Ao estacionar o carro em frente à casa de Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de perpetuar a filosofia ancestral do seu povo através de histórias e músicas, notei que havia várias pessoas na varanda. Ao me aproximar, percebi que, a exceção do xamã, todas estavam irritadas. Não ouvi palavra, porém, traziam na face a expressão do desagrado. Quando entrei, saíram sem se despedir, reação que confirmou a impressão inicial. Apesar do desconforto, fui recebido com alegria e um forte abraço como de costume. Depois de deixar a mala e a mochila no quarto de hóspedes, acomodei-me no sofá da varanda, ao lado da cadeira de balanço na qual Canção Estrelada preenchia com fumo o fornilho de pedra vermelha do seu indefectível cachimbo. Depois, o acendeu, baforou algumas vezes e observou a fumaça bailar diante dos seus olhos tranquilos, ao sabor da brisa fria daquela tarde de outono. Comentei que as pessoas que saíram, quando cheguei, pareciam zangadas. O xamã concordou com um movimento de cabeça e disse: “Eram o meu irmão, a esposa e o cunhado”. Perguntei se tinha acontecido algum desentendimento. Canção Estrelada explicou: “Eles moraram na Flórida durante muitos anos. Tiveram vários negócios. Por diversos motivos, nenhum deu certo. Retornaram. Vieram me pedir para ser fiador de um empréstimo bancário. Querem começar um novo empreendimento. Propuseram-me sociedade. Respondi que não tanto ao pedido quanto à proposta”. Questionei o motivo. Ele esclareceu: “Em alguns casos, o não é uma mensagem completa”.
Mudei de assunto. Eu estava ali para participar do cerimonial do equinócio de outono. Conversamos um pouco sobre o ritual e Canção Estrelada saneou várias das minha dúvidas. O mundo espiritual não se compreende com uma única equação. Quando a lua já estava alta, fomos descansar. No dia seguinte, estávamos à mesa para o café da manhã, quando fomos surpreendidos com a chegada do irmão do xamã. Agasga era o seu nome. Fisicamente era muito parecido com o xamã, mas pude notar que os seus modos eram bem diferentes. Não tive dúvida de que ele estava ali para dar continuidade à conversa do dia anterior. Falei que os deixaria a sós. Canção Estrelada fez um gesto com a mão para eu ficar sentado. Sem rodeios, Agasga questionou o irmão sobre a recusa em o ajudar em seu novo empreendimento. Em tom respeitoso, pausado e claro, o xamã explicou: “Eu teria de hipotecar esta casa. Como ao longo dos anos você demostrou não gerir bem os negócios que teve, não me sinto confortável em saber que dentro de alguns meses o banco poderá me tomar esse refúgio. Fora a caminhonete enferrujada estacionada lá fora, nada mais tenho. Nem preciso. Ganho o necessário para me alimentar e usar roupas limpas. O suficiente me basta. No entanto, no momento da atual curva da minha vida, a casa me é importante. Não estou disposto a correr o risco”. Agasga lembrou que o irmão sempre defendera a ideia de que os riscos são inerentes à vida. Dizia ser impossível viver plenamente sem se lançar às aventuras. Canção Estrelada ponderou: “Os riscos estão conectados à coragem, a virtude de realizar uma jornada que, embora entenda necessária, não se tem certeza sobre o seu desfecho. Tratam de experiências indispensáveis ao crescimento e ao autodescobrimento de todas as pessoas. Contudo, entenda, a jornada desse empreendimento não é minha, é sua. Logo, os riscos também devem ser seus, não meus. Não me parece justo nem sensato que caiba a mim os riscos da sua aventura”.
Agasga argumentou que eram da mesma família, tinham o compromisso de se ajudarem mutuamente. O irmão explicou: “Sem dúvida, a solidariedade é um atributo essencial ao mundo e elemento primordial à filosofia do nosso povo. Contudo, todos os aspectos e atributos que envolvem uma relação, a generosidade entre eles, exigem limites, importantes fronteiras das relações pessoais. Há muita sabedoria em compreender onde estabelecer os seus marcos, assim como em os manter. Determino o ponto que cada pessoa pode ir e onde não me agrada que esteja em minha vida. Assim como decido aceitar ou declinar de um convite quando o recebo. Trata-se de um direito natural. Ao permitir que desrespeitem as minhas fronteiras, me afasto da minha essência. Ao autorizar uma invasão, restarei desequilibrado e enfraquecido”. Fez uma breve pausa antes de concluir: “Não, eu não quero ir aonde você deseja que eu vá. Essa jornada é sua, a responsabilidade também; não a transfira para mim”.
Agasga disse que o irmão mudara muito. Tinha se transformado em uma pessoa egoísta, apegada a bens materiais e incapaz de compartilhar bons sentimentos. Sibilou preferir a pessoa que o xamã tinha sido no passado em detrimento a quem se tornara. Canção Estrelada arqueou os lábios em sorriso quase imperceptível, como se esperasse por um ataque nesse nível, e se colocou: “Dizer que eu mudei é um elogio; não há evolução sem transformação. Embora nem todas sejam do agrado de todos. É comum a revolta em quem se acostumou à falta de limites e experencia uma negativa. Entender a responsabilidade por si mesmo ajuda a compreender os parâmetros de responsabilidade sobre os outros. Limites saudáveis e conscientes nada têm a ver com egoísmo. Todas as relações precisam de fronteiras bem demarcadas para evitar abusos e se mostrarem úteis na preservação da vontade, do olhar, das diretrizes e valores de cada pessoa”. Fez uma pausa antes de concluir: “Neste momento você talvez até tenha alguma dificuldade em aceitar, mas o não que eu digo é um ato de profundo respeito por mim. Não se trata de pactuar com o egoísmo, mas de manter uma relação amorosa com diálogos intensos, profundos e sinceros comigo mesmo. Ninguém deve renunciar a isto”.
Canção Estrelada prosseguiu: “Posso colaborar contigo de outras maneiras, como trabalhar voluntariamente algumas horas por dia em seu novo negócio até que haja condições de contratar funcionários; ou contribuir com um valor mensal, dentro das minhas possibilidades, na ajuda do aluguel da loja por um período pré-determinado. Qualquer outra ideia que você tenha sobre o modo como eu possa ajudar, estarei disposto a analisar”. Agasga lançou sobre o irmão um olhar de desprezo e se declarou desiludido; tinha saudade do irmão que um dia teve e não mais existia. Girou nos calcanhares e foi embora.
Silêncio. O xamã apanhou uma maçã no cesto de frutas sobre a mesa e, sem pressa, a cortou em vários pedaços, como se o ato o ajudasse a pensar com calma, evitando que a ação de Agasga gerasse em si uma reação desestabilizadora. Perguntei se estava tudo bem. Canção Estrelada colocou um dos pedaços da maçã na boca e o mastigou com os olhos fechados, lentamente, como se o mel da fruta ajudasse a adoçar o momento. Em seguida, disse: “Sim, estou bem. A hostilidade e o inconformismo pertencem a ele; não permitirei que ocupem lugar em mim, tampouco me arranquem do meu eixo de luz. Os limites são as demarcações entre o que você está disposto a permitir e o que o deixa desconfortável. Ninguém pode viver bem ao se sentir contrariado consigo mesmo. O sim e o não manifestados de maneira consciente mantêm o direcionamento da vida sob o controle da própria pessoa. Trata-se de um mecanismo fundamental de preservação da identidade e da autodeterminação. A ausência desses elementos torna a liberdade uma figura de ficção”. Fez uma breve pausa antes de concluir: “A ausência de limites, a falta de capacidade em os manter ou a sua eventual porosidade, por onde os abusos se infiltram, geram relações enfermiças. Enquanto de um lado, interesses – muitas vezes irresponsáveis – são atendidos, do outro, restará um rastro de mágoas e constrangimentos por ter se permitido algo na contramão da própria consciência. Num relacionamento sem limites, ou mesmo em uma situação isolada na qual as fronteiras existenciais não sejam defendidas, restará apenas dominação, manipulação, abuso ou chantagem emocional de uma pessoa sobre a outra”.
Comentei que o seu relacionamento com o irmão ficaria prejudicado. Sem dúvida, a negativa do xamã afastaria Agasga. Canção Estrelada franziu as sobrancelhas e discordou: “Não necessariamente. Limites estruturam o respeito. O impacto inicial da frustração poderá causar algum distanciamento, porém, ao longo do tempo, o olhar dele mudará; deixará de me ver como um incauto ou uma presa fácil para me enxergar com o respeito que fiz por merecer”. Pedi para que explicasse melhor. Ele esclareceu: “Se eu cedesse daria margem a alimentar um comportamento que não concordo. Relacionamentos assim não me interessam. Relações saudáveis se pautam em respeito mútuo, um lindo jeito de amar e se sentir amado”. Ponderei que Agasga não me parecia disposto a modificar o seu jeito de ser. O xamã deu de ombros e argumentou: “Não me cabe mudar ninguém. Contudo, posso mudar o modo como me relaciono com as pessoas. Se prestar atenção perceberá que ninguém nos obriga a nada; somos nós que ainda não temos força e equilíbrio necessários para viver de acordo com a verdade conforme a compreendemos. Enfim, ainda falamos sim em situações que precisamos dizer não. Nesses casos, embora o mal seja uma permissão incoerente, indevida e indesejável, ainda assim é uma permissão”. Mastigou mais um pedaço de maçã e acrescentou: “Uma relação baseada no abuso e no desrespeito não me interessa. Só me fará mal. Em contrapartida, ao me respeitar estabeleço regras saudáveis de convivência. Da próxima vez, Agasga já saberá o ponto que jamais conseguirá ultrapassar. Não haverá a aspereza desta manhã. O relacionamento será construído, ou reconstruído, em moldes mais luminosos. O meu irmão se casou muito jovem e se mudou do Arizona. Falamo-nos pouco desde então. Mas desde sempre viveu influenciando as pessoas a fazer o que ele queria. Acostumou-se a essa prática. Agora que retornou, não me cabe o convencer a agir diferente. Nenhuma consciência se modifica por coerção, mas por gosto e sabor. Resta-me deixar claro para ele como eu me relaciono comigo e com o mundo. Sim é sim, não é não no estrito âmbito da minha autonomia; não necessito da autorização de ninguém para isto. Não há necessidade de conflitos ou brigas. Se não for capaz de melhorar o relacionamento, ao menos evito um modelo insalubre de relação. Terá valido a pena”.
Questionei quais seriam as consequências do encontro daquela manhã com Agasga. Canção Estrelada balançou a cabeça como que dizendo que as consequências eram inevitáveis e explicou: “Não sei como ele irá elaborar a experiência. Pode se vitimizar, lamentar e falar mal de mim, o que não o levará a lugar nenhum; ou pode servir como conteúdo para importantes reflexões sobre o seu comportamento; se trouxer transformação, significa que Agasga conseguiu avançar. Conhecerá uma maneira mais autêntica, sincera e justa de conviver com as pessoas. Depende apenas dele”. Indaguei sobre os efeitos que o atingiriam, Canção Estrelada. Ele sorriu e esclareceu: “Já os sinto neste exato instante. São vários e bastante benéficos. O constrangimento temporário por dizer não em prejuízo a um ressentimento de longa duração caso falasse sim; a agradável sensação por eu ter me respeitado em detrimento à emoção densa por ter permitido que destruíssem um pedaço de mim; a alegria por ter mantido um diálogo honesto e justo comigo mesmo ao invés de tomar uma atitude contrária ao meu olhar, diretrizes, sentimentos e valores apenas para agradar outra pessoa. Não permitir que ninguém pense, fale ou decida pela gente é uma demonstração clara de autorrespeito, equivalente a um spa espiritual; não há jeito melhor para cuidar de si mesmo. Em movimentos assim, a maturidade e a identidade aprofundam um pouco mais os seus pilares, reverberando em dias leves e suaves”.
Perguntei se ele concordava que o não era mais poderoso que o sim. O xamã respondeu de pronto: “De jeito nenhum. Não foi isso que eu disse. Na balança das relações, o sim e o não têm o mesmo peso. Existe o momento certo para expandir os limites, assim como a hora exata de os restringir. Não podemos nos tornar prisioneiros da inflexibilidade e do rigor, tampouco vítimas da apatia e da subserviência. Tudo muda de acordo com as pessoas e as situações. Tudo muda na medida que nos conhecemos mais e melhor. A verdade se expande, os sentimentos se modificam. Há de haver harmonia, resiliência, bom senso, amor e sabedoria para manejar as fronteiras das relações. Lembre-se, cada um mora em si mesmo. Os limites são como a porta de entrada da casa. Se ficar escancarada, entrarão intrusos indesejados; haverá furtos, bagunça e confusão. Ninguém vive bem em um lugar assim”. Ofereceu-me uma fatia da maçã, esperou eu aceitar e continuou: “Caso a porta nunca se abra para ninguém entrar, você perderá a riqueza, as experiências e alegrias típicas da convivência, impossíveis de serem conseguidas de outra maneira. Sentirá abandono e será esquecido. Em nenhuma das situações, jamais culpe o mundo pelo mal que causar a si mesmo”.
4 comments
Gratidão por essa bela lição
Obrigado! Obrigado! Obrigado!
Sincronicidade impressionante, casou muito bem com o último texto.
Gratidão! 🙏🙏