MANUSCRITOS VII

Saturação

O Rio de Janeiro é uma linda cidade espremida entre o mar e as montanhas. As complicações que a sua localização geográfica gera à engenharia viária, exigindo a construção de inúmeros túneis e viadutos para viabilizar o tráfego, se compensam pelas belezas naturais que essa mesma situação proporciona. Diferente não é com a vida. Problemas de difíceis soluções costumam nos compensar pela luz que oferecem, desde, é claro, que saibamos lidar com as armadilhas existentes para não nos deixar aprisionar nas sombras das incompreensões. Eu precisava pensar. Quando acontece de uma determinada ideia reinar a ponto de impendir a presença de mil outros pensamentos, significa que algo precisa de entendimento para que seja possível se libertar daquela emoção. Sim, existe uma relação simbiótica entre coração e mente. Sentimentos tem o poder de travar ou impulsionar ideias; por sua vez, pensamentos tem a capacidade de construir ou desmanchar emoções. O peso ou a leveza dos dias têm sua origem nessa relação intrínseca que temos de aprender a dominar. Do contrário, seguiremos escravos dos nossos desequilíbrios.

Canção Estrelada dizia que todos têm o seu lugar de poder, um local onde a conexão, seja com nossa essência, seja com esferas existenciais mais sutis, permite um maior intercâmbio de ideias e sentimentos, apurando a nossa percepção e sensibilidade. Quando acontece, temos a nítida sensação de que a engenharia cósmica abriu um túnel a permitir passagem por entre as montanhas que nos impediam de seguir adiante. Em casa, gosto de me sentar em uma antiga poltrona, como se fosse uma plataforma de embarque. Noutras vezes, sinto vontade de estar junto à natureza, me deixando envolver pelas maravilhosas vibrações telúricas. Então, subo a Pedra Bonita, um enorme platô de granito de frente para o mar. Tendo como som apenas o uivo dos ventos atlânticos, com vista para diversos bairros, é possível sentir a pulsação dessa complexa metrópole, não deixando dúvidas de que as cidades, como os demais seres, também possuem, além de identidade única, ciclos com fases próprias e características singulares. Em síntese, nascem, crescem, vivem, adoecem; muitas se curam, tornam-se soberanas, outras se deterioram. Todas envelhecem e depois morrem. Algumas renascem. De Tenochtitlán a Babilônia, de Constantinopla a Roma, são muitos os exemplos legados através da História.

Naquele dia, o agradável clima de abril permitia um céu azul, sem névoa e com uma temperatura amena. Perfeito para me recostar em uma pedra, me deixar maravilhar com a paisagem, serenar as emoções e dar asas aos pensamentos. Havia algo que eu precisava entender para retirar o peso que fazia as minhas costas vergarem. Após doze anos, o meu casamento estava a ponto de saturar. Sem demora, algo precisava de modificação. A qualquer momento eu poderia explodir ou implodir. A palavra saturação têm vários significados em diversos ramos das ciências. Existencialmente, quando um relacionamento leva alguém ao limite que consegue suportar, entra em ponto de saturação. Junto com a solução, se perde a beleza e o encanto; o convívio como fonte de alegrias fica contaminado e, como acontece com as cidades, termina por se destruir.

Eu precisava entender os equívocos existentes nas causas que levaram à saturação para desmontar os seus efeitos insalubres. Fechei os olhos e deixei os pensamentos voarem livres por um tempo que não sei precisar.

“O incômodo é apenas o sintoma, como se a alma, sufocada por respirar um ar viciado, pedisse para que a janela da vida fosse aberta. Quando um relacionamento se torna doloroso, ou traz sofrimento por tempo demasiado, significa que adoeceu. Como em qualquer doença, será preciso encontrar a cura. Do contrário, a enfermidade o destruirá. Os casos de saturação são aqueles que o indivíduo não suporta a incompreensão sobre os seus próprios sentimentos. A dor já não se mantém pela ação de outra pessoa, mas pela ausência de reação capaz de evitar que a doença termine. Acreditamos não ter o que fazer ou, por medo, imaginamos que o remédio seria mais desconfortável do que a enfermidade. Não é verdade”. Assim eu me sentia. Ela prosseguiu: “O sentido de existir da ferida é abrir espaço para a luz penetrar, elemento fundamental à cura da alma. Ali está enraizado o sofrimento. Quando não deixamos a luz entrar, a dor que veio nos mostrar o amor que desconhecíamos, perde o sentido primordial e se torna um aspecto avesso à evolução”. Era Cléo, a bela e esbelta bruxa morena, com os seus vestidos coloridos e esvoaçantes. Ela tinha a fama de fazer magia com o seu caldeirão de ideias.

Sentou-se ao meu lado sem pedir licença. E alertou: “Não adianta se valer de remédios para amenizar os sintomas. Nesses casos, o equilíbrio oferecido pela química é apenas um paliativo. Como tal, apesar da breve sensação de alívio, não impedirá que as raízes do sofrimento continuem a se espraiar dentro de você. Em solução de vontade, coragem e amor-próprio, será necessário ir à origem para erradicar aquilo que machuca. Definitivamente”. De modo doce, porém, com firmeza na voz, disse: “Todo sofrimento tem cura. Vá ao início, onde tudo começou. Entenda as permissões indevidas que você concedeu, em maior volume ou por mais tempo do que deveria. Desmonte-as uma a uma ao assumir a postura de quem passará a se respeitar. Resgate-se. Renasça em si mesmo. Senão, como uma cidade sem comando nem hierarquia, as sombras e as dores se tornarão a lei. Você irá se deteriorar até que sobrem apenas as ruínas abandonadas”.

Expliquei que não era assim tão fácil. Eu estava cansado de brigar, de tentar valer as minhas razões, de usar os argumentos mais óbvios, mas não adiantava. Falei que cedia para evitar conflitos. Acreditava não ter jeito. Eu apenas queria tornar a dor suportável para não sucumbir. Cléo franziu as sobrancelhas como quem discorda e esclareceu: “Sem dúvida, ceder significa saber ouvir, passo fundamental para entender o outro e, passo seguinte, permitir que ambos saiam de onde estão para se encontrarem onde nunca estiveram. Todos avançam”.

Fez uma breve pausa para acentuar a diferença: “No entanto, quando apenas um faz o movimento, estimula a estagnação do outro no comodismo de quem não quer sair do lugar. Na sequência, como vício ou repetição, nenhum dos dois avança. Em verdade, reúnem na mesma cela, em cumplicidade, a intransigência nociva de um com a tolerância perniciosa do outro”.

E prosseguiu: “Para um relacionamento saudável, se faz necessário ceder, de parte a parte. Momentos de desconforto têm as suas razões de existir, pelo movimento que impõem, mas a suavidade tem de predominar e prevalecer. Aprendemos uns com os outros; crescemos juntos, eis a face luminosa dos encontros. Devemos dizer sim para muitas coisas, mas não podemos dizer sim para tudo. Há de existir um limite. Sempre. Esta é fronteira do respeito. Dentro de cada pessoa existe um espaço sagrado que não pode restar violado. Quando se profana um templo, a luz se afasta”.

Tornou a fazer uma pausa antes de acrescentar: “Somos causa das nossas próprias dores emocionais. Todo sofrimento sinaliza uma ferida ainda não cicatrizada. Um aprendizado não concluído. Relacionamentos se fundamentam em permissões mútuas. Contudo, qualquer concessão necessita de limite. Senão, ocorrerá uma invasão para além do templo da individualidade, um solo santo que não pode ser pisado por outra pessoa. Onde não há limites, o respeito desaparece e o abuso se torna uma regra. Perde-se a identidade”.

Fez um alerta: “Contudo, jamais tente vestir a roupa da vítima. Será perda de tempo. Lembre, todas as permissões, mesmo as indevidas, fossem por consentimento contrariado, fossem pelo silêncio acovardado, foram autorizadas por você. Não esqueça, qualquer pessoa só tem sobre nós o poder que concedemos a ela. Se o relacionamento está desconfortável, significa que as permissões precisam de uma análise mais apurada e, se for o caso, canceladas”.

Franziu as sobrancelhas e comentou: “Mais grave, com o passar do tempo, as permissões se avolumam, fazendo com que a outra pessoa acredite se tratar de um direito adquirido. Não é nem nunca foi. Mas permitimos que pensasse assim. Na sequência dos dias, o sofrimento se intensificará até atingir o ponto de saturação. A vida se torna insuportável. Por não saber lidar com a situação, o indivíduo entorpece as incompreensões e anestesia as dores através do uso de remédios, álcool ou outras drogas. Trata-se de uma tentativa inútil de fuga. Pode-se fugir de muitas coisas, mas nunca de si mesmo. Você sempre se levará na bagagem”. Deu de ombros como se falasse o óbvio: “Você é a sua própria bagagem”.

Insisti que estava cansado de brigas, discussões e conflitos. Não cabia mais confusão em meus dias. Talvez o remédio fosse mais amargo do que a doença. A bruxa comentou: “Então, aprenda a conviver com a sua dor crescente. Escute música alta, frequente festas barulhentas, beba bastante, tome ansiolíticos para dormir, estimulantes para acordar, compre pílulas para a paz e a felicidade. Faça o impossível: tente esquecer quem você verdadeiramente é. Permita se destruir, um pouco a cada dia. Porquanto, não se lamente, a escolha foi sua”.

Cléo continuou a me surpreender: “Temos medo do abandono, receamos não pertencer a ninguém, tememos viver sozinhos. Em verdade, o medo retira o que temos de melhor e nos submete ao pior da existência. O maior dos abandonos é quando desistimos de ser quem somos, quem perde a si mesmo não terá mais nada a ganhar, viver sozinho não é um problema tão grave quanto viver vazio. O medo nos leva a fazer a pior das escolhas, ao deixar que escolham pela gente; então, nos furta a liberdade e a dignidade. Ausência de conflitos aparentes não significa paz”. Confessei que havia alguma razão nas suas palavras, mas não sabia como sair daquele labirinto. A bruxa explicou: “A porta de todos os labirintos existenciais se abrem para dentro da gente, nunca para fora. Encontre em si a coragem, pois, esta virtude lhe mostrará que você é maior do que o maior dos problemas. Você é. Todos somos”.

Falei que a solução podia trazer muitos amargores. Havia muitas questões e particularidades em jogo. Cléo esclareceu: “O remédio só é amargo quando nos recusamos a tomá-lo na dose correta. Há que se ter boa vontade e agir de modo consciente. Nenhuma briga é necessária”.

Dei uma risada. Só podia se tratar de uma brincadeira sem graça. É impossível conviver sem conflitos, afirmei. A bruxa meneou a cabeça e ponderou: “Desde que haja clareza na mente e serenidade no coração, ainda que a outra pessoa demonstre inconformismo e revolta, a incompreensão dela só o atingirá se você permitir. Ao entrar nesse absurdo jogo, fará como sempre fez, reagindo no mesmo tom, dando margem a mais barulho e confusão. Ou cederá de novo. Então, perderá mais uma parte de si mesmo até não mais se reconhecer”.

Ela argumentou: “Só os tolos brigam com os outros, pois querem a aceitação das suas verdades e razões. A pessoas maduras se esforçam para compreender quem são; fazem os ajustes internos, sempre necessários. Expressam a maneira como enxergam cada situação. Quando há compreensão da outra parte, seguem juntas. Caso contrário, jamais insistem, tampouco se detêm. Seguem consigo mesmas”. Movimentou as mãos em rodopio e sugeriu: “Cada pessoa decide a música que irá dançar. Escolha a sua. Ao respeitar a si próprio, não precisará ser desrespeitoso com ninguém. Ou o respeito não se completará”.

Olhou para o mar por alguns instantes, como se pedisse por inspiração para usar as palavras adequadas e prosseguiu: “Expresse as suas razões de maneira tranquila e pausada. Seja objetivo e claro; falar muito esgarça os argumentos, explicar pouco causa mal entendidos. Daí em diante, viva as mudanças que trarão cura à sua alma”.

Interrompi para dizer que não era fácil assim. Cléo foi objetiva: “Nem um pouco. O motivo é simples. Desejamos que a outra pessoa concorde conosco de imediato, que confesse os seus excessos, perdoe as nossas faltas, admita a verdade dos nossos argumentos e se encante com as mudanças sugeridas. Dificilmente acontecerá. Enquanto brigarmos para que ela aceite as nossas razões, nada mudará. Remédio errado”. Tornou a dar de ombros e disse: “Teimar em modificar os outros é a maior causa de todos os conflitos. Por ironia ou tragédia, também o motivo das nossas dores. Somos mais arrogantes do que percebemos, mais tolos do que gostaríamos. Quando não conseguimos adequar a outra pessoa ao nosso gosto, o mundo nos molda ao seu sabor. Ora senhor, ora escravo; os extremos se machucam. Eis a origem do paladar amargo que trazemos nos lábios e o preço irrisório pelo qual a nossa leveza foi vendida no mercado de quinquilharias. Tudo se inicia com uma queda de braço estúpida, inútil e desnecessária. Todos perdem”.

Irritado, eu quis saber como fazer. A bruxa não se alterou: “Repetirei até que aprenda. Após expor as suas ideias de modo sereno e preciso, viva a sua verdade intensamente. E, o mais importante, siga em frente”. Perguntei como fazer se a outra pessoa não quisesse me acompanhar. Cléo arqueou os lábios em leve sorriso sussurrou: “Siga mesmo assim. Isso fala sobre a sua dignidade, pois passará a se tratar com o respeito que merece; sobre a paz, por perder o medo de ser quem você é; e sobre a liberdade, ao viver a sua verdade em toda amplitude e profundidade. Entende que o remédio jamais será amargo quando ministrado com amor e sabedoria?”.

Ponderei que eu não gostava de rupturas. Cléo concordou: “Embora nem sempre sejam desejáveis, por vezes, são inevitáveis. Compreenda que, nesses casos, não haverá perdas. Nada perdemos quando resgatamos nós mesmos de volta à luz”.

A bruxa me propôs um exercício. Pediu que eu fechasse os olhos. Depois, que relembrasse todos os movimentos feitos, as concessões indevidas realizadas por algum receio ou medo, e como, pouco a pouco, eu fui me anulando, perdendo a minha identidade e individualidade, na procura por algo que, na verdade, mais me tirava do que acrescentava. Que eu aceitasse que situações assim não surgem de repente; o sofrimento se instala numa crescente ao longo do tempo, na proporção direta às concessões indevidas autorizadas, até sufocar a alma por completo. Faz-se importante fazer a exata leitura de quando começou. Ali reside a origem da dor que sentimos; assim como se esconde o aprendizado que precisamos. É o início do tratamento. Em seguida, que projetasse os meus movimentos, posturas e escolhas dali por diante. Entretanto, era fundamental que eu desmanchasse qualquer mágoa ou ressentimento, do contrário, a ferida não cicatrizaria. Ninguém avança sem perdoar. Que fosse sincero em admitir as enormes parcelas de responsabilidade que me cabiam; cada qual escolhe as amarguras e delícias que experimenta. Eu tinha me perdido de mim; somente eu poderia me reencontrar. Assim são os remédios para a alma. Que eu me preparasse e, quando me sentisse pronto, bastaria viver a cura.

Não sei quanto tempo demorei nessa aventura. Revisitei momentos sombrios, vielas esquecidas, camas desfeitas, sonhos abandonados. Foi difícil, mas eu sabia que em cada um daqueles lugares tinha ficado uma parte de quem eu era; existia um pedaço que havia sido trocado na tentativa de sentir, ainda que por instantes, uma vida que não era a minha. A saturação é o incômodo causado por um estilo de relacionamento que, em alguns casos precisa de desconstrução; em outros, de demolição. Todo sofrimento significa a genuína face que necessita de diferentes projetos de reconstrução. Toda dor é o grito de uma alma que anseia por regeneração. Não era caso de buscar o que tinha ficado para trás, mas momento de seguir na transformação que me cabia dali para frente. Borboletas não retornam ao casulo em busca da lagarta desaparecida. Difícil não chorar ao se encontrar com a verdade; impossível não sorrir ao reconquistá-la.

Ao mexer o seu caldeirão de ideias, a bruxa oferecera o elixir sagrado da cura que se oculta dentro de cada pessoa. Este poder é meu e seu; é de todos. Quando abri os olhos, Cléo rodopiava misturada às gaivotas no outro extremo do platô. As lágrimas me embaralharam a visão, ou talvez tenha sido a emoção; por instantes, o seu vestido esvoaçante fez crer que fossem asas abertas, capaz de alçá-la em voo sobre os mistérios e a cidade.

 

4 comments

Karyna fevereiro 2, 2022 at 10:43 pm

Seus textos aparecem como mágica como respostas as perguntas que faço nesse caminhar da vida. Hoje esse surgiu, do nada, caindo como uma luva e abrindo meu coração. Gratidão sempre Yoskhaz!

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Fernando fevereiro 3, 2022 at 2:46 am

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas 🌟
Sem fim…

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Leticia Fonseca fevereiro 4, 2022 at 9:42 pm

Não era caso de buscar o que tinha ficado para trás, mas momento de seguir na transformação que me cabia dali para frente. Borboletas não retornam ao casulo em busca da lagarta desaparecida. Difícil não chorar ao se encontrar com a verdade; impossível não sorrir ao reconquistá-la.

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Terumi fevereiro 8, 2022 at 2:29 pm

Gratidão 🙏

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