TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Quadragésimo segundo limiar – A caixa)

Era um rio caudaloso. Muitas pessoas se banhavam como em um ritual de purificação; não do corpo, mas da alma. Sentado ao longe, um homem observava em silêncio. Algo nele me chamou atenção quando nossos olhares se cruzaram. Nada referente ao seu aspecto físico; uma indescritível bondade irradiava dos seus olhos. Como se o mundo coubesse dentro do seu coração. Ele sorriu quando me aproximei. Embora ele nada tivesse falado, me senti convidado a me sentar ao seu lado. Ficamos algum tempo sem dizer palavra até que perguntei se ele sabia o que significava aquele ritual. O homem disse: “Muitas coisas. Em resumo, essas pessoas buscam se conectar com a fonte primordial da vida”. Indaguei se para isso é necessário um ritual. Ele explicou: “Indispensável não é. Contudo, essa conexão nem sempre é fácil por causa das energias pesadas provocadas por ideias lentas e emoções densas. Ao contrário do que muitos acreditam, muitas vezes o sofrimento atrapalha mais do que ajuda à conexão. As dores emocionais geram desejos de frustração, rancor e vingança; cria-se uma barreira energética espessa dificultando o intercâmbio vibracional”. Olhou as pessoas no rio por alguns instantes, se virou para mim e disse: “Os rituais servem para preparar a mente e o coração de modo a facilitar o acesso às camadas mais sutis de existência. Enquanto lavam o corpo, se esforçam mental e emocionalmente para que maus pensamentos e sentimentos também sejam lavados e levados pelas águas do rio. A consciência se prepara para o diálogo sagrado na tentativa de encontrar diferentes e melhores entendimentos, seja sobre si mesmo, seja sobre tudo e todos ao redor. Quando consegue, a vida se transforma porque deixamos de ser quem somos para dar passagem a uma versão aperfeiçoada de nós mesmos”. Deu de ombros e concluiu: “De múltiplas maneiras, para isso servem os rituais”. Fez uma breve pausa antes de acrescentar: “O simples ato de rezar sempre em um mesmo cantinho tranquilo dentro da sua casa, onde você intuiu que a conexão é mais intensa, não deixa de ser um ritual tão poderoso quanto qualquer outro”.

Pelo seu biotipo, eu sabia que ele não era daquele lugar. Perguntei o que fazia ali. Arqueou os lábios em lindo sorriso e disse: “Há alguns anos, escutei dos lábios de um carpinteiro palavras que, se aplicadas à prática, são capazes de mudar a vida de qualquer pessoa. Entre essas lições, ele disse que se não encontrarmos o Reino dos Céus dentro da gente, não o acharemos em lugar nenhum. Ele tinha autoridade para falar, pois vivia à risca tudo o que dizia. Após a sua partida, o grupo que o acompanhava se dividiu pelo mundo para semear os seus ensinamentos. Roma, Jerusalém, Gália, Éfeso e Ásia Menor são alguns desses lugares; eu vim um pouco mais ao oriente. Somos os homens do Caminho, aqueles dispostos a percorrer a difícil, porém, fantástica estrada da luz”. Pedi para que falasse mais sobre essa estrada. Ele explicou: “Vivemos dentro e fora da gente ao mesmo tempo por todo tempo. Todas as situações são experiências a serem elaboradas em virtudes e verdade, ou seja, amor e sabedoria em prol do aperfeiçoamento pessoal. Se isso não aconteceu, significa que a experiência foi mal elaborada”. Questionei sobre a origem e o destino do Caminho. O homem respondeu: “O Caminho gerou o um; o um gerou o dois; o dois gerou o três; que gerou todas as pessoas”.  Ao perceber uma enorme interrogação em meu olhar, se adiantou em explicar: “A origem do Caminho é também o seu destino, a fonte primordial de toda as vidas. Viajar em sentido à luz é voltar para casa como fez o filho pródigo; é retornar à fonte sagrada das criaturas. Cada um traz em si uma fração divina em estado tosco ou, como preferem alguns, adormecida. A alma; um espírito vivendo experiências humanas como método de aperfeiçoamento. Para organizar essa escola, onde aprendemos, e oficina, na qual colocaremos em prática esses ensinamentos, foi necessário o empenho ininterrupto de espíritos dedicados e amorosos. A hierarquia se estabelece pela intensidade da luz conquistada. Entenda por luz todo amor e sabedoria agregados ao espírito que somos. Aquele que recebeu a tarefa de conduzir o planeta nesse processo evolutivo está sentado no lugar mais alto. Chamamos de Pai na tradição cristã. No Egito Antigo era conhecido como Isis; entre os hindus é denominado Brahma; Virgem pelos celtas; os vikings o chamam de Odin; os budistas o conhecem como Adi-Buddha. Aquele que chamamos de Filho e Espírito Santo, são conhecidos como Vishnu e Shiva; Osíris e Hórus; Frigga e Thor; Dhyanna-Buddhas e Dhyana-Bodhysattwas, nas respectivas tradições religiosas. Guardadas as devidas diferenças oriundas das diversidades culturais, constatamos três modelos únicos com nomes distintos: o Criador, o Mantenedor e o Regenerador. Há um micro padrão cósmico no âmago de cada pessoa. O universo está em expansão em igual formato das consciências individuais. Cria-se dentro da gente um novo entendimento que, quando alimentado, nos impulsiona para além de quem somos. O mantemos como útil e verdadeiro até o seu último limite quando, para seguir em frente, teremos que o aprimorar ou o refazer. Ao darmos sequência, renascemos em nós, dando lugar a alguém em semente que precisa florescer. Os filósofos chamam de ciclos evolutivos esse infinito processo de aprender, se transformar, viver o novo eu até que se esgote para, em seguida, seguir em busca de constantes renascimentos. A cada ciclo, um pouco mais de luz. Aproximamo-nos de casa.

O homem continuou a explicar: “Em nosso atual estágio evolutivo, somos sombras à procura de luz. Entender essa verdade é começar a compreender a importância da verdade e das virtudes. Ainda nos degraus iniciais, somos impactados pela intensa influência do medo, do orgulho, da vaidade, da ganância, do ciúme, do ódio, entre outras sombras a interferir em nosso entendimento quanto a verdade de todas as coisas, situações e pessoas; principalmente sobre quem não somos. O olhar nebuloso impede o livre pensar, restringe os bons sentimentos e limita o agir. Chamamos de verdade os enganos. Sofremos como consequência inevitável da própria ignorância. Embora as sombras nos façam acreditar que sirvam como mecanismos de proteção, em verdade, elas nos fragilizam e desequilibram, pois nos oferecem a ilusão de quem não somos; acreditamos possuidores de um poder que, por ter sido gerado em fonte de águas poluídas, termina por nos envenenar. Com equivocada percepção da realidade e uma sensibilidade desregulada, compreendemos e atribuímos valores irreais aos acontecimentos. Sofremos mais e mais. Amaldiçoamos os problemas. Sem nos dar conta, nos embaralhamos neles e, pior, os atraímos por não saber lidar com as experiências educativas oferecidas pelas situações cotidianas. Se o sentido da vida é a evolução, aprender é o primeiro passo para a transformação. Por isto, os problemas. Cada dificuldade serve para mostrar uma face desconhecida da verdade sobre quem podemos ser. Agradeça por cada uma delas, são oportunidades maravilhosas. Qualquer problema deixa de existir quando aprendemos a solucioná-lo; então, mesmo que retornem, não causarão medo, angústia ou dor, pois, saberemos lidar com eles. Dificuldades aperfeiçoam o olhar; ao compreendermos a verdade por um viés inusitado, restará evidenciada a importância de uma nova virtude como maneira genial de equacionar problemas até então insolúveis. As autênticas conquistas estão simbolizadas por cada uma dessas virtudes, como valiosas ferramentas a disponibilizar um diferente e incomensurável poder para se mover com suavidade e leveza pelos dias.  Aos poucos, vamos nos libertando de todos os medos, conflitos e sofrimentos. Nada mais nos assusta, irrita ou entristece”.

Questionei se o Caminho é o espaço intrínseco onde cada pessoa se move em si mesma. O homem fez uma importante consideração: “O movimento necessita do vazio. Não me refiro ao vazio do abandono ou da desorientação, daqueles perdidos em si próprios. Falo do espaço interno disponível no qual os movimentos evolutivos irão germinar e amadurecer para gerar as flores e os frutos das transformações existenciais. Criar, crescer até o limite daquela possibilidade e depois renascer um sem-fim de vezes é o ciclo de despertamento da alma. Para tanto, assim como um pintor precisa de uma tela em branco para expressar a sua arte, o vazio é o lugar indispensável às transformações pessoais. O que está na caixa é o que você conhece sobre você. A caixa o define, limita e espreme. O vazio é o espaço aberto aos movimentos expansionistas”. Fez uma pausa como se escolhesse as palavras exatas para o melhor entendimento e disse: “Quem eu sou me trouxe até aqui; para seguir preciso me tornar uma pessoa diferente e melhor. Tudo isto sem perder a essência, ao contrário, fazendo que ela suba à tona ao retirar as camadas espessas e rudes que a impedem de reverberar toda a sua luz. Quando me permito, evoluo para além de quem eu sou; vivo esse novo momento até que eu alcance todas a oportunidade de avanço. No entanto, existe um limite; sempre há. Significa que uma nova transformação intrínseca se mostra necessária para eu seguir em frente; um novo vazio precisar ser estruturado para que haja lugar para o próximo renascimento”. Franziu as sobrancelhas ao alertar: “Quando paro de me mover ou faço movimentos sem direção, em verdade, me mantenho estagnado. Neste momento começam a se erguer as paredes da caixa que irão me aprisionar em mim mesmo; Depois, a caixa se fecha e os dias escurecem em medo; momento seguinte, as paredes me espremem provocando dores crescentes. É a vida sinalizando que para reencontrar a paz e a liberdade se faz indispensável sair da caixa”. Fez um gesto com a mão como se falasse o óbvio e acrescentou: “Os fatos são diversos, mas essa é a síntese das histórias de todas as pessoas que se negam às mudanças”.

Ele prosseguiu: “A vida exige movimento. Do contrário, haverá estagnação, um lugar onde a alma apodrece. Na contramão da vida, surge o desequilíbrio, as confusões e os medos típicos das criaturas que vivem dentro da caixa. Elas acreditam que as paredes maciças da caixa as protegem; em verdade, as paredes as fragilizam por as impedir de crescer”. Esperou instantes para que eu concatenasse as ideias e falou: “O vazio, local onde ocorrerá o renascimento do indivíduo em uma mesma existência, está do lado de fora da caixa. No vazio nos aguarda todo o potencial da vida”. Em seguida, acrescentou: “Restringida pelas paredes da caixa, a energia vital não consegue se manifestar em criação, então, começa a desintegrar toda a estrutura interna da criatura; como uma casa que desaba por ter os alicerces corroídos ou como água parada que apodrece por falta de uso, se tornando foco de enfermidades. Quando nos fechamos à evolução, adoecemos ou desabamos. A estagnação é a negação da vida”.

Pedi para que explicasse melhor esse movimento de ir para fora da caixa que somos, onde encontraremos o vazio da expansão. Ele estava disposto a me ensinar: “As criaturas estanques em criação não querem se sentir pequenas. No entanto, dão importância desmedida à opinião alheia, se deixam engessar por ideias que alimentam sentimentos insalubres. Para elas, o sucesso e a vitória estão ligados às coisas do mundo, aos mecanismos de fascínio e domínio sobre outras pessoas. As suas fragilidades, sempre tão bem escondidas, jamais podem se revelar. Confundem humildade com submissão, compaixão com fraqueza; tratam a simplicidade como algo desprezível; usam da soberba e da arrogância como se fossem escudos da dignidade ou da honra. Justamente as características que as fazem acreditar fortes e grandes são as que as enfraquecem e diminuem. Os atributos que os toscos desprezam, são aqueles que os sábios admiram e buscam. As virtudes não são espetaculosas nem geradoras de fortuna, fama e honrarias. Elas abrem os espaços internos por onde fluiremos para além das barreiras e asperezas dos dias; sem se esconder da vida nem brigar com ela. É tão e somente um movimento silencioso rumo à luz. Não conheço riqueza maior”.

Esperou que um casal que passava se afastasse para continuar: “A humildade, a simplicidade e a compaixão costumam ser desprezadas pelos toscos que as veem como atributos dos indivíduos fracos, humilhados e submissos; a sinceridade é para os tolos; a pureza cabe aos ingênuos. Entendem o perdão como um disfarce para aqueles que não conseguem subjugar os oponentes. Confundem a famigerada vingança, na qual se sentem poderosos após a executarem, como símbolo de justiça realizada. Para estes, a fé é uma rota de escape disponível àqueles que fracassam no mundo físico para se refugiarem na vida espiritual. Acreditam que todos os objetivos, riquezas e conquistas são meramente materiais; desprezam tudo que não sirva como pedestal à própria ostentação. Quem se amiúda, no sentido de não querer ser mais do que ninguém, mas concentra os seus esforços para vencer as próprias sombras, cresce. Quem se engrandece, na intenção de se sobrepor a todos ao redor, diminui a si mesmo, embora não se de conta disso”.

O calor estava forte. Retirou da cinta um cantil confeccionado com couro de cabra, bebeu um gole de água e me ofereceu. Esperou que eu bebesse para prosseguir: “As criaturas estanques em criação querem vencer os outros, acumular glórias e fortunas em ritmo doentio; têm certeza de que fazem a coisa certa e possuem a existência perfeita; quanto maior o mundo as considerar, maior o sucesso. Assim acreditam. No entanto, apesar da fama e riqueza eventuais, será uma criatura apequenada na essência; o seu único tesouro e verdadeira identidade. Perderá a viagem de uma existência e será derrotado exatamente no ponto no qual se imaginou ganhador”. Encostou o dedo no meu peito, como que para ressaltar as palavras e disse: “O sábio luta para vencer a si mesmo. Vencer a si mesmo é iluminar as próprias sombras, é se tornar uma pessoa diferente e melhor, é desmanchar os medos e descontruir os sofrimentos que afligem a alma. Somente assim poderá amar mais e melhor a cada dia; compartilhar a sua luz no mundo. Ainda que viva como um desconhecido, será um vitorioso e terá uma existência de sucesso. Tornar-se-á um fantástico criador da própria criatura pelos enormes avanços intrínsecos que alcançou. Não há outra riqueza que caiba na bagagem”.

Ficamos algum tempo em silêncio. Ele observando as pessoas se banhando no Ganges; eu encontrando os exatos compartimentos para alocar aquelas ideias. Agradeci a lição oferecida. Ele retrucou: “Eu ensino o que todos sabem”. Falei que ele havia me fornecido valiosas noções sobre avanços e conquistas intrínsecas. Comentei que muitos ainda se valem dos muitos disfarces do mal, como a supremacia econômica, política, social ou cultural, além das mentiras, fraudes e das violências física, emocional ou moral para alcançar os seus interesses. O homem alertou: “Quem usar do mal, em qualquer das suas mil faces, será também sua vítima. As consequências mais severas pela utilização estão destinadas a quem o praticou. Assim é a Lei. Vale ressaltar que não é ato meramente retributivo do Caminho. Pois, seria incompatível com o seu ideal de amor incomensurável. Trata-se de gesto educativo no qual ensina o valor do bem e do mal, importante para criaturas em estágios iniciais de evolução. Embora tenha por finalidade a reflexão e o aprimoramento, por não entenderem, muitos ainda se rebelam ou se deprimem pelas consequências a que eles próprios deram causa. Alimentarão as próprias sombras, tornando os dias ainda mais dolorosos. O amor ficará mais distante, às vezes, quase como figura de ficção. Por isto, a ignorância sobre si mesmo está na raiz de todo o mal”.

Depois, finalizou: “Existe um código de leis cósmicas que serve para balizar o Caminho; nenhum criatura está fora do seu alcance. Serve não apenas para educar, mas para reequilibrar todo o sistema energético do universo. Das leis, a mais conhecida é a da Causa e Efeito, que serve não apenas como instrumento pedagógico, de justiça e de harmonia; aos viajantes mais atentos funciona como uma espécie de interlocutor para que, em constante diálogo, possa entender tanto a extensão como as consequências dos seus movimentos, seja a retardar ou impulsionar a jornada, sendo útil às constantes correções de rota e, assim, à manutenção do rumo”.

Em seguida, fez uma gesto de despedida com a cabeça e se foi. Flanei pelas imediações até encontrar um templo, cuja porta de ferro estampava uma linda e colorida mandala dourada e vermelha. Atravessei sem medo nem dúvida.

Poema Quarenta e Dois

O Tao gerou o um;

O um gerou o dois;

O dois gerou o três;

O três gerou os dez mil seres.

O dez mil seres são sombras

Em busca da Luz.

O movimento necessita do vazio.

Os dez mil seres

Não querem se sentir pequenas.

O que os toscos evitam,

Os sábios querem para si.

Quem se amiúda, cresce;

Quem se engrandece, diminui.

Eu ensino o que todos sabem.

Quem usar do mal

Tombará através dele.

Assim é a Lei.

2 comments

Jéssica Perri junho 6, 2023 at 6:28 am

Tão necessário! Estou a buscar a saída da caixa, já é muito pesado e dolorido para mim, faz todo sentindo. Grata

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Terumi julho 4, 2023 at 12:50 am

Gratidão 🙏

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