MANUSCRITOS VII

Velhos vícios, doces prisões

Estava no intervalo das aulas. O sol da tarde aquecia a brisa fria do outono nas montanhas. Decidi descansar na varanda, enquanto todos os demais monges foram à cantina em busca de uma caneca de café ou um pote de sopa quente para aquecer o corpo e animar a alma. Quase todos. Encontrei Paul, um monge que tinha entrado na mesma época que eu ingressei na Ordem. Éramos muito amigos. Conversávamos bastante sobre questões pessoais. Trabalho, família, propósitos e projetos. Por diversas vezes tínhamos nos encontrado fora do mosteiro. Nossas esposas e filhas também se entendiam bem. Tratávamo-nos como genuínos irmãos. Apesar da surpresa em me ver na varanda, tragou o cigarro com naturalidade. O censurei imediatamente. Paul era um homem doce e alegre, amante da vida, uma alma iluminada, uma pessoa extremamente agradável de conviver. Desde sempre, tivera uma rotina despreocupada quanto a uma alimentação saudável, assim como era avesso à prática de atividades físicas. Adorava refrigerante, biscoito e cachorro-quente, a base da sua dieta; alegava ficar cansado só em assistir alguém fazendo exercício. Como privilegiava o poder da mente e do coração, nunca tivera qualquer cuidado com a manutenção do corpo. Contudo, aos cinquenta anos de idade, começaram a aparecer diversos problemas de saúde. Rechaçou as tentativas daquilo que denominou como interferências indevidas ao seu estilo de vida, apesar das advertências dos médicos sobre os sérios perigos que corria caso não modificasse vários dos seus hábitos. Nos exames realizados, mais por vontade da dedicada esposa do que dele, entre outros problemas, o pulmão sinalizara estar à beira de um colapso. Fui duro nas palavras. Lembrei ao Paul que cuidar da saúde era um gesto de amor, não apenas a si mesmo, mas também à família que ele tanto amava.

Paul argumentou que diminuíra bastante a quantidade de cigarros consumidos, se limitando a um ou dois por dia ao invés de um maço como fumara durante anos. Lembrei que a recomendação era para que abandonasse por completo o vício. Ele questionou se a vida valeria a pena sem os pequenos prazeres. Falei que havia prazeres maiores na convivência com as filhas encantadoras, nos momentos alegres ao lado da esposa, nos domingos agradáveis com os amigos, na execução do seu trabalho, o qual realizava com uma mestria incomum. Perguntei se ele, um homem com extrema inteligência, permitiria que um prazer fugaz furtasse o tempo e aguasse o mel da vida.

O meu amigo rebateu que o tempo não tem hora marcada. Todos deveriam aprender a lidar com ele, com a certeza inevitável do seu fim. Concordei em parte. Ponderei que o tempo era matéria-prima da Grande Arte, a construção de si mesmo. Encurtar o tempo de forma inconsequente deixaria a obra incompleta. Agravaria sofrimentos, desperdiçaria oportunidades e atrasaria conquistas. Ele sabia ao que eu me referia. Acrescentei que jamais seria um homem livre enquanto estivesse aprisionado aos próprios vícios.

Antes que pudesse me responder, e o que não faltava para Paul eram argumentos inteligentes para sustentar o seu estilo de vida e crenças; ele parecia possuir um enorme catálogo repleto de motivos e razões. Retirei-me da varanda sem dizer outra palavra.

Voltei aos estudos. Embora versasse sobre um assunto interessante, não consegui me concentrar em nada do que foi dito na aula daquela tarde. Tive um sono agitado à noite. Decidi me levantar para começar o dia mais cedo. Fui à cantina em busca de uma caneca de café. Encontrei Paul sentado à mesa diante de uma lata de refrigerante; era o seu desjejum. Sem nem mesmo o cumprimentar, o lembrei da diabetes que o ameaçava. Ele deu de ombros e disse que a bebida era da versão sem açúcar. Falei de como os refrigerantes elevavam os níveis de acidez do organismo e os males que isto causava. Paul começava a apresentar problemas no pâncreas também. Ele argumentou que alguns copos de água seriam suficientes para normalizar as taxas. No mais, sustentou que apenas bebia uma lata de refrigerante e não um cálice de veneno como eu fazia parecer. Sustentei que ele estava se matando aos poucos, uma espécie de suicídio lento, podendo gerar uma série de problemas desnecessários para a sua família, caso ficasse seriamente doente, com muitas limitações físicas, antes de chegar o dia do dia sem fim. Paul pontuou que o equilíbrio é uma virtude, sendo possível aproveitar os prazeres proporcionados em pequenos vícios sem abdicar das grandes conquistas da vida. De lado a lado, fomos escalando tons e razões, até que falei que ele só conseguiria se curar caso, antes, tratasse da Síndrome do Caubói que o acometia. Como um personagem de faroeste, Paul não recusava um duelo. Teimava em desafiar os médicos, o bom senso e a vida. Diferente dos filmes, se tratava de uma luta inglória, pois jamais venceria a morte se não soubesse realizar as transformações que somente o tempo permite.

Paul já tinha uma resposta pronta, mas no momento que retirava outro argumento do seu infindável catálogo, se calou. Virei-me da direção do seu olhar. Em pé, à porta da cantina, o Velho, como carinhosamente chamávamos o decano da Ordem, nos ouvia. Ele esperava a discussão encerrar para entrar. Diante do nosso silêncio, sem dizer palavra, atravessou por entre as mesas, encheu uma caneca de café e se sentou na mesa próxima à janela. Não fez qualquer comentário sobre a nossa discussão. Limitou-se a falar sobre as atividades daquele dia.

Encontrei com o Velho à tarde, enquanto ele cuidava das rosas do jardim interno do mosteiro. Ao me ver, interrompeu o serviço e convidou para que me sentasse ao seu lado em um dos bancos de pedra que circundavam o pátio. A sós, o bom monge foi direto ao assunto: “Um caubói não consegue se encontrar com outro sem que se sinta tentado a medir forças. O erro de todos os caubóis sempre foi o de não conseguir identificar o seu verdadeiro adversário. Enquanto não entenderem isso, não importa o resultado dos duelos, nunca vencerão a si mesmo, o verdadeiro e único desafio existente. Este é o filme que Hollywood nunca quis fazer”.

Fez uma pausa antes de prosseguir: “Há diferentes caubóis, de muitas espécies e várias nuances. Homens e mulheres, de todas as faixas sociais e culturais, estão à postos para mostrar quem é mais forte. As suas Colts 45, famosas no Velho Oeste por causa do inegável poder letal, agora se apresentam em palavras e atitudes para colocar o outro em seu devido lugar. Claro que, ao menos assim acreditam, tal lugar é abaixo do pedestal onde o caubói acredita estar e, se possível, de joelhos ou em posição subserviente”. Deu-me uma fração de segundo para que começasse a concatenar as ideias: “Com variados enredos e diferentes alegorias, de questões sérias às situações banais do cotidiano, assistimos a esse triste espetáculo nos relacionamentos familiares, afetivos e profissionais”. Questionei se não havia exagero naquela análise. O Velho explicou: “Quando duelamos para saber quem tem razão, sobre qual verdade, interesse ou vontade irá predominar, ainda que sem perceber, aceitamos o tolo desafio para determinar um vencedor quando, na realidade, todos perderão. Ao invés do revólver cromado dos antigos filmes, as armas agora usadas são as retóricas a justificar orgulhos e vaidades, a inteligência desacompanhada de virtudes, a manipulação do conhecimento e da informação, a coação profissional, o poder econômico, entre outras possibilidades, quando desamparadas em amor por falta de percepção e sensibilidade”.

Interrompi o Velho para discordar. Eu tinha o Paul como um genuíno irmão. Um verdadeiro amor fraternal. O bom monge pontuou: “Sim, sem dúvida. Não discuto a bela amizade. Contudo, o amor por si só não basta; é preciso aprender a amar. Por isto, os relacionamentos são fundamentais ao aperfeiçoamento pessoal. Repare, quando o Paul se nega a adotar a verdade ou a aceitar o estilo de vida que você considera melhor para ele, a recusa foi interpretada como um convite para um duelo inexistente, como se surgisse à sua frente um adversário a ser derrotado. Uma situação imaginária, criada pelas incompreensões que deturpam a interpretação que você tem sobre as intenções que lhe movem. A realidade fica embaçada como uma estrada enevoada à beira de um penhasco”.

Bebeu mais um gole de café antes de acrescentar: “Vale salientar que não foi o seu amigo quem o desafiou. Ele apenas manifestou o seu sagrado direito de autodeterminação, de fazer as escolhas que entende pertinentes à própria vida. Foi você mesmo, movido pelo orgulho e vaidade intelectual, aliado ao desequilíbrio emocional, típicos daqueles que querem impor aos outros as imagens nem sempre claras que os olhos alcançam, quem criou um duelo desnecessário onde bastavam entendimento e respeito”.

Falei que eu não podia assistir, passivamente, o meu amigo destruir ou abreviar a existência sem tomar nenhuma atitude. O Velho concordou: “Claro que não, seria retirar um dos alicerces fundamentais do amor, o compromisso. Sem compromisso se torna impossível ampliar e aprofundar qualquer relacionamento. Será um amor curto e raso, de algum brilho e nenhuma luz. Na estrada da evolução regida pelo tempo sempre podemos oferecer ajuda a alguém; contudo, nunca devemos arrastar ninguém. Trata-se de uma jornada na qual cada viajante terá de percorrer com os seus próprios pés. Do contrário, haverá muita cena e pouca ação”.

Ponderei que os conselhos oferecidos eram práticas usuais as quais eu aplicava a minha rotina. O bom monge não discordou: “Sem dúvida. Quando as palavras são coerentes às atitudes, orientamos através da própria ação; nos tornamos dignos. Você agiu assim”. Antes que eu me enganasse, o Velho se adiantou: “Como um bom amigo, você ofereceu a sua verdade. No entanto, esta é a última fronteira da liberdade. Até esse ponto estava tudo certo. Ao teimar para que ele fizesse escolhas que não desejava, que adotasse a sua verdade como estilo de vida, você agiu como um indesejável invasor a coagir a livre determinação do Paul. Sem se dar conta, como um vício não admitido, você tentou dominá-lo. Assim surgem muitos dos conflitos capazes de destruir bonitas amizades. A dominação não é apenas física, mas ocorre também nas esferas intelectual, afetiva, profissional e econômica. Dominamos todas as vezes que impomos a nossa verdade, interesse, vontade ou desejo sobre alguém. São situações comuns até mesmo entre amigos e familiares que se amam. Na maioria das vezes os invasores não se dão conta da intromissão indevida, ou ainda mais grave em alguns casos, do estrago que provocam. Toda invasão é uma violência”.

Estrago? Falei que não tinha entendido. O Velho esclareceu: “A verdade constrói a realidade. Cada pessoa vive no mundo conforme a sua percepção e sensibilidade. Isto estabelece tanto o grau dos sofrimentos como das alegrias, sem importar as dificuldades e obstáculos que irá encontrar. A capacidade de elaborar as equações será determinante para a solução adequada do problema. Problemas se agigantam e acumulam na proporção direta quanto às incompreensões que cada pessoa tem em relação a si mesma”. Fez um gesto com as mãos e acrescentou: “Exatamente nesse ponto retornamos ao início da nossa conversa. Diante de uma oposição ou desagrado, o caubói assume o controle de quem somos; um duelo foi provocado e aceito. Significa a permissão para que um novo e desnecessário problema seja instalado. De frente a uma montanha, ao invés de a contornar com a suavidade da brisa, de a irrigar como uma chuva suave para que flores germinem quando o solo se tornar fértil, decidimos a explodir com toneladas de dinamite para que nada contrarie a verdade que insistimos em impor, no vício de acreditar que, se os outros não fizerem do nosso jeito, a viagem restará prejudicada. Um lamentável equívoco, razão de tantos conflitos. Esquecemos que a montanha tem o direito de estar ali; não há razão para a destruir. Assim como o vento tem o direito de seguir em frente; nada o irá impedir”.

Questionei se o bom monge concordava com a maneira como o Paul lidava com a própria saúde. O Velho me lembrou de algo fundamental: “As consequências, sejam quais forem, serão suportadas por ele. Portanto, a ele caberá as escolhas e, porquanto, o método de ensino que preferir para o seu aprendizado; portanto, jamais caberá a ninguém qualquer reclamação. Orientar é luz; insistir como tentativa de interferência é nocivo. Afeta a leveza dos relacionamentos, podendo atingir a liberdade alheia. Muitos cedem por pressão, sem que necessariamente estejam de acordo com o olhar oferecido. Casos em que a invasão estará consumada. Embora façamos uso de bons argumentos e sinceros sentimentos, a teimosia pela adoção da nossa verdade revela uma sorrateira intenção, quase nunca admitida ou percebida, de se sobrepor à vontade alheia”.

O Velho prosseguiu: “Trazemos conosco um comportamento atávico, um insensato condicionamento ancestral alojado no inconsciente, de que dominamos os outros ou seremos dominados por eles. Acreditar nessa premissa revela o desconhecimento sobre si mesmo, sobre a verdade e sobre o Caminho. Quem genuinamente se pertence entende a razão e a raiz do autêntico poder, que se perderá caso desvie a rota para se apoderar de qualquer pessoa. Todos os conflitos, em suas diversas magnitudes, surgem por não saber quem somos nem como acessar a luz que nos torna plenos”. E concluiu: “Repetimos os erros sem entender a causa de todos os medos e sofrimentos. Doces vícios, velhas prisões”.

Falei que não tinha compreendido essa última frase. O Velho explicou: “Verdades definitivas são as matrizes de todos os vícios. Enquanto acreditarmos que são maneiras seguras de ser e viver, nos manteremos encarcerados em uma mente estanque e num coração engessado. Ideias fixas e sentimentos ressecados, cujos fundamentos não encontramos motivos para transformar, formam os genuínos cárceres existenciais”. Perguntei como alguém poderia compreender que estava aprisionado em si mesmo. O bom monge foi didático: “Os conflitos. Se tem um problema, uma mágoa, uma insatisfação ou uma impaciência que dormiu contigo por mais de um dia, significa que há uma névoa que impede o melhor olhar, um pensamento que necessita se expandir, um sentimento que grita por liberdade. A ausência de soluções sinalizam equações equivocadas”.

Falei que não era fácil. O Velho concordou: “Não falo sobre comodidades. Refiro-me à conquista da liberdade e da leveza da vida. Trata-se de uma obra simples e complexa, construída dentro e fora da gente ao mesmo tempo, com muitas nuances e singularidades, na qual a verdade exige o descortinamento de camadas mais profundas de interpretação. Algo assim não é para fracos, acomodados e teimosos. Refiro-me a uma prática na qual uma parte de quem somos será descontruída ou, em alguns casos, quando a urgência é maior, demolida para que um novo jeito de pensar e sentir, de ser e viver tenha espaço para florescer tanto na mente como no coração. Na mente os pilares da percepção; no coração os alicerces da sensibilidade. Clareza e impulso, equilíbrio e força, verdade e virtudes, sabedoria e amor, eis as tônicas das transmutações e da evolução”.  

Então, finalizou: “Há vícios de diferentes origens, formatos e gravidades. Dos venenos aos bálsamos, entender os prazeres é passo primordial para compreender os vícios e identificar as prisões. O tabaco e o açúcar causam dependência; ideias, emoções e comportamentos também. Uns são do corpo, outros estão na alma”.

Calei-me. Eu precisava alocar aqueles novos conceitos. Perguntei se ele poderia me ajudar a desconstruir o caubói que nunca recusava um desafio e, por isto, se envolvia em intermináveis conflitos. O Velho me entregou o alicate e sugeriu: “Comece por cuidar das rosas, elas vão lhe ensinar sobre a arte da delicadeza, a virtude de não praticar qualquer mal mesmo quando motivado a exercer o bem; para tanto, tenha um olhar atento, mantenha o coração sereno e as mãos firmes. Depois a exercite com todas as pessoas; entenderá que somente aqueles que são donos de si conhecem o valor da liberdade e aprenderam a cultivar a leveza da vida. Só os fortes conseguem ser delicados com o mundo. Somente quem se respeita é capaz aposentar o caubói que vive a duelar desnecessariamente por se sentir desafiado diante de qualquer contrariedade; e tanto sofre por causa das próprias incompreensões escondidas por trás das suas melhores intenções”.

Em seguida, pediu licença e se foi. Observei-o se afastando com os seus passos lentos, porém, seguros.

6 comments

Santana junho 14, 2022 at 8:07 pm

Muito obrigado!

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Terumi junho 16, 2022 at 2:09 am

Gratidão 🙏

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Fernando junho 16, 2022 at 11:35 pm

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem fim…

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João Luís junho 18, 2022 at 1:55 pm

Texto maravilhoso

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Maria junho 20, 2022 at 12:03 am

Extremamente agradecida pelo texto 🙏✨

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Paulo Vitor Alves dos Santos julho 9, 2022 at 3:12 am

Obrigado! 🙏🏾

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