diapasão, o som não pode se caracterizar somente como distração e escape; não deve ser usado para lotar a mente com o intuito de ocupar o espaço das palavras que não queremos ouvir. Todos temos vergonha de algo que não gostamos em nós. Não raro, a verdade nos incomoda, uma das razões pelas quais temos tanta dificuldade de lidar com ela.  Contudo, precisamos nos encontrar com as nossas vergonhas, conversar com elas e nos perdoar. Esse encontro se inicia no mundo por intermédio das palavras que sangram; significa que algo dentro da gente precisa de cicatrização e cura. Todo sofrimento é uma prisão e um conflito. Ao irmos de encontro a ele, descobriremos a liberdade e a paz perdidas no canto escuro de um dia longínquo. Nos daremos conta da dignidade e da felicidade esquecidas. Somente então o amor será possível em toda a sua amplitude e profundidade. Pois, amar a dor como se ela fosse inevitável não é amor, porém, um triste gesto de autopiedade”. Em seguida, me lembrou: “Para tanto, não rejeite as suas vergonhas, tampouco as alimente; acolha-as com compaixão e humildade. Assim, farão parte da sua riqueza pelas transformações que lhe conduzirão. Uma conquista possível por causa do diálogo sincero e corajoso que se iniciou com os sons do mundo e se completou junto à alma na casa do silêncio”.

Eu me calei, pois precisava alocar aquelas ideias. O monge não me deu tempo para isto: “Por que a voz do mundo o incomoda tanto? O que há nela que você não quer ouvir? Se insistir neste comportamento, haverá um empobrecimento do silêncio que tanto o fascina. O melhor se perderá”. Teimei que ele estava enganado. Ponderei que o silêncio é uma importante fonte para chegarmos à verdade. O monge argumentou: “Há vários silêncios. Tem os que nos levam à verdade, mas existem aqueles que nos falam somente o que queremos ouvir. Com qual deles você tem dialogado?”.

Sem esperar pela resposta, ele prosseguiu: “Diferente não é com o som do mundo. Muitos nos trazem valiosos conhecimentos, outros são meras chateações. Podemos selecionar somente aqueles que sejam agradáveis ao nosso ego imaturo. Porém, existe a difícil escolha de não rejeitar de imediato as vozes que nos incomodam. De fato, muitas são apenas grosserias e não merecem maior atenção. Outras poucas, por causar desconforto ao ego, quando se está disposto a amadurecer, merecem ser levadas até o silêncio da alma, onde encontraremos novos filtros e lentes para um melhor entendimento da realidade”.

Questionei se era por isto que se dizia haver sabedoria no silêncio. O monge tornou a me surpreender: “Sim e não. Quando o silêncio vem da desnecessidade das palavras, se sustenta em um diálogo interno e intenso, no qual a voz da alma desmancha os absurdos do mundo e nos concede o entendimento que faltava para dissolver os sofrimentos; então, o silêncio sinaliza sabedoria. Porém, quando é motivado pelo medo de rejeição, o receio às críticas e o pavor de encarar a verdade desnuda, sem qualquer engano ou mentira, o silêncio significará somente um esconderijo sombrio. Nada mais”. 

Ele prosseguiu: “No entanto, existe o momento de se fazer respeitar, de colocar o amor em palavras, de dialogar com mundo em busca de entendimento. Há a necessidade de se conversar com as pessoas para aproximar corações e alinhar as diferenças nos trilhos da luz, nas quais a imprescindibilidade do som se manifestará em sabedoria pelas pontes que são construídas, nos permitindo atravessar os abismos da existência. Onde, do outro lado, ora encontramos as maravilhas do mundo; ora a nossa própria beleza. Todavia, quando as palavras forem apenas expressões de poder, interesses escusos e lamentos, haverá desperdício e mau uso da sua poderosa magia”. 

“Enfim, o silêncio pode se apresentar como uma escura caverna existencial ou um precioso templo iluminado; o som será ruído e rugido, mas pode representar interação e sinfonia. Tudo depende da maneira como irá usá-los”.

O monge se virou para mim, mas a penumbra da igreja me impedia de ver o seu rosto oculto pelo capuz, e perguntou: “Por qual motivo você está aqui, em busca de encontro ou na ânsia da fuga?”. Eu não sabia. Parecia que aquele estranho monge sabia sobre a minha alma mais do que eu a conhecia. Antes que eu falasse algo, ele acrescentou: “Se foi pela necessidade conversar consigo, fique. Caso tenha sido o desconforto da convivência, vá”. 

Ele me deixou pensar com calma. Passado alguns minutos, confessei que o silêncio me era útil e confortável. Útil pelos encontros e entendimentos que me permitira desde sempre; era onde eu equacionava as minhas muitas dúvidas, aprendia a fazer as perguntas certas e encontrar as portas que nunca tinha visto. Era também confortável por me manter protegido das críticas e julgamentos alheios, uma espécie de trincheira para onde eu fugia todas as vezes que me considerava incapaz de lidar com os inevitáveis conflitos do mundo. Eu tinha feito algumas escolhas ousadas durante a existência; entretanto havia outras das quais me envergonhava. Expliquei que adorava conviver com as pessoas, mas quando as conversas abordavam determinados assuntos, extremamente delicados para mim, mesmo que nenhuma referência fosse feita à minha vida, eu me sentia como se estivesse sendo julgado. Esta era a causa do meu desconforto e motivo de eu estar ali. Era a primeira vez que eu falava aquilo para mim mesmo. O monge disse: “O julgamento que o mundo faz sobre as suas escolhas não merece maior atenção. A vergonha implacável pela qual você se condenou possui toda a importância. Não espere que o mundo o absolva, provavelmente nunca acontecerá, pois as multidões precisam dos bandidos para se sentirem os mocinhos da história. No entanto, não demore a fazer as pazes consigo mesmo. Jamais abdique deste poder. A percepção sincera do erro, a sensibilidade para as adequadas reparações e o firme propósito de mudança bastam. O amor-próprio se manifesta na evolução pessoal em movimento. Para tanto, se faz necessário voltar ao mundo para experimentar aquele a quem você se tornou; existirão imprevistos para lhe mostrar as melhorias que faltam fazer. Então, retorne ao silêncio para as devidas elaborações e ajustes. Indo ou vindo, se mova com a alegria de quem já consegue enxergar as maravilhas ocultas da vida. Não há beleza maior do que viver as infinitas transmutações do ser”. 

O monge concluiu: “Vou lhe deixar só. Aproveite o momento para se alinhar com a sua verdade. Depois, vá. Há muita vida lá fora. Quando precisar, retorne; existe muita vida dentro de você”. Em seguida, se levantou e saiu. Fiquei na igreja por mais algum tempo, o suficiente para entender que o passado não pode ter o poder de aprisionar, mas deve conter a força necessária para ensinar e aprimorar. Vergonha seria eu me negar a avançar; a superação precisa dos equívocos do passado para mostrar todo o seu valor e encanto. Se eu já não era mesmo daqueles dias distantes, por qual razão eu continuava a me maltratar? 

Sorri para mim mesmo e assinei um tratado definitivo de paz com o meu passado. Assim, sem nunca deixar de visitar o silêncio, consegui me apaixonar de vez pelo mundo e por todos os seus sons. Foi um singelo, porém, importante passo em direção à liberdade. Voltei às ruas de Compostela com a noite ainda alta. Andei a esmo. Logo adiante, em um pequeno largo, um grupo de ciganos entoava lindas e animadas cantigas flamencas. Uma cigana me puxou para roda. Dancei até o dia amanhecer. 

Sobre o monge misterioso? Voltei várias vezes à Catedral de Santiago. De dia, assistia às missas com a participação do ilustre fumeiro que tanto me fascinava; a noite, me aventurava pela porta lateral, sempre fechada, nunca trancada. Eu me sentava em um dos bancos; às vezes ele aparecia para conversar, noutras não. Nunca vi o seu rosto. Ezequiel é o seu nome, nada mais sei sobre ele. 

7 comments

Fernando fevereiro 25, 2021 at 12:02 pm

Gratidão profunda e sem fim, sem fim…

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Terumi fevereiro 26, 2021 at 10:33 pm

Gratidão 🙏

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Andre Menezes fevereiro 27, 2021 at 11:02 pm

Gratidão, como sempre, nos momentos que mais preciso entro aqui e encontro seus textos . . .

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Lucas Maneiro fevereiro 28, 2021 at 3:23 pm

Obrigado pela inspiração e esclarecimentos! Texto altamente alinhado com as experiências do meu dia de hoje! Muito grato pela mensagem oportuna!

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SCHWEITZER março 20, 2021 at 1:23 pm

Olha os anjos aparecendo.

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Lene março 27, 2021 at 10:19 pm

Gratidão Yoskhaz, lhe acompanho já há alguns anos, em certos momentos me fiz ausente das suas histórias, por não conseguir aplicar à prática, mas sempre o tempo passa, tudo se encaixa e suas palavras fazem sentido.

Muito obrigada!

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Cristina Paulini maio 22, 2021 at 8:55 am

Perfeito, seus textos me enriquecem . Gratidão Yoskhaz

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