Japão. Século XII. Ando a esmo pela floresta. Os pássaros não cantam nem voam. O vento parece adormecido. Silêncio. Escuto apenas o barulho dos meus pés sobre galhos e folhas secas. Raios de sol atravessam as árvores alternando luz e sombras em sequências desordenadas. A tensão do perigo iminente paira no ar. Sinto-me a presa espreitada pelo predador. Paro e observo. Nada. Antecedida por um silvo agudo, uma flecha passa rente à minha cabeça e se crava na árvore à frente. Olho na direção de onde ela veio, não vejo ninguém. Ao retornar a cabeça, outra flecha repousa ao lado da primeira. Volto a olhar para trás, então, um susto. Um samurai empunha um arco com a flecha na minha direção. Os seus olhos se mantêm atentos na intenção de antecipar os meus movimentos. Mostro as mãos vazias e afirmo estar em paz. O arqueiro sorri, como se estivesse diante de uma criança, descansa o arco e pontua: “Não desejar a guerra não significa estar em paz”. Fez uma pausa antes de acrescentar: “O oposto da paz não é a guerra, mas o medo, o sofrimento, a ignorância, a crença na própria incapacidade de se reconstruir, ultrapassar obstáculos e seguir em frente”. Sentou-se em um enorme tronco caído, fez um gesto amistoso para que eu fizesse o mesmo, e disse: “A paz é um estado de harmonia interna que nem mesmo a guerra pode destruir”. Fez uma pausa antes de acrescentar: “Um arqueiro sem paz é incapaz de acertar o alvo”.
Estava evidente que o samurai não me tinha como inimigo. Considerei que talvez soubesse que eu viajava pelo inconsciente coletivo para aprender sobre o Tao Te Ching e me aguardasse. Sem que eu precisasse perguntar, ele anuiu com a cabeça e explicou: “O Tao é a arte do arqueiro. Vim explicar como funciona”. Falei que eu me negava a caçar ou a usar armas. O samurai tornou a sorrir e disse: “Jamais me prestaria a ensinar alguém a caçar ou o estimularia ao uso de armas. Não vim aqui para isto. Refiro-me ao arco e flecha como metáfora para melhor compreensão dos movimentos do viajante pela estrada do Tao. O entendimento da verdade e a aplicação das virtudes como mecanismos indispensáveis à evolução. Do contrário, não sairá do lugar”. Falei que os samurais eram assassinos históricos a serviço de senhores feudais. Sem se alterar, ele manteve o tom sereno da voz e explicou: “Assim como o sol brilha para os bons e os maus, o conhecimento é disponibilizado indiscriminadamente. Nem todos fazem bom uso das ferramentas que aprendem a manejar. Inteligência e habilidade sem amor são sementes de amargas maldades e tristes erros. Confiar na própria capacidade de renascer infinitas vezes em si mesmo serve não apenas para solucionar problemas, superar dificuldades e redefinir a realidade, mas concede poder para jamais temer, ceder ou negociar com o mal. Um genuíno samurai sabe que ao abdicar da dignidade negará a liberdade e a paz. Então, perderá o alvo”.
Pedi para que explicasse melhor. O arqueiro foi gentil: “Ao contrário do que muitos acreditam, o alvo não é um objetivo físico, material ou financeiro. O alvo se apresenta no perfeito movimento de empunhar o arco e disparar a seta”. Eu continuava sem entender. Ele esclareceu: “O alvo é o caminho. O destino é consequência”. Franziu as sobrancelhas e disse: “O caminho consiste no despertar ou na reconstrução da consciência, onde a luz habita, se intensifica e a autêntica identidade se desenvolve. Em suma, não me refiro apenas a bagagem, mas a essência do viajante. Fora da consciência toda conquista é efêmera, toda vitória é vã. Aprimorar a percepção e aguçar a sensibilidade para o uso da luz à serviço do bem comum registra o alto nível de habilidade do arqueiro”. Eu o ouvia com atenção. O samurai prosseguiu: “A consciência é o arco. Como expressão da última fronteira de entendimento alcançada pela consciência a cada momento, a verdade do arqueiro se revela na escolha do próximo alvo. As virtudes são fundamentais ao ajuste do arco, à mira precisa e na exata tensão da corda para determinar o alcance do tiro. A flecha disparada é a ação; o bem ou o mal praticados”. Em seguida, indagou: “Entendeu por qual motivo a paz é parte fundamental à arte do arqueiro?”. Respondi que não.
O samurai explicou: “Distante da paz, o arqueiro ficará com a percepção e a sensibilidade limitadas. Sentimentos aviltados estreitam as compreensões; pensamentos estreitos agitam as emoções. O arqueiro se enganará quanto às suas intenções e prioridades. Faltará serenidade e clareza para uma melhor interpretação dos fatos e das possibilidades. Não entenderá o alvo. As virtudes restarão prejudicadas ou inibidas, impedindo o perfeito ajuste do arco. Há a hora do sim e existe o momento do não. Isto não significa que o sim e o não se excluam mutuamente, mas que devam ser usados com harmonia para aprimorar os mecanismos do arco. Ao contrário do que muitos acreditam, alegria e seriedade, generosidade e respeito, gentileza e firmeza não são virtudes antagônicas, porém, complementares. A compreensão das verdadeiras intenções e sentimentos que movem as nossas ações é fundamental para o entendimento da utilização e dos limites de cada uma das virtudes. O arco mal ajustado colocará a flecha fora do alvo”. Pedi para que exemplificasse. Ele me atendeu: “A sinceridade não pode servir de desculpa para ocultar o desejo de ferir outra pessoa. A humildade é atributo essencial ao crescimento, jamais sendo causa para anular a própria personalidade, dons, talentos e capacidades. A cautela não dialoga com a usura nem com o egoísmo. A sensatez não se aconselha com o medo. A coragem não se alia à violência. A compaixão não pode virar drama, tampouco contribuir para qualquer sofrimento. A delicadeza, a misericórdia e a simplicidade não podem dar margem à falta de limites às relações. A caridade não pode estar a serviço do orgulho ou da vaidade. Sem o devido equilíbrio emocional a clareza e a sensatez restam prejudicadas. A paz desaparece, levando consigo a nitidez necessária à compreensão do alvo. Não há como fazer o correto ajuste do arco”.
Um rouxinol pousou numa árvore, fazendo sorrir os olhos do samurai. Ele continuou a explicação sobre o funcionamento das virtudes: “Todo amor é bom, mas nem sempre sabemos amar bem. Devemos ajudar àquele que queira se levantar, entretanto, se insistirmos em o carregar nas costas, estimularemos nele a fraqueza, a preguiça, a comodidade e a incapacidade de caminhar com os próprios pés. Embora movido pelos mais puros sentimentos, inexistirá ajuda se não soubermos o exato limite de cada virtude. A vontade de ajudar não pode superar a vontade do ajudado em resgatar a própria autonomia. Quando não compreende o alvo, o arqueiro perde a capacidade de ajustar o alcance e a mira do arco”. Analisou-me por instantes para saber se eu conseguia acompanhar o raciocínio e continuou: “Para desenvolver a sua arte, precisará trazer à tona virtudes desprezadas pelos senhores do mundo, como a humildade, a simplicidade e a compaixão. Em movimento complementar ao anterior, terá que se despir de atributos por eles valorizados, como o orgulho, a vaidade e o egoísmo. Para atirar para cima, o arqueiro suspende a parte de baixo do arco. Do mesmo modo, para mirar para baixo, ele desce a parte de cima do arco”. Fez os referidos movimentos com o arco para que eu pudesse visualizar as suas palavras, facilitando o meu entendimento. Depois, prosseguiu: “Faz-se necessário inverter valores e prioridades ao entender que o alvo nunca esteve onde sempre acreditamos. É indispensável deixar de ser para se tornar. Não se trata apenas de agregar virtudes, mas fazer com que elas surjam da transformação dos vícios comportamentais que não mais queiramos em nosso jeito de ser e viver. A luz precisa nascer das sombras para as extinguir definitivamente”. Fez uma pausa antes de ressaltar: “Entenda o alvo. Se apenas olhar para fora não compreenderá o poder interior. Se apenas viver o que existe dentro, nada aprenderá com as experiências cotidianas, autênticos mananciais de amor e sabedoria. A arte permanecerá incompleta”.
Pedi para que falasse mais sobre a arte do arqueiro. O samurai tornou a sorrir com os olhos, satisfeito pelo meu interesse em suas palavras, e disse: “Nem toda calmaria significa paz, nem todo sorriso é de alegria, nem todo abraço é acolhimento, nem toda mão estendida é ajuda, nem todo elogio é sincero, nem toda crítica é justa, nem toda palavra serve para iluminar, nem todo elixir cura, nem todo beijo é de amor. Esse entendimento é fundamental ao ajuste do arco. Contudo, como ajustar o arco se não entendo o alvo? Onde está? A qual distância? Com qual intensidade devo atirar a flecha? Não pense que esses questionamentos estimulam a descrença ou o demérito às virtudes e aos bons sentimentos. Eles existem e são essenciais à vida. No entanto, sem conhecer a verdade nos tornamos presas fáceis aos maus arqueiros. Não raro, somos estes”. Tornou a fazer uma pausa, desta vez para ressaltar as palavras seguintes: “Ao mirar no alvo a seta sempre retorna ao arqueiro. Inevitavelmente. Eis a verdade irretocável”. Depois, esclareceu: “Ajustamos o arco à medida que compreendemos o alvo. Para tanto, precisamos fazer as perguntas certas: eu poderia ter feito diferente e melhor? O que em mim está descuidado e mal-amado? O que me sobrecarrega, aprisiona e quebra? Faz-se necessário apertar o que está solto, afrouxar o que está apertado. Para ajustar o arco é preciso coragem, sinceridade, disposição e amor-próprio. Aceitar as repostas e assumir o compromisso perante a si mesmo de as usar no próprio aperfeiçoamento, quase nunca é fácil. Nem sempre ouvimos palavras que agradam ao orgulho e à vaidade, cujos traços, em maior ou menor grau, todos ainda trazem consigo. Quando não entendemos o poder dos compromissos, o alvo nos escapa”.
O samurai franziu as sobrancelhas e pontuou: “Compromissos são escolhas. Um erro comum, tolo e vulgar é acreditar que a liberdade e o amor se tornam mais fáceis com a ausência de compromisso. Podemos amar a todos sem comprometimento nem preocupação com ninguém. Viveremos amores de superfície, desprovidos de substância. Todos têm direito a isso. No entanto, é justamente o compromisso e a dedicação aos outros que concede camadas de amplitude – amar mais – e profundidade – amar melhor – ao amor. Sem comprometimento apenas conheceremos o vazio do amor vadio. Cabe a cada um escolher o tipo de amor que deseja para si”. Deixou o olhar vagar por instantes pela floresta e prosseguiu: “Diferente não é com a liberdade. Quanto menor forem os compromissos assumidos, mais livre serei para me dedicar somente aos meus interesses. Nada mais ingênuo do que raciocinar assim. Liberdade não é vagar despreocupadamente pelo mundo. Porém, viajar pelos dias, aproveitar as maravilhas da vida sem se descuidar de ajustar o arco e entender o alvo. Impossível conseguir tamanho intento sem amar mais e melhor. Não há como pensar em liberdade sem trazer para si o cuidado consigo e a preocupação com os outros. Não há como ser livre sem perdoar; não existe perdão sem amor. Liberdade é viver no extremo limite da verdade alcançada pela consciência. Se a verdade se expande ao passo da percepção e da sensibilidade, os pilares conscienciais, apenas através do amor você conseguirá ultrapassar as fronteiras de si mesmo para conhecer a genuína liberdade. Tudo mais são prazeres estanques e desejos sem saída. No Tao nada falta nem excede. O amor que falta registra o amor que o próprio coração se nega a aceitar ou oferecer. Ninguém pode entregar a ninguém o que cabe a cada um conquistar. O amor que sufoca ilustra a ausência de responsabilidade por si mesmo. O amor que aprisiona, saiba, não é amor. A liberdade que falta é a ausência de dedicação e comprometimento no ajuste do arco. A liberdade que extrapola na irresponsabilidade e na subjugação traduz a incapacidade de enxergar o alvo”.
Questionei quais eram as maiores dificuldades ao aperfeiçoamento do arqueiro. O samurai respondeu: “Na estrada do mundo, a prática é outra, os conceitos e valores são diferentes. A crença de que o poder consiste em tomar, possuir e dominar ao invés de oferecer, compartilhar e amar faz perder o alvo. Nada o deixará mais distante da verdade. Exigimos muito, oferecemos pouco. Retemos ao invés de soltar, guardamos até quando não precisamos. Falo de dinheiro, orgulho, mágoas e vaidade. Afrouxamos até perder, apertamos até quebrar. Falo de paz, dignidade, amor e liberdade”. Fechou os olhos como se recordasse de um tempo longínquo e ponderou: “Muitos acreditam que os seus vícios e enganos são estruturais na composição das próprias identidades. Se abdicassem da arrogância, usura, empáfia prazeres rasos e interesses mesquinhos não mais se reconheceriam. Dizem que querem mudar, mas se negam a deixar de ser quem são, alterar valores e modificar prioridades. Na estrada do tempo os avanços não se medem por dias e séculos, mas por ciclos evolutivos completados. Não se calcula a verdadeira fortuna pelos bens materiais amealhados, mas por todo amor disponibilizado. Poucos entendem o alvo”. Perguntei se os principais alvos eram imateriais. O samurai devolveu a pergunta: “Quais cabem na bagagem do viajante?”. Não precisei responder. Ele arqueou os lábios em sorriso e disse: “Somente assim começamos a entender os alvos. Não há como compreender a jornada do Tao sem dimensionar a paz, a dignidade e a liberdade contida na abnegação. Esta poderosa virtude fala sobre, quando em conflito, deixar ir os bens do mundo para resguardar a luz da consciência. Não fala de medo, covardia ou fuga, mas de coragem, sensatez e caminho. Não é sobre perdas, fracassos ou derrotas, porém, sobre ganhos, conquistas e vitórias. São valores difíceis de aceitar para quem confunde riqueza com prosperidade, acúmulo de bens com bens para além-túmulo. Por isso, o sábio age sem se apossar. Ele sabe que vale o amor envolvido, o bem praticado e a luz que manteve acesa. Tudo mais é menos. Oferece o que há de melhor em si sem exigir nada em troca. O amor não é balcão de negócios, mas jardins semeados em desertos distantes aos olhos do mundo. Ele ajuda sem dominar, pois, a luz trabalha sempre em favor da liberdade, nunca para erguer cárceres. O verdadeiro bem é ação silenciosa, sem estardalhaço nem imposições. Alegra-se quando outros viajantes se alimentam com as frutas da árvore que plantou. Sem se importar com os pedestais do reconhecimento e da fama, apenas faz e segue em frente. Todo sábio é um bom arqueiro. Conhece o alvo e já tem o arco bem ajustado”.
Ficamos alguns minutos sem dizer palavra. Eu precisava alocar aquelas ideias na mente e no coração. Seriam importantes para reelaborar antigas experiências assim como para compreender as que eu ainda viveria. O samurai avisou que era momento de partir. Falei que não sabia como sair da floresta. Ele tirou uma flecha da aljava que carregava a tiracolo, armou o arco e disparou por uma nesga da mata em direção ao sol que, ao ser atingido pela seta se desfez em mil fragmentos como uma mandala de fogo. Uma imagem mística do amor e da luz que se dividem para multiplicar. Agradeci a conversa e atravessei o portal.
Poema Setenta e Sete
O Tao é como um arqueiro.
Para atirar para cima, suspende a parte de baixo;
Para mirar para baixo, desce a parte de cima.
Aperta o que está solto,
Afrouxa o que está apertado.
No Tao, nada falta nem excede.
Na estrada do mundo, a prática é outra.
Exigimos muito, oferecemos pouco.
Afrouxamos até perder; apertamos até quebrar.
Por isso, o sábio age sem se apossar,
Oferece sem exigir, ajuda sem dominar,
Faz e segue em frente.
3 comments
Obrigado pelo texto, meu amigo. Mais uma vez eu lendo exatamente o que precisava para o momento em que estou vivendo. Viva a sincronicidade!
Até
Gratidão
Obrigado pela linda reflexão! 🙏🙏