Eu circulava pelas ruas de uma pequena cidade. Pelas notícias de um jornal vendido por um garoto, estava no norte da Itália, nas décadas iniciais do Século XX. O jovem jornaleiro conversava com um amigo sobre um professor da escola que frequentava. Recebera indicação ao Prêmio Nobel de Literatura, ao mesmo tempo que os seus livros tinham sido incluídos no Index, a lista de leituras proibidas pela Igreja. Como se não bastasse, esse homem renunciara a todos os seus bens em favor da família. Vivia do parco salário em um quarto de pensão e se alimentava frugalmente. Nada tinha, tampouco queria; nada faltava. Era um homem bom e tranquilo. Querido e respeitado por todos que conviviam com ele, emanava uma espécie de felicidade serena, como costuma ser a genuína felicidade. Perguntei por esse professor. Os rapazes disseram que eu o encontraria no colégio ou na pensão que ficavam perto de onde estávamos. O encontrei em uma sala de aula. A turma já tinha se retirado; ele corrigia as provas de inglês. Era um homem magro, de corpo franzino. Usava óculos de grau e trajava um terno simples, aos costumes da época. Ele levantou a cabeça ao sentir a minha presença e sorriu. Um sorriso acolhedor, típico daquelas pessoas que vivem em paz consigo mesmo. Notei que em um canto da lousa havia a relação de aclamados imperadores e generais; noutro, alguns dos mais importantes filósofos e cientistas. Ao perceber o meu interesse, o professor comentou: “A História é narrada através das guerras, que estimularam invenções e impulsionaram ideias, nem sempre em prol da luz”. A invasão dos bárbaros, a Queda de Constantinopla, o Feudalismo, a Grande Guerra, o Colonialismo, os tristes capítulos do escravagismo, entre muitos outros conflitos, servem de marco à escalada da humanidade, com anotações feitas tendo por base a dor e o medo, a opressão e o terror desenhadas com tintas de sangue e sofrimento. Poucos são os casos em que dons, capacidades e talentos são usados para registrar as mudanças de rumo, como a prensa de Gutemberg, a Renascença ou o Iluminismo, momentos em que caminhamos das sombras à luz. Ainda não sabemos contar a nossa história. Estudamos mais as guerras napoleônicas do que o pensamento socrático. Não entendemos o melhor critério”. Argumentei que ele esquecera de listar a origem do cristianismo, uma guinada angular na transformação da humanidade, um período breve, porém, de incomensurável magnitude, capaz de mudar a contagem dos séculos na maneira como lidamos com o tempo. O professor balançou a cabeça em anuência para, em seguida, ponderar: “Sem dúvida. No entanto, ao invés de nos dedicarmos aos estudos dos inúmeros portais de transformação proporcionados pelas mensagens de amor, paz e dignidade legadas por aquele fantástico movimento luminoso, nos detemos em estudar mais detalhadamente os meandros das Cruzadas e da Inquisição, no desvio e obscurantismo provocado pela completa transgressão da luz pelas sombras, quando estas se fizeram passar por aquela, nos fazendo perder as passagens ocultas da evolução por entre as muralhas da incompreensão e dos sentimentos aviltados. A riqueza da sabedoria sagrada segue perdida na superfície da interpretação literal, de mera curiosidade ou forçada por obrigação que termina por furtar todo o poder do seu alcance”. Resignado, concluiu: “Sabemos mais sobre templários, inquisidores e fogueiras do que sobre pescadores, apóstolos e candeeiros”.
Mostrei-me interessado em saber mais. O professor prosseguiu: “Reis e generais são aclamados por terem subjugado outros povos aos seus interesses, desejos e ganância, sem importar o rastro de morte e sofrimento que deixaram como herança. São tratados como heróis. Não são poucos os monumentos erguidos para os homenagear. As multidões nada sabem sobre guerras e vitórias. Por se deixarem levar pelo brilho e glória dos resultados aparentes, permitem que suas escolhas e ações as desviem da estrada que conduz ao melhor destino”. Indaguei qual seria o melhor destino. Ele me respondeu de pronto: “A luz. Por jamais enferrujarem com o tempo, não estarem à mercê de ladrões nem sofrerem risco de perda em razão dos interesses impermanentes do mundo, as conquistas internas são eternas e consistentes. E extremamente valiosas por servirem como poderosas ferramentas de fluidez por entre os obstáculos existenciais. Nenhum deslocamento externo oferecerá a leveza da arte suave sem a força serena e o equilíbrio gerados pelos devidos movimentos intrínsecos”. Ajeitou os óculos sobre o nariz e continuou: “Ao contrário da crença comum, o verdadeiro guerreiro não gosta das batalhas. Refiro-me aquelas narradas pelos historiadores e aclamadas pelas multidões, nas quais para haver um vencedor precisa existir um perdedor. Ninguém é derrotado por ninguém. Em síntese e em verdade, cada indivíduo vence ou perde para si mesmo. Tudo mais é uma equivocada leitura da vida”. Fez uma pequena pausa para me permitir organizar as ideias nas prateleiras da mente antes de prosseguir: “O melhor dos combatentes luta sem ódio, raiva, mágoa ou ressentimento, sentimentos que nos fazem ansiar por vingança; embora nem sempre admitida, pautam subliminarmente as nossas escolhas. Isto não o torna melhor, porém, menor. A mente turva, o coração estreita; o guerreiro amiúda as suas possibilidades, estanca os próprios talentos e interrompe a caminhada. O bom combate é aquele travado no âmago do indivíduo, no qual transmutará os seus vícios comportamentais por virtudes. O orgulho será derrotado pela humildade, a simplicidade vencerá a vaidade. Em cada uma das suas escolhas, a irritação, o egoísmo e a intolerância perderão espaço para a serenidade, a compaixão e o perdão. A verdadeira guerra não é sobre medir forças ou impor aos outros a sua vontade, mas impedir que qualquer contrariedade de interesses ou diferença de olhares o arranque do seu eixo de luz. A verdade é pessoal, as decisões também. É preciso entender e respeitar isto. É uma questão de dignidade. Ninguém precisa nos acompanhar. O melhor guerreiro sabe que todas as vezes que reagir mal diante de algum contrafeito ou desgosto, a escuridão o envolverá. Mais uma vez perderá para si mesmo. Cada um é responsável pela luz que ilumina os próprios passos ou pelas sombras que o engana sobre a luta e a vida. Transferir a responsabilidade por quem somos ou lamentar pelo destino que nos abraça é erro comum aos fugitivos que não compreendem onde a verdadeira batalha acontece”.
Comentei que viver era muito complicado; entender as pessoas se mostrava uma tarefa difícil. O professou replicou: “Se mudássemos a nossa pauta diária, dedicando mais tempo ao esforço para melhor nos conhecermos ao invés de desperdiçarmos as horas no julgamento do comportamento alheio, aumentaríamos os níveis de compreensão, paciência, tolerância, humildade e compaixão em todos os nossos relacionamentos. Costumamos exigir a perfeição que não temos para oferecer; interpretamos a verdade sob o ponto de vista do universo singular que habitamos, a consciência, que, por possuir diferentes padrões de percepção e sensibilidade, sempre oferecerá uma leitura diversa, ora mais aperfeiçoada, ora mais limitada, a depender do interlocutor que se apresenta e das circunstâncias do momento vivido. Ainda denominamos de inimigo todos aqueles que nos contrariam os desejos ou nos atrapalham os objetivos, sem compreender que os empecilhos opostos não devem ser recebidos como duelos, mas como desafios. Nos duelos somos levados a guerrear com os outros; qualquer que seja o resultado, haverá sérias perdas. Nos desafios a batalha é interior; aceitamos fazer a viagem para além das fronteiras de quem somos e, ao encontrar dons esquecidos e descobrir capacidades desconhecidas, conquistamos novos talentos pessoais. Então, qualquer que seja o resultado, haverá valiosos ganhos. Ao nos tornarmos melhores, nunca mais seremos os mesmos. Transmutamos quem éramos por alguém mais aperfeiçoado e afeiçoado à luz. Assim, o verdadeiro guerreiro vence sem derrotar o inimigo”. Em seguida, tornou a ajeitar os óculos e disse: “Sem os benditos inimigos, que não se apresentam apenas como pessoas, mas surgem também em forma das mais diversas dificuldades e problemas, os movimentos internos permaneceriam adormecidos, retardando os deslocamentos através do mundo e da vida”.
Eu quis saber como seriam esses deslocamentos a que se referia. Ele explicou: “Os tolos se apavoram diante dos problemas, ignorantes brigam com as dificuldades e os covardes atacam as pessoas. Acreditam que seja possível avançar através dos devaneios, das artimanhas ou da brutalidade em suas diversas modalidades de coerção, seja emocional, financeira, moral ou social. Correm muito, guerreiam contra todos, se esgotam sem chegar a lugar nenhum. Brigam, sentem raiva, acumulam mágoas. Esgotam-se sem qualquer proveito. Mesmo quando vencem, nada de valioso conquistam. Deslocamo-nos através da luz ou permaneceremos atolados. Agregamos virtudes à bagagem ou perderemos o tesouro”. Pedi para que expandisse a ideia. O professor explicou: “A luz se manifesta por intermédio das virtudes aplicadas no dia a dia. Cada dificuldade é um convite ao aprendizado, cada aprendizado é uma oportunidade de aperfeiçoamento, cada aperfeiçoamento se traduz em equilíbrio e força de movimento que se manifestam em deslocamentos leves e suaves. Sem mágoas, conflitos ou preocupações”. Indaguei como isso seria possível. O escritor esclareceu: “Cada problema ou inimigo traz consigo o enigma da evolução. Ao compreender que não são muralhas, porém, pontes pelas quais atravessaremos os abismos das nossas próprias incompreensões, ocorre uma transformação fundamental: a consciência desperta para uma diferente realidade. Entrar em conflito não apenas nos irá desviar da verdadeira batalha, mas trará as asperezas que estreitarão os movimentos mentais. Pensar com clareza exige um coração tranquilo e alegre. Sentimentos densos e impetuosos turvam a mente. Soluções desaparecem, as asas se apequenam, deixando as mágoas como rastro de um voo impossível por causa do livre-pensar aprisionado a um coração pesado”.
O escritor arqueou os lábios em singelo sorriso ao notar o meu interesse sobre asas e voos, e continuou: “São as metáforas perfeitas para explicar sobre leveza e suavidade, atributos originados do equilíbrio e da força de movimento, sempre serena, mansa e pacífica, decorrentes do autodescobrimento e das consequentes conquistas internas alcançadas à medida que a verdade sobre si mesmo se expande e as virtudes se manifestam como mecanismos de deslocamentos pelo mundo e pela vida. A leveza surge no passo e compasso que entendemos as desnecessidades de carregarmos mágoas e produzirmos preocupações, em uma jornada épica de libertação experenciada numa equação simbiótica entre mente e coração. A clareza do pensar, impulsionada pela tranquilidade do sentir, traz a alegria pela conquista da leveza indispensável aos voos de longo alcance”. Em seguida, explicou: “As mágoas nascem da provocação que me atinge, assim como daquilo que considero injusto. A perfeita defesa é puramente mental. Consiste na correta interpretação da ofensa proferida, compreendendo que a agressividade traduz o ofensor, as suas incompreensões e desequilíbrios; jamais define o ofendido. Contudo, se ao invés de uma agressão se tratar de uma crítica emanada com respeito, devo analisar os seus fundamentos com humildade e sinceridade e, se forem pertinentes, agradecer o ensinamento oferecido, assumindo o compromisso para que aquelas palavras me sirvam ao aperfeiçoamento pessoal. Se eu entender os fundamentos como inadequados, agradeço o interesse demonstrado, mas descarto a crítica. Em quaisquer dos casos o coração permanecerá tranquilo. Por outro lado, pode o orgulho no fazer tomar a crítica como se fosse ofensa. Há de haver simplicidade para não incorrermos em enganos, tropeçarmos nas nossas próprias incompreensões e ficarmos aprisionados às limitações típicas daqueles que se negam aos movimentos indispensáveis à evolução, quando então o coração restará afogado em tristeza ou ficará descompassado pela irritação. A ausência destes movimentos fundamentais de defesa mantém a mente entorpecida por sentimentos deturpados enquanto mal elaborados na oficina da consciência”. Fez uma breve pausa antes de concluir: “Como pode notar, o mal somente nos invade por descuido ou ignorância, seja quando deixamos a porta aberta, seja quando o fabricamos inadvertidamente dentro da gente”.
O professor franziu as sobrancelhas e pontuou com alegria serena: “Com a suavidade não é muito diferente. Os conflitos são igualmente desnecessários e enormes impeditivos à continuidade da jornada. Enquanto estivermos em guerra não conseguiremos seguir a viagem. Trocamos a riqueza dos projetos pessoais por brigas e mesquinharias. Aprisionamo-nos na estupidez da medição de forças, como um navegador que desvia a rota da embarcação que seguia a um lindo destino para ir ao encontro da tempestade, na ânsia e no vício de saber quem irá dominar quem. Quanto desperdício!”. Tornou a ajeitar os óculos e continuou: “Ninguém é obrigado a me dizer sim nem a concordar comigo. Em contrapartida, a falta de validação ou autorização alheia jamais será capaz de me deter ou me impedir de seguir adiante. Os ruídos e rugidos do mundo são do mundo, não meus. Eles nada sabem sobre mim nem os seus julgamentos servem como régua para medir o meu coração. Importa que sei o que quero e para onde vou. Brigar de nada me servirá. Não nego a minha verdade, mas a exponho apenas quando a entendo indispensável. Sempre na tentativa sincera de auxiliar, jamais de acusar. Faço de modo tranquilo e simples e, se possível, sem usar palavra. Sem o menor desejo de granjear admiração ou impor convencimento. Sem provocações, duelos e conflitos, trato a todos com dignidade e sigo em frente. Tão e somente. Esta é a suavidade de voar por entre os penhascos das diferenças e das incompreensões”.
Tamborilou os dedos sobre a mesa, como se ali houvesse teclas de piano, e finalizou o raciocínio: “A tola tentativa de controlar o incontrolável, de dominar o que não é legítimo dominar, assim como o inútil afã de deter o resultado das equações imponderáveis da vida geram todas as preocupações. Quando me permito esta sintonia, desafino a sinfonia da vida. Preocupações agigantam os medos, estreitam as possibilidades, encerram caminhos possíveis e abafam o canto dos pássaros. Sob o meu controle, tenho apenas as minhas ações. Não se engane, é tudo que cada um precisa para seguir a viagem. Contudo, cuidado. Assim como definimos a amplitude das asas e o alcance do voo, também definimos o próprio destino. Céu e inferno, ninguém deve subestimar a própria capacidade de criação e realização”. Argumentei que todos, sem exceção, em alguns momentos precisam de ajuda. O escritor balançou a cabeça em anuência e ponderou: “Sem dúvida. Todos já se desviaram da rota, perderam bons ventos e ficaram sem rumo. Sem exceção, tiveram a chance de recomeçar. E continuam a ter. Regenerar asas e refazer voos são possibilidades sempre presentes. Na maturidade o pássaro entende que nunca esteve sozinho; o que sustentou o seus voos não foram apenas as asas, mas também o ar invisível quando, em perfeita sinergia com o céu, se aventurou às grandes altitudes. Não as do mundo, mas as do coração”.
Aquelas palavras, ditas pelo professor em tom sereno e com a nitidez necessária ao exato entendimento, sem nenhum resquício de academicismo, faziam a conquista parecer fácil, embora, na prática, não fosse assim, comentei. Ele sorriu e argumentou: “Voltamos ao início da nossa conversa quando disse que estudamos mais Napoleão do que Sócrates; no valemos mais das artimanhas de Júlio César e Pompeu do que das artes de Platão e Epicuro. Fomos condicionados a acreditar que as guerras são patamares e registros de conquistas pessoais, deixando de lado o conhecimento que conduz à verdadeira liberdade. Não é de se espantar que mágoas e conflitos pareçam inevitáveis e aparentemente seja impossível viver sem cargas e asperezas. No entanto, esta é mudança que nos aguarda. Para tanto, se faz necessário compreender que todo poder se concentra na consciência, que como um deus pode nos afogar em gota de orvalho ou nos fazer renascer diante do caos. Quando cada pessoa entende ser o criador e a criatura da sua própria criação em uma atividade incessante e infinitamente criativa, cria em si a perfeita harmonia do pássaro com o céu. Então, embora vivendo no mundo, com todas as situações que lhe são inerentes, estará fora do alcance dos estilingues. As pedras do medo e do sofrimento não atingem quem voa próximo às estrelas”.
Soou o alarme da escola. Era hora do almoço e momento de partir. Agradeci as lições sobre a leveza da arte suave. No entanto, não bastava aprender, era necessário apreender. Ou seja, metabolizar o conhecimento para que servisse de utilização a uma vida plena, comentei. O professor disse sim com a cabeça, se levantou e usou vários bastões de giz de diferentes cores para desenhar na lousa círculos cada vez menores, como se formassem um túnel no espaço-tempo. Ou um portal, como as mandalas. Era uma despedida e uma saída. Sorri para o escritor que devolveu o sorriso. Segui a viagem pelo inconsciente coletivo.
Poema Sessenta e Oito
O verdadeiro guerreiro não gosta das batalhas;
Luta sem ódio,
Vence sem derrotar o inimigo.
A leveza indispensável aos voos e
A suavidade de voar por entre penhascos
Criam a perfeita harmonia do pássaro com o céu.
1 comment
Q texto lindo, como gostaria de ter lido isso quando eu tinha 20 anos, quantas guerras s3m sentindo eu teria evitando.
Amei.