TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Décimo sétimo limiar – Sem rastros no Caminho)

Eu estava de volta ao Oriente. Dentro do palácio suntuoso, um grupo de serviçais sussurravam que o imperador estava nervoso. As suas feições denotavam preocupação. Talvez fosse medo. Em seguida, se dispersaram rapidamente. Segui pelo corredor e passei por algumas salas mobiliadas com requinte, embora estivessem vazias. Após várias portas, me deparei com um homem jovem por detrás de uma mesa escrevendo com nanquim. Ao me ver, ofereceu um sorriso amável e tornou a se concentrar no seu trabalho. Ao contrário dos demais, o seu rosto demonstrava uma serenidade inabalável, sem parecer dar importância ao mau humor do imperador. Tive a sensação que eu conhecia aquele homem tão tranquilo. Afastei a ideia por me parecer insensata. Aproximei-me dele. Após alguns instantes de silêncio, comentei que as pessoas estavam tensas no palácio por causa de alguma insatisfação manifestada pelo imperador. O jovem arqueou as sobrancelhas e esclareceu: “Faz parte da rotina de todos aqui. Quanto a isso, por ora, não há o que se fazer. No entanto, se deixar envolver pela energia densa gerada pelo descontentamento de alguém é uma escolha pessoal”.  Perguntei se ele gostava de trabalhar para o imperador. O homem foi enigmático: “Há muitas maneiras de governar. Os melhores soberanos não são notados.Os bons são amados e louvados.Depois, vêm os temidos.Por fim, os desprezados. A compreensão é sua”. Falei que eu não tinha condições para elaborar qualquer análise. O escriba me desconcertou: “Cada pessoa é o governante da própria vida, ou ao menos deve se esforçar para tal função. Em qual dos modelos você acredita se encaixar?”.

Questionei sobre a importância da pergunta. O homem esclareceu: “A exata resposta ajuda a entender como você se relaciona consigo mesmo”. Fez uma pausa para acrescentar: “Define também como você anda no mundo e enxerga a verdade”.

Ponderei que eram conceitos que precisavam de melhores explicações para que eu pudesse dar a resposta adequada. Ele era um homem gentil: “Os melhores soberanos são aqueles que atravessam a existência com leveza; oferecem muito e, em troca, nada exigem. Levam consigo apenas as virtudes já agregadas ao ser. Conseguem integrar a verdade, no limite que a alcançaram, e os melhores sentimentos em um mesmo propósito de Luz, e assim, vivem afinados com as leis cósmicas que ordenam a evolução de toda a gente. Nada nem ninguém obstrui a sua caminhada. Possuem percepção e sensibilidade apuradas para compreenderem que, a depender de cada movimento, o fluxo da vida irá se intensificar ou se retrair. Assim, como um bom barqueiro que aproveita a correntes e as marés para realizar grandes travessias, eles transitam pelas veredas dos acontecimentos, desconhecidas às pessoas comuns, e transcendem para além dos dias”. O escriba repousou sobre a mesa o pequeno pedaço de bambu com a ponta fina, que usava para escrever, e prosseguiu: “Ao viver assim, o pensamento se torna claro e criativo, a energia vital fica vibrante, as emoções se sutilizam, gerando as condições adequadas ao florescimento de outras virtudes. Humildes e simples, preferem desaparecer no meio da multidão, como se fossem invisíveis. Não se elogiam nem criticam os outros. Têm sempre um sorriso no rosto e são cuidadosos com todos. Constroem incessantemente e seguem em frente. Expressam a verdade de maneira clara e serena para aqueles dispostos a conhecê-la, sem jamais a impor a ninguém. Não brigam nem entram em disputa por coisa nenhuma. Têm tamanha suavidade que parecem voar. São os sábios”.

Ele prosseguiu: “Existem os bons. Ora, eles são necessários e arriscaria afirmar que são indispensáveis pelo bem que promovem. Estão sempre dispostos a acrescentar, ajudar, construir, prover, arrumar e consertar. São generosos e delicados. O mundo precisa muito deles e todas as homenagens prestadas são muito justas e merecidas. Contudo, ainda estão apegados à própria obra; sentem a necessidade de que os seus nomes sejam lembrados pelos seus feitos. Ficam ressentidos se forem esquecidos pelo povo, afinal, são honestos benfeitores. Porém, ao se aprisionarem às suas obras, esta ponta de apego e vaidade trava o fluxo da transição seguinte que os levaria a um ponto mais adiante no Caminho”.

O homem continuou com a explicação: “Há os temidos. São os que regem a si pelo orgulho e aos outros pelo medo. Quando praticam uma boa ação,não agem por virtude, mas por interesse. Costumam ter uma relação ambígua, ora de dependência, ora de dominação, com o mundo. Uma relação carcereiro-prisioneiro em todos seus relacionamentos, como se fosse o único estilo possível para ser e viver. Temem a prisão e o inferno. Têm por prática construir um raciocínio tortuoso para justificar os erros inconfessáveis. Mentem para eles mesmos”.

“Por fim, temos os desprezíveis. Não é necessário explicar muito sobre eles. São aqueles que se movem guiados pelas próprias sombras e não possuem qualquer resquício de virtude. Gananciosos, ciumentos, mesquinhos, rasteiros e sem qualquer empatia com o povo. Vivem apenas em função de seus próprios interesses. Seus corações são impenetráveis”.

O escriba me olhou com seriedade e indagou: “Em qual dessas classificações você acredita se adequar?”. Ao perceber a minha hesitação, esclareceu: “Não precisa dizer para mim, basta que você seja capaz de ouvir a si mesmo com sinceridade”, fez uma pausa e explicou: “Ajudará muito para você localizar o ponto em que se encontra na viagem à verdade; então, corrigir o prumo, o rumo se ajustará. Não tenha pressa em seus passos, mas cuide para que sejam firmes. Grandes saltos levam às quedas abissais. Tenha paciência, ofereça sempre o seu melhor e preste muita atenção. O Caminho é um sábio a lhe ensinar tudo que precisará aprender. No entanto, não esqueça, você é o seu próprio mestre. Embora ainda em construção”.

Pedi para falar mais sobre aqueles que ele denominava como os melhores governantes. A gentileza daquele homem parecia sem fim: “Eles fazem a obra sem dizer duas palavras”. Falei que não tinha entendido. Ele falou: “Existe poder e magia nas palavras. Alguns aspectos merecem consideração. Existe uma métrica exata nas palavras capaz de ressaltar a força de uma ideia; menos que o necessário leva ao mal entendimento, discursos longos dispersam a energia do pensamento”. Fez uma breve pausa antes de prosseguir: “Use as palavras mais simples para facilitar a compreensão; deixe a sofisticação para os que anseiam por admiração. Fale de maneira serena; a irritação furta o entendimento de quem está emprestando os ouvidos. Atente-se para que não reste dúvida quanto a sua intenção; deixe a fuga das entrelinhas para os políticos e magistrados”. Em seguida, pontuou: “O mais importante. Nunca aja de modo a desmerecer a palavra; ninguém é o que fala, mas o que faz”. E acrescentou: “Portanto, que as realizações sejam sempre mais grandiosas do que o discurso; que a ação torne a retórica desnecessária”.

Pedi que falasse sobre características desses sábios. O escriba sorriu e disse: “Eles têm o dom da sutileza; espalham sementes no deserto com cuidado para que ninguém os veja. Depois do jardim florido, o povo achará que a obra surgiu do acaso.Contudo, os sábios não se preocupam com isso. Eles compreendem que, em realidade, a obra não é o jardim, mas o gesto de amor, seja através de uma palavra, abraço ou pingo de tempo oferecido em atenção; um ato de aparente singeleza, mas capaz de fazer alguém descobrir a própria beleza onde antes nenhuma rosa florescia face a aridez do coração”. O meu encantamento o fez prosseguir na explicação: “Os autênticos sábios ensinam sem que os aprendizes percebam a lição oferecida; aprendem por se afeiçoarem à beleza da vida. Eis a estética do ser. Não anseiam o mestrado, as homenagens nem querem seguidores; apenas mantém acesa a própria luz para iluminar os cantos escuros de qualquer pessoa”.

“Por vezes, os indivíduos chegam aflitos com problemas sem solução. Com a delicadeza habitual, por saber que sempre é possível mudar o ponto de observação sobre qualquer situação; o sábio sugere um pequeno passo à frente. Ao alterar o ângulo da visão, a equação se modifica e a solução impensada se apresenta. Uma porta se abre. Sem perceber o movimento, muitas pessoas acreditam que foram elas que encontraram a saída. Por trabalhar à serviço da Luz, o sábio não se importa nem espera pelos agradecimentos; alegra-se pela evolução provocada. Tão e somente. Ele não se destaca na multidão nem deixa rastros por onde passa. Ter seguidores é criar ambientes de dependência. Isto é a linguagem das sombras; um idioma que se recusa a usar”.

Questionei a razão de os sábios utilizarem esse método de ensino. O escriba esclareceu: “O sagrado habita dentro de cada pessoa; ninguém o encontrará em nenhum outro lugar. Em seu degrau mais alto, a virtude da fé consiste em movimentar esse incomensurável poder adormecido no âmago de todos os indivíduos em favor da Luz. Para tanto, confiar em si mesmo é fundamental. A força e o equilíbrio estão na mente; a beleza e a grandeza aguardam no coração. Enquanto acreditarmos que somos incapazes de encontrar respostas e soluções de todos os problemas através da mudança de olhar, será impossível superarmos os obstáculos e, por consequência, evoluirmos. Mais grave, ficaremos aprisionados aos medos e teremos o sofrimento como companhia”.

Questionei se essa prática não poderia iludir as pessoas sobre poderes fictícios. Ele discordou: “Toda árvore alta e robusta nasce de uma pequena e singela semente que, se falasse aos tolos sobre guardar consigo o potencial de toda uma floresta, seria motivo de escárnio. Ao acreditar em si, fará com que árvores germinem em sequência sem fim. Movemos a fé através da confiança irrestrita. Quando a confiança é limitada, não há nenhuma confiança; todo poder se esvai pelos ralos da existência”. Arqueou os lábios em belo sorriso antes de concluir: “Tudo se inicia com o movimento que faz surgir um singelo ramalhete de confiança no solo da alma. Se o indivíduo o alimentar para que um dia se torne uma árvore frondosa, repleta de flores e frutos, terá compreendido o poder da vida. É como ensinar a uma criança a andar; primeiro estimulamos a sua confiança ao emprestar a nossa mão; em seguida, por acreditar que pode andar sozinha, ela assim o faz”.

Falei que nunca tinha me dado conta de que a confiança seria um atributo tão importante para o Caminho. O escriba esclareceu: “Mais do que um atributo, é uma autêntica virtude, degrau para outra maior, a fé. Não falo das crenças e idolatrias insensatas quase sempre movidas por medo e interesses mesquinhos. Até porque o berço do medo é a descrença quanto a capacidade das forças individuais e interesses vis não dialogam com a Luz”.

Pedi para que explicasse melhor a afirmação de que acreditar em mim mesmo seria movimentar o sagrado que me habita. Ele esclareceu: “É realizar as transformações necessárias confiando na capacidade de escrever a própria história, é desconstruir as dificuldades através do poder incomensurável de superação que todos trazem consigo. É me encontrar, me resgatar, me pertencer e caminhar. Descobrir a beleza que desconhecíamos dentro da gente é uma das manifestações mais sagradas do universo. A fé me concede o poder dos voos inimagináveis. Ela é essencial para eu me tornar tudo aquilo que posso ser”. Fez uma pausa antes de concluir: “Somente a fé dissolve o medo; sem ela, não há paz. Não me refiro à ordem pública, mas a um coração alegre e sereno”.

Em seguida, fez a ressalva para uma armadilha comum e vulgar: “Preste atenção, confiar em si, mas não se mover por amor, não é fé. Trata-se de mera arrogância”.

Fomos interrompidos por uma jovem serviçal. Tive a sensação que também a conhecia. Em voz baixa e tom tranquilo, ela chamou o homem pelo nome. Em seguida, avisou: “O imperador o chama”. O escriba pediu licença e, sem se abalar com a convocação, deixou a sala. Foi quando me lembrei de onde eu os conhecia. Fechei os olhos para me recordar dos detalhes, mas uma fantástica mandala se apresentou na minha mente para dar continuidade àquela estranha viagem.

 

Poema Dezessete

 

Os melhores soberanos não são notados.

Os bons são amados e louvados.

Depois, vêm os temidos.

Por fim, os desprezíveis.

Fazem a obra sem dizer duas palavras.

O povo acha que a obra surgiu do acaso

Ou que foram eles que encontraram a saída.

Quando a confiança é limitada,

Não há nenhuma confiança.

 

3 comments

Fernando abril 5, 2022 at 11:54 pm

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem fim…

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Jean abril 16, 2022 at 5:24 pm

Não existem coincidências, eu precisava muito ler esse texto e o universo me encaminhou a ele.

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Terumi abril 30, 2022 at 12:58 am

Gratidão 🙏

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