MANUSCRITOS III

A realeza do mundo

 

O trem tinha me deixado cedo na estação da pequena e charmosa cidade que fica no sopé da montanha que acolhe o mosteiro. Como a minha carona até a sede da Ordem era para o final da tarde, decidi arriscar a encontrar aberta a oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos, lendária não apenas pela habilidade do artesão em costurar tanto o couro quanto as ideias, mas também pelos horários inusitados de funcionamento. Naquele dia a loja estava fechada, embora todo o comércio local estivesse em plena atividade. Um jornaleiro próximo me informou que o meu amigo tinha trabalhado noite adentro, cerrando as portas assim que amanheceu. Resolvi seguir para uma cafeteria em busca de uma xícara de café fresco e um pão com o bom queijo da região na chapa. Antes, comprei o jornal para me fazer companhia. Enquanto andava pelas ruas estreitas e sinuosas com calçamento de pedras, típicas daquela cidadezinha, passei os olhos nas manchetes e li que uma famosa rainha de um país europeu havia falecido. Embora o cargo fosse apenas protocolar e simbólico, sem qualquer poder administrativo, a reportagem relatava uma grande comoção. O enterro ocorreria com toda a pompa.

Ao entrar na cafeteria me deparei com Loureiro, sentado à última mesa, fazendo o desjejum enquanto lia o mesmo jornal. Abriu um sorriso sincero quando me viu, se levantou para me dar um forte abraço e me convidou para sentar com ele. Era um homem elegante. Magro, alto, com o corpo ágil e ereto apesar da idade, os cabelos completamente brancos. Ele vestia uma calça preta de fina alfaiataria acompanhada de uma camisa imaculadamente branca, com as mangas dobradas até a altura dos cotovelos e sapatos de confecção própria. A sua elegância sempre me chamou a atenção. Sentados, comentei a surpresa pela morte da rainha ter causado tanto burburinho. Sugeri que talvez fosse pelo fato de a realeza estar ligada à época romântica do mundo. Não que eu fosse a favor de qualquer tipo de absolutismo, muito pelo contrário, repudiava a centralização do poder público e o cerceamento das liberdades, individual e coletiva. Eu achava que a globalização deixara o mundo muito “sem sal”. Reis e rainhas eram de um tempo em que o mundo era mais elegante. Hoje, jovens de Paris, Tóquio ou do Rio de Janeiro se vestem iguais: jeans, t-shirts e tênis. As roupas, que sempre marcaram diferenças culturais, eram cada vez mais parecidas, assim como os hábitos e os gostos. Falei que o planeta estava ficando sem graça e as pessoas se ressentiam disso.

Loureiro esperou que a simpática garçonete me servisse o café e eu o bebericasse. Em seguida, disse: “Acho que não. Penso que muitas pessoas, ainda que inconscientemente, se sentem fragilizadas e abandonadas. Como reis e rainhas representam uma época em que os soberanos, apenas em tese, cuidavam dos seus súditos, a morte deles nos dias atuais, traz a sensação ancestral de orfandade por parte da população. Isto apenas ocorre quando o indivíduo ainda não consegue entender quem é, não consegue dar conta de si, se sente impossibilitado de equilibrar os próprios sentimentos ou não consegue articular com clareza as suas ideias. Então, transfere a responsabilidade pela sua felicidade e, assim, o falecimento de um monarca é interpretado como uma perda pessoal, capaz de afetar o seu bem-estar”.

“De outro lado, concordo que, aos poucos, a diversidade cultural do planeta vem se misturando e se tornando una. Fato que não considero de todo ruim. Isto não deixa o mundo sem graça, ao contrário, apresenta um novo gosto e sabor. Seguimos para a construção de uma cultura multidiversificada, uma cultura planetária. Abre-se a possibilidade de cada um conhecer o que considera mais interessante em cada cultura, inserindo ao jeito de ser e viver os aspectos que escolher para si. Como se todas as diferenças e possibilidades estivessem ao dispor de todos. Isto traz, ainda que em segundo plano, mas não menos valoroso, a ideia do cidadão planetário, da quebra de fronteiras, da igualdade de condições, da aceitação das diferenças, do respeito pelas liberdades, de relações mais justas, dos direitos mais amplos, desde que tomemos o devido cuidado para que nenhuma característica, de qualquer tipo, reste alijada na montagem desse novo mosaico. Para tanto, precisamos da atenção de todos para com todos, principalmente nas relações simples e comuns do cotidiano. Conheço pessoas que são assim. Estes são os verdadeiros príncipes e princesas do mundo”.

“A nobreza dos dias atuais não é mais caracterizada por essa bobagem de títulos nobiliárquicos nem por laços sanguíneos. Nobre é o indivíduo que trata os demais, seja filho, vizinho ou um mero desconhecido, como se ele fosse a pessoa mais importante do mundo. E, em verdade, é. O faz, não por encenação, mas por sentimento, com sinceridade e amor, pela consciência e responsabilidade em saber do valor dos mínimos gestos individuais na harmonia da obra coletiva”.

“Reis e rainhas do planeta são, desde sempre, aqueles que se aperfeiçoam na arte de amar o outro como a si próprio. Mesmo que ainda não consigam por completo, pela dificuldade da empreitada, avançam aos poucos e jamais desistem de tamanha conquista”.

“Penso que o mesmo raciocínio vale em relação à moda. Em essência, tanto faz jeans ou calça de alfaiataria, t-shirt ou camisa social, paletó de grife ou agasalho esportivo. Bonita é a delicadeza no trato pessoal, a gentileza com toda a gente. A generosidade é bela. Ser doce nunca sai de moda. É um estilo elegante de viver a vida”.

“Diferente não é em relação à riqueza. Dinheiro sempre esteve ligado ao poder e a nobreza, sendo uma marca registrada da monarquia de outrora. Os verdadeiros reis caracterizam uma nova geração de pessoas que conseguem entender que ‘tudo que tenho é tão e somente o que sou. Tudo o que sou é apenas o que consigo compartilhar’. Dividir uma moeda é muito importante para quem sente frio e fome; dar um abraço é agasalhar o coração de quem sofre e está faminto de amor. Oferecer um sorriso para espantar a tristeza, dizer uma palavra de esperança para adocicar uma alma amarga, mostrar a delicadeza no meio da selva da impessoalidade, são de uma nobreza incomensurável. É a possibilidade da beleza impensada. Nisto reside toda a força e poder. O resto são apenas máscaras tolas e ilusões vulgares”.

Calei-me por algum tempo. Esses conceitos falaram fundo em minha alma e fiquei metabolizando as novas ideias. Em seguida, começamos a conversar sobre outros assuntos até que a jovem garçonete, uma estudante de teatro que se sustentava com o trabalho na cafeteria, quando trazia o meu sanduiche, se atrapalhou e acabou derramando café na camisa branca do sapateiro. A moça ficou desconcertada e aflita, mas o transtorno foi logo contornado por Loureiro, que deu uma gostosa risada e disse para ela não se preocupar, pois gostava do novo estampado do tecido. Todos rimos. Ele, brincando, disse lamentar apenas o desperdício do saboroso café e pediu para que ela trouxesse mais para completar as nossas xícaras. Nisso, veio à nossa mesa o dono do estabelecimento, conhecido pelo seu temperamento irascível. Quando fez menção em brigar com a funcionária, o sapateiro o interrompeu de maneira educada: “A culpa foi toda minha. Esbarrei na bandeja enquanto ela nos servia. Peço desculpas pelo transtorno e pelo meu jeito atrapalhado”. O proprietário se calou e saiu. Desconfiei que ele ficou decepcionado por não conseguir dar a bronca que desejara. A garçonete, quando retornou com o bule de café para completar as nossas xícaras, ofereceu um lindo sorriso e murmurou um “obrigado” para o Loureiro. Ele sorriu de volta e sussurrou: “Agora temos um segredo”. Rimos e uma gostosa sensação de bem-estar me invadiu o coração.

A imagem do sorriso de Loureiro na cafeteria, com a blusa branca manchada de café, me veio à mente nos dias seguintes quando eu estava no mosteiro. A sua elegância e nobreza eram capazes de transformar o mundo em um lugar melhor para se viver. Dei-me conta que o meu amigo era um príncipe de verdade.

6 comments

Adenilda Lemos Amorim setembro 10, 2017 at 1:07 pm

Me sinto como o sapateiro, em to-
dos esses comentários que acabei
de ler.Muias vêzes me perguntei e,
a minha espiritualista nata que se-
gui.Minha falecida, amada mãe. se
era normal meu jeito humilde .Cla-
minha filha somos todos rei peran-
te Deus e iguais.Rico, pobre, mendi
gos e vai, segue no seu caminho na
direção do criador, obrigada mãe te amarei por todo sempre somos
iguais.Beijo querida. Assim seja🙌

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Claudia Pires setembro 12, 2017 at 9:57 pm

Grata pelo texto. Me foi reflexIvo.

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Joelma Papani setembro 14, 2017 at 12:35 pm

GRATIDÃO!

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Joane Faustino setembro 16, 2017 at 3:18 pm

Gratidão ♥️♥️♥️

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Michelle setembro 16, 2017 at 6:41 pm

😍

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Maura Alves de Brito janeiro 4, 2018 at 7:53 am

Gostaria de ter um loureiro em minha vida,para me orientar nas horas difíceis.

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