MANUSCRITOS VIII

Mensageiros

“Nenhum acontecimento tem o poder de nos furtar a paz. A maneira como lidamos com as nossas emoções é que define os tormentos ou a calmaria da alma”, ponderou Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de ensinar a antiga filosofia do seu povo às novas gerações. Ele acrescentou um pouco mais de tabaco no fornilho de pedra vermelha do seu indefectível cachimbo, esperou que a chama do isqueiro incendiasse o fumo, baforou algumas vezes e, por instantes, se distraiu com a fumaça que bailava ao sabor da brisa leve de uma tarde fria de outono em Sedona, nas montanhas do Arizona. Sentado na cadeira de balanço da varanda da casa, conversava comigo e com Doba, uma jovem professora da escola local que, assim como o xamã, pertencia à etnia Navajo. Alegre e simpática, gostava de trajar vestidos com estamparias que faziam alusão à rica cultura dos seus ancestrais. Naquele dia, ela não estava bem. O motivo de ter ido conversar com Canção Estrelada era Tayen. Os pais do rapaz, instrutores de alpinismo, partiram às Terras Altas em um trágico acidente quando ele ainda era garoto. Na ausência de parentes próximos, foi acolhido pela Casa das Anciãs, uma linda comunidade formada por avós que cuidavam de crianças em situações de desamparo. Duas décadas depois, ele se tornara um homem conhecido por sua maturidade, caráter e generosidade. Era querido e respeitado por todos na cidade. Havia alguns anos, fora aprovado para a Academia Naval dos Estados Unidos, em Annapolis, próximo de Washington, na Costa Leste. Faltava apenas um semestre para se formar nessa conceituada instituição de acesso restrito, seja por causa da escassa quantidade de vagas, seja pelos rigorosos critérios de seleção. Voltara à Sedona no último verão para rever os amigos e agradecer a todos aqueles que o ajudaram no período mais difícil da sua existência. Foi quando reencontrou Doba. A amizade deles remontava à infância. A avó dela era uma das fundadoras da Casa das Anciãs. Naquelas férias, entre conversas e encontros, se apaixonaram. Tayen a pedira em casamento. A moça tinha certeza de que ele era a pessoa com quem gostaria de construir um novo núcleo familiar. Possuíam uma afinidade anímica. Amava-o muito. Admirava o seu caráter nobre manifestado em gestos simples. Encantara-se com os modos gentis e amorosos com que ele a tratava. Ocorre que, com o casamento, a rotina militar do rapaz a levaria de Sedona para sempre. A cada dois anos se mudariam para uma base naval diferente em diversos pontos do país e do mundo. Até então, Doba nunca cogitara morar em outro lugar. Adorava a cidade onde sempre viveu. Visitar as montanhas do Arizona só seria possível quando as circunstâncias do trabalho de Tayen permitissem, algo nem sempre possível. No mais, as frequentes mudanças dificultariam que conseguisse emprego em uma escola. Doba amava o professorado. Temia o vazio que poderia sentir e o quanto isso afetaria o casamento. Como se não bastasse, se afastaria dos pais e dos avós numa idade que em breve eles começariam a necessitar dela. Embora fosse uma mulher bonita e saudável, tinha sido uma criança frágil e adoentada, exigindo muita dedicação da parte deles. Questionava-se se era justo se afastar no momento em que mais poderia retribuir o amor recebido. De outra face, se não aceitasse o pedido de Tayen, temia jamais encontrar outra pessoa que amasse com tanta afinidade e admiração. O pedido de casamento envolvia questões que a faziam oscilar entre o medo e a culpa.

Ponderei se Tayen estava disposto a colaborar para encontrarem juntos uma solução intermediária, satisfatória a ambos. Doba disse ter conversado sobre isto com o namorado. Explicou que a rotina militar não permitia negociação, ao menos quanto a se fixar em uma única cidade ou residir próximo de Sedona. No mais, ele flexibilizaria e a apoiaria no que a ela precisasse. Tayen havia estudado muito. Foram anos de muita dedicação e esforço. Abrir mão da carreira na Marinha seria destruir um sonho prestes a se tornar real. A moça não considerava justo pedir ou exigir isso do rapaz. Tayen amava Doba, a profissão e a vida que escolhera para si. Queria todos os seus amores. A moça amava o namorado, a família, a carreira de professora e a cidade onde sempre morara. Os amores eram inconciliáveis, afirmou em tom de tristeza. Fazer parte do sonho dele era uma escolha que cabia a ela. Se aceitasse, teria de lidar com sérias perdas em sua vida, entre elas, abrir mão dos próprios sonhos. Caso recusasse, as perdas seriam outras, não menos importantes. Qualquer das escolhas que fizesse acarretaria prejuízos irreparáveis. Sentia raiva por se encontrar dentro de um labirinto existencial onde não acreditava existir uma porta para a felicidade. A situação provocava sentimentos hostis e desequilibradores como medo, culpa, raiva e tristeza, a depender da decisão considerada. Sentia-se incapaz e perdida diante do dilema que a vida lhe apresentava. Sofria por não saber qual decisão tomar, confessou.

“Não tome nenhuma decisão”, sugeriu Canção Estrelada, para em seguida complementar: “Ao menos, por ora”. Baforou o cachimbo e explicou: “Não há decisões difíceis. Existem decisões imaturas. Após amadurecidas, as escolhas se tornam de uma simplicidade estonteante”. Fez uma analogia: “Quando verdes, as frutas são ácidas e difíceis de arrancar do galho. Já maduras, ficam adocicadas sem exigir nenhum esforço para se desprenderem da árvore. Pousam suavemente em nossas mãos como uma dádiva da vida”. Doba discordou. Qualquer que fosse a sua escolha as perdas seriam amargas e dolorosas. Na situação dela, não havia decisão fácil ou simples. Isto a fazia sofrer uma dor que sabia não ter fim. Melhor seria se acostumar a viver com o sofrimento. Com o tempo, talvez até lhe servisse de companhia para afastar a solidão. Tornariam-se íntimos, considerou a moça, não sem algumas doses de dramaticidade e fatalidade. O xamã ponderou: “O que a faz sofrer não é a situação em si, mas a maneira como interpreta os acontecimentos e lida com a realidade. A manifestação de um sofrimento, tais como a sua intensidade e a duração, apenas refletem o modo como alguém elabora as experiências vividas. Um dos fatores essenciais ao processo é a maneira como compreende as emoções decorrentes dos fatos. Os sentimentos afetam sobremaneira o livre-pensar, expandindo ou retraindo a sua capacidade de entendimento sobre todas as coisas, pessoas e situações. Daí podemos concluir que a realidade não é um texto destinado à leitura literal. Ela é interpretativa. A compreensão muda de acordo com a percepção e a sensibilidade do leitor. Há diversas cores e amplitudes, além de muitas camadas de profundidade, a depender dos olhos de quem a lê”. Franziu as sobrancelhas e sussurrou: “A porta de saída do labirinto da dor não está no mundo, mas na alma”.

A jovem disse não fazer sentido. Se fosse simples assim, ninguém sofreria. Afirmou que o medo, a raiva, a culpa e a tristeza, as quatro agonias básicas, são determinantes e inevitáveis às situações desagradáveis, jamais a escolha equivocada por um olhar que observa sem compreender todas as possibilidades oferecidas pelos acontecimentos. Canção Estrelada franziu as sobrancelhas e argumentou: “Embora o mundo seja o mesmo para todos, há mil maneiras de transitar nele. O sofrimento aprisiona mais do que grades de ferro e paredes de concreto. Se entendo como verdadeiro que a realidade se altera a depender dos olhos do observador, com o aguçamento da visão, transformo ideias estreitas em pensamentos expansivos e emoções densas em sentimentos sutis. Passo a enxergar a realidade de maneira diferente. Da dor se faz a cura. As grades se derretem, as paredes desaparecem. Muros caem, passagens aparecem. O mundo permanece o mesmo, mas a vida muda. Emoções aviltadas e sentimentos hostis não impedem apenas a paz e a felicidade. Em verdade, são também cruciais impedimentos à liberdade. A clareza do olhar define os elementos de luz ou sombras com os quais o indivíduo elabora as experiências. Contudo, o modo como atravessará os dias não dependerá apenas da capacidade em processar a experiência, mas também da coragem em fazer uso do resultado da equação que por ora conseguiu alcançar. Algo nem sempre fácil. Há uma distância abissal entre saber e fazer. A verdade nunca é gentil com os orgulhosos, vaidosos e covardes, mas generosa com os humildes, simples e corajosos”. Deu de ombros e afirmou: “Logo, o sofrimento é decorrente da escolha dos filtros usados para depurar as emoções e das lentes com as quais observará a realidade. Assim como da disposição em lidar com a verdade encontrada”.

Doba estava à beira da irritação. Se o sofrimento fosse uma escolha, todos seriam felizes e viveriam em paz consigo e com os outros. Ninguém escolheria os contínuos tormentos da alma. Situações desagradáveis são uma constante na vida de todas as pessoas, dando origem aos sentimentos de medo, raiva, culpa e tristeza, ou algumas das suas variantes como ansiedade, depressão, mágoa, sensação de impotência, entre outras mais. A moça afirmou saber do que estava falando. Reconhecia esses sentimentos deitando raízes em seu coração naquele exato instante. Não os queria pelo mal-estar que provocavam, mas não conseguia os arrancar ou se libertar deles. Teria de se acostumar com a dor. Os sofrimentos eram inerentes à vida. Melhor era aprender a conviver com eles. O xamã balançou a cabeça e disse: “Sim, há mais sabedoria em os reconhecer e aceitar do que em os negar ou ignorar, quando então campeiam soltos dentro da gente e terminam por nos dominar e destruir por total falta de controle. Ninguém se defende do que acredita não existir. Contudo, não se trata de aprender a conviver, porém, de conviver para aprender. A ordem dos verbos altera o resultado da experiência”. Deu um trago longo no cachimbo, como se procurasse as melhores palavras, e explicou: “Aprender a conviver nos leva a acomodar os sofrimentos como se fossem hóspedes inevitáveis do coração. Conveniência e conformismo significam comodidade e desistência. Um erro crasso àqueles que estancam a própria evolução, origem dos desânimos e dos esgotamentos emocionais que roubam a alegria e furtam a paz. São comportamentos distintos da resignação. Resignar-se é aceitar o fato consumado. Nada há de errado nisto. Ao contrário, existe sabedoria em entender o que não pode ser mudado. O equívoco consiste em confundir a resignação com a paz. Todo fato consumado fecha portas, mas também indica novos caminhos. A interpretação do fato definirá a dimensão, a amplitude e a clareza da realidade na qual se viverá. Experenciando uma mesma situação, há quem não veja saída, todavia, existe quem sem encante com tantas possibilidades. A maneira como se interpreta a realidade estabelecerá o tormento ou a paz da alma. É neste ponto que a compreensão das emoções tem uma papel fundamental, funcionando como o personagem angular de uma trama capaz de alterar o desfecho da história”.

Fez uma breve pausa antes de prosseguir com o raciocínio: “Acolher as emoções amargas e indesejadas, ao invés de as repelir, mostra a inteligência e a disposição de conviver para aprender com elas, de usar em benefício próprio um conteúdo essencial ao autodescobrimento, a base de toda a evolução existencial. O resultado são realidades mais receptivas e prósperas ao desenvolvimento dos talentos e projetos pessoais”. Doba pediu para que explicasse melhor. O xamã foi pedagógico: “Estamos condicionados a sentir dor. Em diferentes níveis, sofremos diante de dificuldades, contrariedades e problemas. Inevitavelmente. Explodimos em reações destemperadas ou implodimos em decepções silenciosas. Todos os dias surge uma situação para nos deixar mal. Da irritação à fúria, do desânimo à melancolia. De um jeito ou de outro tentamos expulsar o sofrimento de dentro da gente. Uma luta exaustiva e inglória. Não funciona. O máximo que conseguimos, após infrutíferas tentativas, é o esconder no porão da casa onde moramos, o inconsciente. Em análise realista, cada um mora em si mesmo com todos os pensamentos e sentimentos que o habitam como resultado das experiências anteriores. Esconder um morador indesejado e desagradável não o faz desaparecer nem diminui o seu poder de interferência e destruição. Ao contrário, o intensifica pela falta de controle e incapacidade de lidar com as confusões provocadas por um hóspede que transita pelos corredores e cômodos na sombra da noite sem nenhuma regra ou vigilância. Reprimimos a lembrança dolorosa na tentativa de estancar a dor. Negamos, ignoramos, fingimos esquecer ou acreditamos que o tempo cuidará de tirar o sofrimento de dentro da gente. Uma falácia comum e vulgar. O tempo é apenas uma estrada que não leva a lugar nenhum enquanto o viajante se recusar a caminhar. Em verdade, o tempo desperdiçado somente aumenta o estrago. Em algum momento, a casa ficará em ruínas”.

O xamã fez uma nova pausa antes de prosseguir com o raciocínio: “Conviver para aprender inverte os elementos usados na equação. Trazer à luz o que antes se ocultava nas sombras é como adicionar no lugar de subtrair. O resultado será diametralmente oposto. Ao invés de negar, ignorar ou tentar expulsar o sentimento doloroso, ou mesmo de tentar encontrar uma razão qualquer para explicar o fato, experimente acolher e escutar a emoção que se manifestou. Ela é sua. Sempre foi. Pare de tratar o mensageiro como se fosse um inimigo”. Doba interrompeu para dizer não ter entendido essa última frase. O xamã esclareceu: “O medo, a culpa, a raiva e a tristeza manifestam algo ainda incompreendido e mal elaborado dentro da gente. São portadores de mensagens de cura. Eles não vieram do mundo, foi a alma quem os enviou. Embora os fatos sejam externos, os sentimentos pertencem a quem os sente. Eles são parte de quem somos. Falam do que há de mais íntimo em nós. Cuidar deles é cuidar da gente. São por demais preciosos. Eles trazem o código de quem podemos nos tornar. Para tanto, será necessário compreender as suas origens. As emoções amargas nascem nos cantos escuros, ainda avessos à luz, das lembranças amargas e experiências mal elaboradas. Mostram o que precisa ser compreendido e reconstruído. Acredite, há sementes ocultas de amor e luz por trás de cada amargura. Fazê-las germinar encerra com o sofrimento. Definitivamente”.

Doba gostou do olhar oferecido pelo xamã, mas questionou como seria o diálogo com os sentimentos dolorosos para que os sofrimentos desaparecessem. Os olhos de Canção Estrelada sorriram como se ele esperasse por essa pergunta para completar o arcabouço filosófico e esclareceu: “Vamos nos ater às quatro agonias básicas: a raiva, o medo, a tristeza e a culpa. Lembre que o problema não está nessas emoções, mas no modo como as compreendemos e lidamos com elas. São sentimentos que falam sobre aspectos e características ignoradas, menosprezadas, negadas, escondidas ou incompreendidas que, enquanto não os trouxermos à luz da consciência para serem entendidos e reeducados, funcionarão como travas existenciais a nos impedir de ir além de quem somos. São códigos para a liberdade e a paz”.

Canção Estrelada baforou o cachimbo e ponderou: “O diálogo se inicia ao substituirmos a reação, sempre imediata e repleta das sombras manifestadas pelo inconsciente – o porão escuro de onde cada um mora em si –, pela resposta raciocinada ao estímulo gerador da emoção, apenas possível após uma conversa amorosa com os habitantes dos cantões escuros no ambiente claro de uma mente lúcida movida por um coração sereno”. A moça voltou a interromper para questionar como poderia pensar com um coração tranquilo quando envolvida por raiva ou medo. Canção Estrelada esclareceu: “Deixe de tratar as emoções densas como indesejadas ou inimigas; trate-as como mensageiras da sua evolução. Mudar a sintonia da mente altera a frequência do coração”. Depois, concluiu: “As conversas com esses moradores representam os encontros mais importantes que terá na vida: a Doba que você conhece com a Doba que ainda desconhece em si mesma”.

Em seguida, começou a analisar, em teoria, alguns dos significados das mensagens trazidas por esses sentimentos: “A raiva pode indicar que um valor importante foi violado. Uma fronteira intrínseca foi invadida. Não raro, porque concedemos uma permissão indevida. Algo interno precisa de melhor compreensão e uma urgente reconstrução. Limites mais cuidadosos se fazem necessários. De outra face, e igualmente importante, quando a raiva insiste em permanecer, pode demonstrar uma enorme dificuldade em perdoar. O medo sinaliza potencialidades pessoais abandonadas ou depreciadas, equivocadas leituras da realidade, aborda possibilidades de movimento desprezadas ou indevidamente avaliadas. A tristeza mostra a incapacidade de lidar com perdas, de abdicar dos vícios de pensar e sentir, em responder às mudanças exigidas pela vida, fala sobre a dificuldade de soltar o que precisa ir e abdicar do que precisa ficar. A culpa mostra a incapacidade de enfrentar os erros, admitir a própria falibilidade, aprender com os equívocos, superar os arrependimentos, desmanchar o orgulho e, principalmente, se perdoar. Pode nos falar sobre os limites das cargas que devemos ou não suportar, os encargos que nos cabem e os que não são de nossa obrigação, no exato equilíbrio oferecido pelos binômios responsabilidade-possibilidade e generosidade-sensatez”. Doba ouvia com atenção e comentou que as emoções desvairadas, em verdade, eram professoras maravilhosas. Canção Estrelada confirmou com a cabeça e prosseguiu: “Reagimos ao estímulo por automatismo como se o comportamento fosse imutável e o sofrimento inevitável. Os resultados das muitas experiências vividas ao longo dos anos formam os filtros e as lentes que vamos utilizar para depurar as situações e ler a realidade. Como as experiências anteriores resultaram em sofrimento, continuamos a reagir mal por usar filtros poluídos e lentes embaçadas. Por consequência, o sofrimento parece sem fim. Viveremos em uma espiral crescente de dor e esgotamento. Enquanto essa prática não for interrompida e revertida para gerar um comportamento diferente, eficaz e saudável, a felicidade, a paz e a liberdade serão imagens de ficção”.

A primeira estrela da noite despontava no horizonte. Da varanda, Doba tinha um olhar distante como se visse uma porta pela qual precisava atravessar. Canção Estrelada pegou o tambor de duas faces e nos convidou para nos sentarmos debaixo do frondoso carvalho que havia no quintal. Pediu para que a jovem fechasse os olhos e entoou uma suave cantiga ancestral. Deixou que a música desafrouxasse as amarras dos condicionamentos mentais e emocionais para, logo depois, pedir para ela imaginar um encontro consigo mesma. Como se fossem duas pessoas conversando sobre os dilemas que as afligias. Enquanto uma falava sobre os problemas e as dúvidas, evocando as emoções de medo, culpa, raiva e tristeza, a outra apontava possibilidades a partir das mensagens trazidas por esses sentimentos. Passado um tempo que não sei precisar, Doba sussurrou que apesar das emoções não terem desaparecido por completo, já não se sentia oprimida ou sufocada por elas. Já conseguia as ver como aliadas dispostas a mostrar aspectos importantes e desconhecidos sobre si mesma. O xamã pediu para que prosseguisse no diálogo intrínseco. Embora mais tênue, o sofrimento permanecia porque ainda não estava absolutamente segura das escolhas orientadas pela alma. Muitas outras horas foram necessárias. A manhã rasgava a madrugada quando a moça abriu os olhos e nos ofereceu um lindo sorriso.

Doba disse que tinha a solução para as suas agonias. Não tinha dúvida que ao colocá-las em prática, os últimos resquícios daquele sofrimento restariam sanados. Sem nenhum rastro de insegurança ou desequilíbrio, a moça expôs a sua decisão: Vou me casar com o Tayen. É um amor sem igual. O bem que faço a mim irá suprir o que deixarei para trás. Se algo não partir, nada de diferente chegará. Substituirei o magistério pela literatura. A professora dará lugar à autora. Escrever romances sempre foi o meu sonho maior jamais confessado por falta de ousadia e de coragem. Meus pais e avós ainda não precisam dos meus cuidados e, se esse dia chegar, serão acolhidos com todo carinho na minha casa, onde quer que eu esteja. Jamais serão abandonados. Explicarei a eles os meus planos, sonhos, sentimentos e razões. Não posso deixar de viver a minha própria história por manter estática uma realidade que, em verdade, é dinâmica. O olhar do amor e da dignidade é o que liberta, nunca o que aprisiona. Se os amores forem inconciliáveis é porque não são amores. Quanto a Sedona, estará sempre aqui. Será uma linda cidade a habitar as minhas memórias e histórias, tanto as vividas como as que irei criar. Todas as vezes que for possível, e o coração pedir, virei encontrá-la. Fez uma pausa antes de concluir: Eu sofria porque me negava a ouvir as mensagens vindas da alma. Para crescer, eu precisava fechar um ciclo. Uma nova história em minha história precisa começar. Para tanto, ousadia e coragem são fundamentais. A semente precisa morrer para nascer árvore, flor e fruto.

Virou-se para Canção Estrelada e perguntou por que as escolhas que pareciam difíceis e complicadas no dia anterior, agora se mostravam simples e fáceis. O xamã arqueou os lábios em sorriso e finalizou o cerimonial: “Ao ouvir as mensagens trazidas pelas emoções rejeitadas e consideradas ruins, você conseguiu escutar a voz da alma, as suas necessidades e anseios evolutivos. Com o amadurecimento das escolhas foi possível encontrar a saída do labirinto que a mantinha perdida em si mesma”. Com os olhos brilhando, Doba agradeceu ao xamã e se foi. Tinha uma vida à espera. A observei atravessar o portão da casa. Como se possuísse asas, foi impossível não notar uma indescritível leveza até então inexistente no seu andar.

Yoskhaz

5 comments

Terumi maio 24, 2025 at 1:35 am

Gratidão.
Esses ensinamentos me ajudaram muito no meu atendimento hoje. 🙏

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Marcello Schweitzer maio 26, 2025 at 3:51 pm

Divino, simplesmente divino.

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Marcia Campos maio 24, 2025 at 11:41 am

Mensagens que dignificam o humano em nós ❤️ gratidão

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Marcello Schweitzer maio 26, 2025 at 3:51 pm

Amei.

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LUIZ CARLOS DIAS maio 29, 2025 at 10:25 pm

Gratidão pelos ensinamentos!

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