TAO TE CHING

TAO TE CHING (Septuagésimo oitavo limiar – A verdade reside no avesso da realidade)

Grand Canyon. Eu caminhava pelas margens do Rio Colorado. Homens e mulheres Sioux preparavam um cerimonial mágico. Magia é transformação. As internas são as mais significativas. Esta é a principal razão dos genuínos rituais. Fui recebido amavelmente. Perguntei se precisavam de ajuda. Pediram para eu acender uma pequena fogueira cujo calor serviria para esticar o couro dos tambores. Todos trabalhavam com alegria. Estavam felizes por estarem ali. Passado algum tempo, notei um ancião sentado sobre uma pedra não muito distante. Ele observava o rio como quem, sem pressa, conversa com um velho amigo. Ao reparar o meu interesse naquele homem, uma mulher que consertava a alça de uma cesta, disse que ele era o xamã que conduziria o cerimonial daquela noite. Com o queixo apontou o tambor do ancião no meio de outros tambores próximos ao fogo. Tinha a bela imagem de um alce negro desenhada no couro. O alce simboliza a resiliência, a abnegação e a dignidade na mitologia dos animais de poder. Fala de quem, embora nem sempre seja o primeiro a chegar ao destino, o alcança com a sua integridade preservada, explicou. Acrescentou, ainda, que aquele homem conseguia unificar em si várias correntes religiosas em uma única. Convertera-se ao Cristianismo sem perder as conexões e raízes ancestrais com o Grande Espírito. Apesar de serem apresentadas com roupagens distintas, possuíam a mesmíssima essência. Segundo a mulher, aquele homem, muito respeitado e querido por todos, alinhava com rara sabedoria filosofias díspares sob o eixo sagrado do amor. Perguntei se eu poderia conversar um pouco com ele. Ela disse sim com a cabeça.

Aproximei-me. O ancião me recebeu com um sorriso doce. Os seus olhos expressavam uma tranquilidade incomum e acolhedora. Falei isto. Ele pontuou: “Nada mais tranquilo e acolhedor do que observar as águas de um rio. Nos trazem a serena convicção de que alcançarão o destino a que se propõem. Com trajetórias e dificuldades ímpares, nos devidos tempos, as águas de todos os rios se encontrarão com o mar”. Comentei também que eu tinha a nítida sensação de que ele e o rio eram grandes amigos. Ele me corrigiu: “Na verdade, o rio tem sido um mestre. Aprendo muito com a nossas conversas”. Ao perceber que havia um ponto de interrogação na minha fisionomia, esclareceu: “Repare as águas de um rio. Quando impetuosas, se chocam às pedras e arrastam para dentro do rio o que deveria permanecer nas margens. Sujam-se. Colocam em risco a vida ribeirinha. Fazem movimentos desarmoniosos, contrários à vida. Levam consigo o que deveria ficar. De outra face, quando serenas, as águas fluem por entre os obstáculos com leveza e suavidade. Lavam as pedras com delicadeza ao invés de se conflitar com elas. Alimentam a vida ao redor. Jamais carregam consigo o que cabe ficar à margem. Alcançam o destino com plena integridade”.

Admiti que aquele olhar fazia do rio um mestre. Todavia, na vida temos de lidar com problemas difíceis, dificuldades intransponíveis e oponentes rigorosos. Não há lugar para os fracos. Como se esperasse por esse comentário, o xamã sorriu e ponderou: “A mansidão não é atributo dos covardes, mas dos fortes e corajosos. A impetuosidade é característica comum aos medrosos, desequilibrados e incapazes. Atacam porque têm medo, tomam porque não sabem construir. A opção em se movimentar através da humildade e da gentileza ao invés de se deslocar por intermédio da soberba e da brutalidade exige força mental e equilíbrio emocional. Requer vontade firme, conhecimento sobre o sentido da vida e extrema confiança no método oferecido pelo Caminho. Isto se chama fé. Quando o maior dos mestres que já pisou neste planeta disse que a fé remove montanhas, falava tanto da confiança intrínseca oferecida pela verdade quanto das virtudes como instrumentos legítimos para a superação de todos os momentos difíceis. As montanhas são usadas como metáfora às grandes dificuldades existenciais. A fé não é somente crença; trata-se, também e principalmente, de uma construção interna. A fé exige movimento para manter a conexão sagrada. Águas paradas não chegam ao mar. Contudo, o movimento errado rompe a conexão. Enquanto lutarem com as pedras como maneira de as ultrapassar, demorarão a conhecer o oceano. Assim como as águas, a fé precisa ser tranquila. Quando exaltada, resvala para o fanatismo. A origem de todas as dificuldades reside nas nossas próprias incompreensões. Desequilíbrios emocionais furtam a clareza do olhar, reduzindo as possibilidades de escolhas. Os movimentos ficam bruscos, os atritos se tornam uma constante. Perdemos a conexão com a essência e com o sagrado; com a alma e com o Alto. Desperdiçamos oportunidades pelo simples fato de não as enxergar”. Perguntei como reverter o processo. Ele explicou: “Nada melhor que a mansidão para desmanchar a rispidez da intolerância, a aspereza da arrogância, o labirinto do egoísmo, a fúria da ganância, os abismos da vaidade, entre outras sombras pessoais, as enormes montanhas que nos impedem de ver com clareza as maravilhas da vida que existem dentro e fora da gente”.

Pedi para o xamã me explicar o que era a mansidão. Eu precisava entender tamanho poder. Ele era um homem gentil: “De maneira equivocada, muitos confundem mansidão com passividade, covardia ou anulação da vontade e dos objetivos. Não é nada disso. Trata-se de um estilo de ser e viver apenas possível a uma consciência capaz de adotar um método aprimorado de deslocamento por entre dificuldades e problemas. Adota um critério no qual abdica de toda e qualquer forma de violência ou maldade como via de acesso às conquistas pessoais. Para tanto, requer o uso constante de virtudes de extremo valor como a resiliência e a abnegação. A resiliência é a capacidade de se adaptar às situações as quais não se pode modificar. Não me refiro a distorcer a identidade, porém, a refinar. Falo de trazer à tona virtudes desconhecidas, lapidar verdades para adquirir maior clareza no olhar, ir além de onde sempre esteve dentro e fora de si mesmo. Aprimorar a inteligência, despertar a vontade de crescer e usar a criatividade para se reinventar e, então, encontrar inusitadas soluções. A vida exige movimento. A resiliência oferece os remos perfeitos para navegar nesse grande rio, do qual nenhum controle temos sobre as suas águas. A resiliência não luta contra as águas, mas ensina a fluir através delas. Para tanto, requer humildade e simplicidade para que haja gosto e espaço para as necessárias transformações internas”. Fez uma breve pausa antes de prosseguir: “Por sua vez, a abnegação é o escambo dos sábios. Trata-se da troca improvável e incompreendida pelas multidões. Para atravessar de barco o rio da vida, tendo que se valer de apenas de um bem, o tolo escolhe carregar um baú de pedras preciosas, enquanto o sábio se dará por satisfeito por levar consigo um remo de madeira simples e barato. O valor não está no preço, no título nem na raridade, mas na utilidade”. Em seguida, concluiu o raciocínio: “Quando em conflito, a renúncia às riquezas do mundo em favor dos valores do espírito concede equilíbrio e força ao barqueiro para uma navegação fluída e serena”.

Argumentei que nem sempre o rio da vida nos proporciona águas tranquilas para navegar. O xamã franziu as sobrancelhas e ponderou: “Todos os conflitos têm como origem as incompreensões internas e o descompasso quanto ao autêntico significado da vida. Não é a gravidade do problema que determina o tamanho do sofrimento. Até porque gravidade e sofrimentos são elementos subjetivos a depender da percepção e sensibilidade individuais. A leitura que fazemos da situação e a escolha de como reagiremos determinará o desespero e a agonia típicos às incompreensões ou o equilíbrio e a força de movimento necessários à superação. Embora muitos se neguem a aceitar, vitórias ou derrotas, avanços ou estagnações, são decorrentes do modo como elaboramos cada experiência vivida. Para alguns, águas tranquilas levam ao comodismo; para outros, águas turbulentas permitem trajetórias incríveis e impensadas. Portanto, não se assuste ou lamente as condições do rio, cuide de aperfeiçoar a sua navegação”. Deu um lindo sorriso e disse: “O problema não é o problema em si, mas a incompreensão quanto a melhor maneira de reagir ao problema”. Perguntei qual seria a melhor reação. O ancião respondeu de imediato: “Em todo lugar, o manso vence o bruto”. Discordei. Falei que nem sempre acontecia assim. Por diversas vezes, eu vira indivíduos agressivos subjugarem pessoas pacíficas, pilantras tirarem vantagem indevida de sujeitos corretos. Ele me corrigiu: “Fizeram valer os seus interesses sombrios de orgulho e ganância, mas não os venceram. Não se deixe enganar pelas aparências. A conquista maior e definitiva será sempre de cunho espiritual e evolutivo. Não existe riqueza fora da luz. Ainda que restem prejuízos materiais, há valores mais altos presente em todas as situações. As genuínas vitórias se caracterizam em conquistas imateriais como dignidade, amor, liberdade, paz e felicidade. A prática do mal nunca concederá nenhuma delas”. Arqueou os lábios em sorriso e murmurou uma passagem de um texto sagrado: “Bem-aventurados os mansos, eles herdarão a Terra”. Olhou por instantes para a outra margem do Rio Colorado e comentou: “Assim como o manso vence o bruto, o frágil supera o forte”. Indaguei como seria possível. Ele explicou: “Ao entendimento do mundo, pureza é sinônimo de fragilidade. Tratam pessoas puras como se fossem frágeis e inábeis às truculências, espertezas e maldades comuns aos relacionamentos. A impetuosidade é tida como sinal de força, capacidade e aptidão. Ledo engano. Confundem também pureza com ingenuidade que é o desconhecimento do mal. Outro engano comum. Em verdade, a pureza registra o alto nível consciencial daqueles que se recusam a utilizar o mal como meio de alcançar os objetivos desejados, mesmo o tendo à disposição. Algo impossível aos fracos e covardes, que, em busca de facilidades ou diante das contrariedades, recorrem à truques sujos ou à rispidez selvagem. Para ser manso e puro há que se ter coragem, firmeza e amor-próprio. Um ato de profundo respeito com a própria luz. Muitos sabem sobre poder e força, poucos conhecem os seus verdadeiros significados, itinerários e alcances. A pureza é um alicerce indissociável à mansidão. A pureza estrutura, dá equilíbrio e concede força de movimento à mansidão”. Tornou a sorrir e citou outro trecho do mesmo texto sagrado: “Bem-aventurados os puros, eles conhecerão a face de Deus”. Depois, continuou: “Mover-se com pureza e mansidão demonstra a destreza do barqueiro na travessia segura até a outra margem do rio da vida”.

Eu quis saber como fazer para possuir tal destreza. O ancião foi enigmático: “Um antigo sábio ensinou que quem se nega a caminhar sobre a lama do reino não está preparado para governar”. Falei que não tinha entendido. Ele explicou: “Falo de responsabilidade. Cada pessoa tem a si mesmo para governar. Não é pouco. Contudo, muitos acreditam que sim. Não se importam de ganhar o mundo ao preço de perder a alma. Alguns extrapolam ao controlar a vontade alheia. Outros se comprazem com a falsa sensação de superioridade, dando vazão ao orgulho e a vaidade, com o usufruto da soberba e da prepotência. Têm a ganância e o egoísmo como roteiro, comemoram a vingança e o fracasso dos adversários como se fossem vitórias pessoais. Mentem e traem. Amam apenas quem os ama. Tratam a solidariedade como mercadoria de troca. A compaixão e o perdão são atributos dos fracos. Se valem de eventuais relações de poder para dominar e humilhar. Justificam os erros e negam a responsabilidade. Ora se lamentam abandonados, ora se acreditam privilegiados pelo Criador, sem compreender que qualquer dificuldade ou facilidade não passa de escola e oficina. Servem para aprimorar o espírito no fogo das paixões, sem se deixar queimar pelos excessos nem arder pelas faltas. Todo problema registra uma experiência existencial e evolutiva. Nada mais. Nem todos entendem, poucos aproveitam. São como rios que se perderam do mar”. Deixou os olhos vagarem sobre as águas e prosseguiu com o ensinamento do antigo sábio: “Somente quem toma para si os malfeitos do império, com a firme determinação de os corrigir, se torna rei. Ele falava da maturidade indispensável à reconstrução de quem somos. Nada nos atrapalha tanto quanto a verdade que negamos aceitar. Escondemos erros e dificuldades nas armadilhas dos raciocínios tortuosos. Um guerreiro é tão forte quanto o conhecimento que possui sobre as suas próprias fraquezas. O tamanho da nossa fragilidade é proporcional às incompreensões que temos sobre quem somos. O poder dos obstáculos se agiganta com a nossa insistência em os destruir. Mude a maneira como observa e reage a eles. Trate-os como mestres que vieram ensinar o que você ainda desconhece em si mesmo. Problemas existem para expandir possibilidades. Para abrir portas, jamais fechar. Não fuja, enfrente. Mas flua ao invés de conflitar. Não rejeite nada mal construído em si, mas aceite o desafio de se reconstruir sob fundamentos diferentes e melhores. Não há poder maior”.

Indaguei se a verdade estava no avesso da realidade. O ancião sorriu satisfeito, disse sim com a cabeça e finalizou a lição: “Os conceitos e entendimentos gerais pelos quais o mundo se orienta costumam estar na contramão do fluxo do rio da vida. Nunca se deixe levar pela aparência, a verdade reside na essência. Nos frágeis encontramos os fortes, entre os inábeis se escondem os sábios, os mansos possuem a coragem, os pequenos são os grandes. A verdade se apresenta nos paradoxos. Menos é mais. Menos brilho, mais luz”. 

Uma majestosa lua crescente surgiu por trás dos desfiladeiros do Grand Canyon. Uma mulher com olhos cor de mel e modos delicados veio avisar que o cerimonial não tardaria. Fiquei com vontade de participar, mas o xamã disse que eu precisava partir. Outros portais seriam abertos durante o ritual, não havendo nenhum que me servisse naquele momento. Eu precisava terminar o que havia começado. Falou que a minha viagem pelo inconsciente coletivo para conhecer o Tao Te Ching estava próxima de terminar. Eu deveria honrar a oportunidade que me fora oferecida. Perguntei por onde eu partiria. O ancião me mostrou uma canoa na beira do rio. Agradeci a conversa e embarquei. Remei até o céu ficar revestido por um fantástico manto de estrelas, enormes e luminosas como eu nunca tinha visto. Quando me dei conta, percebi que formavam uma incrível mandala celeste. O rio parecia seguir em direção ao céu. Logo adiante, a canoa atravessou o portal.

Poema Setenta e Oito

Nada mais tranquilo e acolhedor do que as águas de um rio.

Nada melhor que a mansidão para desmanchar a rispidez.  

Debaixo do céu, o manso vence o bruto.

O frágil supera o forte.

Todos sabem, poucos conhecem.

Um antigo sábio ensinou:

“Quem se nega a caminhar sobre a lama do reino

Não está preparado para governar.

Quem toma para si os malfeitos do império,

Se torna rei”.

A verdade se apresenta nos paradoxos.

1 comment

Terumi novembro 13, 2024 at 1:12 am

Gratidão

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