TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Vigésimo oitavo limiar – As muitas pontes do Caminho)

Eu andava pelas ruas de uma cidade europeia. A chuva estava fina, sem incomodar. Por diversos aspectos, entre os quais a moda de vestir, me permitiam acreditar que estávamos na virada da segunda para a terceira década do século XX. Era possível reconhecer alguns prédios e monumentos. De uma praça arborizada, de onde partiam diversas ladeiras em aclive e declive, em um bar, sentado à mesa na calçada, um homem elegantemente vestido saboreava uma xícara de café. Ao me perceber, e talvez por ler em meus olhos a minha vontade, pois já não me lembrava da última vez que tinha me deliciado com esse antigo hábito, ele fez um sinal com a mão apontando a cadeira ao lado. Era um convite. Sentei-me. Com modos educados, pediu ao garçom que trouxesse uma xícara para mim. Agradeci a delicadeza. Ele me perguntou o que eu fazia na cidade. Sem jeito, falei que era um viajante do tempo em busca da verdade. Ao contrário do que eu imaginava, ele não estranhou a resposta. Ajeitou os óculos de aros arredondados e disse: “Eu também busco a verdade; um tanto desassossegado, mas um buscador irresoluto. Por isto, todos os dias me sento à esta mesa e observo o mundo a desfilar à minha frente. Os mínimos detalhes de todas as coisas e pessoas me interessam. Conhecer o homem e resguardar a mulher faz atravessar a ponte até a infância”. Falei que não tinha entendido a última frase.

O homem alisou o bigode fino e explicou: “Somos muitos em um. Sem aceitar esta ideia não se chega à verdade. São muitas vozes a dialogar conosco; todas são partes ainda soltas ou já agregadas a quem somos. Embora distintas, precisamos torná-las uníssonas. Como uma orquestra composta por inúmeros músicos, o maestro precisa conhecer a todos e fazer com que toquem em um mesmo ritmo a exata sinfonia. Assim como a diversidade de tons enriquece a música, o conhecimento precisa aprofundar camadas de percepção e sensibilidade para se tornar instrumento do bem-viver”. Achei confusa aquelas palavras. Pedi para explicar melhor. Ele foi gentil: “O homem que me habita vai ao mundo laborar. É ele que vai caçar as experiências. Depois, retorna para casa. É preciso elaborar aquilo que foi vivido. A mulher que mora em mim vai cozinhar a caça. Não veja pelo viés do preconceito, se permita olhar através do simbolismo na utilização de uma linguagem poética para facilitar o entendimento. Caçar e cozinhar são complementos igualmente valorosos de um mesmo propósito. Um é indispensável ao outro. Elaborar as experiências para que sejam transmutadas em equilíbrio e força aperfeiçoam o ser no exercício do viver. É indispensável elaborar para laborar melhor. Como um movimento que se retroalimenta, incessantes labores serão a fonte de inusitadas e indispensáveis elaborações. Do mundo para a alma; da alma para o mundo. O homem e a mulher afinados em ações cada vez mais firmes e delicadas”.

Questionei se firmeza e delicadeza não eram contradições em um mesmo agir. Ele negou: “De jeito nenhum. O masculino não anula o feminino, nem poderia, sob o risco de se perder a metade do todo. Há um equívoco ainda presente nos dias de hoje de que firmeza e delicadeza sejam antagônicas. Acredita-se que ao escolher por uma, há de se abdicar da outra. Eis um grande engano. Confunde-se firmeza com brutalidade ou rispidez. Não se trata disso. A firmeza se caracteriza pela coerência aos princípios e valores formados pela percepção e sensibilidade do indivíduo, mapa e bússola na busca da verdade. A firmeza se faz indispensável para que a verdade não seja objeto de nenhuma negociação. Apesar das tentações de diversas espécies, não devemos abrir mão da verdade em troca de privilégios, comodidades ou desejos. Também não a entregamos por medo”. Tornou a pentear o fino bigode com a ponta dos dedos antes de continuar: “De outro lado, muitos acreditam que a delicadeza seja um aspecto ligado à fraqueza ou fragilidade. Outro engano. A delicadeza é um valoroso atributo daqueles que têm o cuidado de não causar nenhum transtorno a ninguém. Nem um arranhão, por menor que seja. Embora, muitas vezes, a verdade cause desconfortos, sabem que ela precisa de leveza para fluir por entre as pedras pontiagudas da existência. A delicadeza não anula a firmeza, ao contrário, a aperfeiçoa. São complementares. A verdade difícil, representada por uma posição contrária à vontade do interlocutor, quando colocada com doçura, auxilia a sua compreensão. Firmeza e delicadeza se completam para facilitar a fluência da verdade. A verdade é avassaladora quando transformada em força suave”.

Perguntei a razão desses aparentes opostos nos levarem a atravessar uma ponte até a infância, como ele havia dito. O homem sorriu e esclareceu: “Outra licença poética. Desde sempre, a imagem da infância está ligada à ingenuidade e pureza. Não raro, confundem ingenuidade e pureza como se fossem um mesmo atributo. Um engano. Ingenuidade se caracteriza pelo desconhecimento do mal; a ignorância diminui a capacidade de discernimento entre o certo e o errado, aumentando os riscos e os perigos. A ingenuidade é típica às crianças. Diferentemente, a pureza se completa no pleno conhecimento de uma pessoa quanto a todas as possibilidades existentes, e mesmo podendo fazer o uso do mal como meio para as suas conquistas, abdica dele por convicção tranquila. Para os puros, apenas as virtudes servem como ferramentas de confecção da Grande Arte, a obra de si mesmo. Assim, a firmeza, quando aliada à delicadeza, faz com que o indivíduo suba um importante degrau na escala evolutiva ao fazer uso da luz como instrumento indispensável às suas conquistas, sem o qual todas as vitórias serão rasas e vazias. Argumentar que os fins justificam os meios é uma falácia vulgar usada por aqueles que acreditam que podem atingir o bem por meio do mal”.

Calei-me para alocar aquelas ideias. Bebemos o café sem dizer palavra. Depois, perguntei se ele costumava ficar sentado ali por muitas horas. O homem me surpreendeu: “Conhecer o dia e resguardar a noite faz atravessar a ponte até o Infinito”. Sorri e ponderei que deveria se tratar de outra licença poética. Ele fez sim com a cabeça e desenvolveu a ideia contida na frase: “O dia também significa aquilo que já conheço em mim. A noite, o que ainda ignoro. Tudo aquilo que acredito não existir ganha autorização para se manifestar sem qualquer controle ou permissão. Eis a razão de tantas reações descabidas e arrependimentos. São os músicos que tocam desafinados da orquestra sem o indispensável ajuste do maestro. Será um espetáculo sofrível”.

Antes que eu apresentasse as minhas dúvidas, ele se adiantou: “A integração entre o dia e a noite abre um sem fim de portas inimagináveis. A individuação de todos que me compõem sob um mesmo propósito leva a orquestra a tocar a mais sublime de todas as sinfonias. A interação entre dia e noite nos conduz a outra valiosíssima virtude, a fé. Ao contrário do que muitos acreditam, ter fé não é somente acreditar. Ter fé é acreditar e ter esperança. Contudo, ter fé não é somente acreditar e ter esperança. Há um terceiro degrau. Ter fé é movimentar a luz que já possuo para iluminar os cantos escuros, seja dentro de mim, seja ao meu redor. Apenas através da fé se faz possível dissolver os medos mais assustadores. Assim a fé remove as montanhas que obstruem o Caminho. Por nos tornar pessoas melhores, todas as virtudes são sagradas. Por reunir em si uma série de outras virtudes, a fé se faz presente nos altares das mais diversas correntes religiosas, embora a sua devida compreensão e poderosa utilização ainda seja tão rara. Fundir o dia com a noite na forja da luz permite decifrar o enigma do tempo. Então, o Infinito”. Tornou a ajeitar os óculos de aros redondos e acrescentou: “Matéria-prima da Grande Arte na escola planetária, não se mede o tempo por intermédio das horas, mas pelos ciclos evolutivos pessoais já finalizados. Tempo e fé são indissociáveis, pois somente por meio desta será possível conquistar aquele. Fora da luz o tempo é um precipício intransponível. Ao se mover através da sua luz intrínseca, o viajante conseguirá erguer, para depois atravessar, a ponte sobre o abismo do tempo para chegar ao Infinito”.

Perguntou se eu o acompanhava em mais uma xícara de café. Claro que aceitei. Enquanto esperávamos o garçom, o homem culto que parecia ter a poesia como estrada e prazer, recitou: “Conhecer as glórias e resguardar a humildade irriga o vale do mundo e faz atravessar a ponte até a origem”. Eu sorri e disse que aguardava por maiores esclarecimentos. O garçom colocou as novas xícaras sobre a mesa, ele bebericou o café fumegante e disse: “A humildade é a virtude do buscador, aquele que sabe encontrar em si a origem de todos os seus aborrecimentos e incômodos. Ele entende que nada nem ninguém são as genuínas causas das suas irritações e tristezas; porém, o quanto da obra em si mesmo ainda está incompleta e das ideias mal construídas ainda sustentam as ideias sobre tudo e todos. Embora reste prejudicado ou atingido por determinado fato, tem consciência de que só perderá algo de valor se deixar que a sua luz se apague. Não significa cumplicidade ou anuência ao desvario de outras pessoas, mas o entendimento que o mal pertence a quem o pratica. Sempre. As incompreensões alheias não podem ter o poder de o arrancar do seu eixo luz. O viajante da verdade percebe, sente, orienta e acolhe, mas não sofre, obriga nem entra em conflito. Ele não se detém diante do abismo das sombras do mundo. Contudo, para seguir em frente terá de enfrentar as suas próprias sombras. Orgulho, ganância e vaidade são as mais comuns e perigosas. Apenas quando envolvido pela fama, honrarias e fortuna sem se deixar contagiar nem se perder através delas, estará apto a iniciar a travessia para encontrar e conquistar a própria essência, autêntica fonte de luz. O orgulho, ganância e a vaidade são sapatos de saltos altos e soltos. A queda é iminente. A ponte para a verdade se atravessa descalço”.

Perguntei qual vale que seria irrigado, conforme havia dito.  Ele bebeu mais um gole e explicou: “No código poético, vale é o acidente geográfico que acolhe tanto as águas que descem das montanhas como as dos rios que correm por entre as pedras. São as águas do céu e da terra. Os vales possuem solos férteis, propícios a boas semeaduras e colheitas fartas. Ao receber as águas da montanha e dos rios o vale florescerá, frutificará e alimentará o mundo em suas ceias espirituais. Viver como o vale significa estar receptivo a elaborar todas as experiências em aprendizado e transformação, sem os quais nada mudará. Todos os acontecimentos podem servir de escola, então viveremos como vale. Ou podem se tornar uma prisão, o que nos leva a cair no abismo das incompreensões”. Franziu as sobrancelhas e esclareceu: “Trata-se um uma escolha que definirá a capacidade do viajante de atravessar a ponte até a origem. Na origem está a luz, sem a qual não se enxerga a verdade. Contudo, não se chega lá sem retirar os mantos usados para esconder ou disfarçar os desconfortos. Faz-se necessário se despir das fantasias, dos enganos e personagens que utilizamos para negar a verdade que, apesar de libertar dos sofrimentos e dos medos, também incomoda por mostrar quem não somos; as fragilidades que insistimos em não admitir pelos incômodos que causam. A máscara precisa cair. Um movimento impossível de ser feito sem outra importante ferramenta, a simplicidade. Não se consegue realizar essa travessia sem que a alma esteja desnuda a se observar diante do espelho da verdade existente do outro lado da ponte. Há que se ter coragem para estar diante de si próprio sem nenhuma mentira. Enquanto eu me esconder de mim mesmo estarei adiando o encontro e a conquista mais importante da minha vida. Eis a Grande Arte, onde artista e obra se misturam”.

Comentei que ele construíra um valioso arco filosófico. O homem agradeceu com um balanço de cabeça e alertou: “Para completar o arco é preciso lembrar que na origem está a madeira bruta. Quando entalhada, se faz instrumento”. Esvaziou a xícara e finalizou o raciocínio: “Na humildade e simplicidade o espírito desperta para florescer. Essas virtudes são primordiais para iniciar a travessia da ponte até a origem. Todavia, enquanto houver mágoa, ressentimento, irritação ou tristeza, o viajante estará impossibilitado de acessar a própria essência. As cascas escondem o âmago da madeira, a parte mais nobre onde o entalhe é possível. Então, outra virtude se faz fundamental, a compaixão. Trata-se da compreensão amorosa da dificuldade alheia. Não que se aprove o equívoco alheio, mas que se entenda que nem sempre as pessoas conseguem ou sabem fazer melhor. Conosco não é diferente. Não podemos exigir a perfeição que não temos para oferecer. A compaixão é a ponte para o perdão e para a liberdade. Emoções amargas aprisionam. Enquanto restarem cascas será impossível ao tronco se transformar em flauta, tambor ou violão. Não haverá música. Madeira, instrumento e canção; assim, o artista se transmuta na própria obra. Assim, a criatura se torna o criador da própria criação”.

Arqueou os lábios em singelo sorriso e concluiu: “Jamais esqueça, a melhor música fala ao coração. Só há virtude onde existe sabedoria e amor. Embora ainda incompreensível para muitos, as virtudes são as mil diferentes maneiras de amar. Essa é a síntese de toda a sabedoria. Não se chega à verdade sem atravessar todas as pontes do amor”.

Sem acrescentar mais palavra, fez uma mesura de despedida, colocou o chapéu e se foi. Acompanhei os seus passos até que desaparecesse ao virar na esquina. Foi quando me dei conta que ele tinha esquecido sobre a mesa um caderno de anotações. Abri em uma página qualquer; havia uma poesia me convidando a ser inteiro em tudo que fizer. Cada virtude é uma ponte a me levar a um encontro e conquista. Ainda havia muitas pontes a serem erguidas e atravessadas. O poema formava uma mandala de palavras e ideias. A porta estava aberta. Segui a viagem.

Poema vinte e oito

Conhecer o homem e resguardar a mulher

Faz atravessar a ponte até a infância.

Conhecer o dia e resguardar a noite

Faz atravessar a ponte até o Infinito.

Conhecer as glórias e resguardar a humildade

Irriga o vale do mundo e

Faz atravessar a ponte até a origem.

Na origem está a madeira bruta.

Quando entalhada, se faz instrumento.

A melhor música fala ao coração.

2 comments

Rhodolfo Diniz agosto 29, 2022 at 1:50 am

Perfeito! Muito obrigado por mais um texto cheio de reflexões!
Muita paz!

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Fernando Machado setembro 24, 2022 at 12:52 pm

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas 🌟, sem fim…

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