TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Quinquagésimo oitavo limiar – O código oculto da simplicidade)

Eram ruas arborizadas, com os típicos prédios de poucos andares construídos com tijolos avermelhados de ambos os lados, comuns em algumas regiões de Nova Iorque no início do Século XX. As cores outonais das folhas emprestavam beleza àquela tarde fria de céu azul. Decidi caminhar pelo lado ensolarado da calçada. Os raios de sol ofereciam algum acolhimento frente ao vento gelado proveniente do Rio Hudson. Senti uma agradável sensação de bem-estar. Para ficar perfeito faltava apenas uma caneca com café, me diverti com os meus próprios pensamentos. Andei a esmo. Não havia ninguém nas ruas. Em determinado momento, percebi pelos vidros da janelas de um dos apartamentos que ficavam abaixo do nível da calçada, um homem datilografando. Ao lado, uma xícara com café fumegante. Era possível ver a tênue fumaça emanada. Sorri de desejo. Parei para o observar. Notei que ele intercalava a escrita com ilustrações que serviam para alavancar o alcance das palavras. Encantei-me com o processo. O escritor teve a atenção voltada para a minha presença. Ofereceu-me um sorriso, e ao se dar conta do motivo pelo qual os meus olhos brilhavam, fez um gesto com a mão me oferecendo uma dose de café. Aceitei de imediato. Bati na porta. Ouvi sua voz avisando que estava destrancada. Girei a maçaneta e entrei. Era um lugar muito simples, decorado somente com o básico. As estrelas da mobília eram a Remington na qual escrevia e uma caixa de lápis Faber-Castell que usava para desenhar. Sentei-me em um banco de madeira ao seu lado. Depois de me servir uma caneca com café, retirou da máquina a folha que datilografava e pediu que eu avaliasse o trecho do texto: Vi um rosto com mil expressões, e um rosto com uma única expressão, como se tivesse sido colocado num molde. Vi um rosto cujo esplendor eu tive de atravessar para perceber a feiura que havia por baixo, e um rosto cujo esplendor eu tive de afastar para ver como era belo. Perguntei se escrevia sobre o poder da simplicidade. O escritor disse sim com a cabeça e falou: “A simplicidade é uma das virtudes essenciais, que ao lado da humildade e da compaixão, concede acesso ao Portal da Lucidez, capaz de permitir que o viajante veja a árvore adormecida na semente”. Indaguei se ele se referia às premonições. O homem negou e explicou: “Falo da antevisão, a capacidade de enxergar a aplicação das Leis do Caminho mesmo antes das suas manifestações. A lucidez evidencia que uma atitude errada jamais resultará em coisa boa. O fruto estará sempre de acordo com a árvore que o produziu. Inexoravelmente”. Fez uma pausa antes de prosseguir: “A simplicidade é fundamental a esse processo em razão de permitir ao sujeito se olhar sem enganos, mentiras e devaneios, evitando as fugas que o enganam e o afastam do seu propósito de vida. É o espelho da verdade que nos permite conhecer a essência oculta por trás da aparência de todas as pessoas, coisas e situações, inclusive, e principalmente, sobre quem ainda não somos. Existem máscaras lindas e fantasias luxuosas disponíveis nas prateleiras do mundo. Em verdade, nenhuma delas serve como proteção ou embelezamento. Nem tudo que reluz é luz; os mais preciosos tesouros não contêm um grama de ouro. Tudo que encobre a minha essência furta o melhor que existe em mim”.

Bebeu um gole de café e disse: “Se o governo preza pela simplicidade, o povo é benevolente”. Falei que não tinha entendido. O escritor explicou: “Cada pessoa é responsável por se autogovernar. Suas metas, propósitos, dons, escolhas, sentimentos e ideias são de sua inteira responsabilidade. Sem conhecer as suas genuínas fontes e motivações, sou conduzido quando deveria ser o condutor. Se algo ou alguém influencia as minhas crenças e emoções, termina por determinar as escolhas que faço. Deixo de ser o autor da obra da minha vida. Significa que alguém a escreve por mim. Aquele que deveria ser o protagonista move-se por mãos e ideias que não são suas. Vive à serviço dos desejos e interesses alheios sem se dar conta disto. Uma espécie quase imperceptível de escravidão contemporânea. Ninguém pode reclamar nem lamentar as consequências cujas causas permitiu. A simplicidade é um dos alicerces da sinceridade, a virtude do trato da verdade consigo mesmo. Quanto mais valorizarmos a aparência em prejuízo à essência, mais distante da verdade ficaremos. Na sequência, não conseguiremos no valer da honestidade – o uso do trato da verdade com os outros – enquanto não soubermos lidar com a sinceridade. Se não compreendo e aceito a verdade interior, jamais conseguirei a utilizar em minhas relações no mundo. Não posso dispor daquilo que não possuo. De outra face, ao me valer da simplicidade para me mover pelos dias, conquisto a simpatia e a boa vontade daqueles que apreciam a clareza dos gestos e das motivações. Mesmo as minhas eventuais dificuldades, e todos as possuem, ou mesmo a singularidade que trago comigo – afinal, somos todos únicos e renunciar a originalidade pessoal equivale a abdicar da própria personalidade – sempre contarão com a simpatia, benevolência e generosidade daqueles capazes de vislumbrar a genuína beleza de toda gente, gerando uma sensação de inclusão, acolhimento e pertencimento em atmosfera de confiança, calma e prosperidade. Todo esse movimento apenas é possível a partir da simplicidade, um dos atributos essenciais à conquista da suavidade, o poder de fluir por entre diferenças e dificuldades sem colidir com ninguém. Todos ganham”.

Questionei qual mecanismo é utilizado na ausência da simplicidade. O desenhista me respondeu de imediato: “O rigor em qualquer um dos seus formatos. Arrogância, soberba, empáfia, orgulho, altivez, inflexibilidade, vaidade, intolerância, preconceito ou impaciência são como fantasias que projetam uma imagem externa sem representatividade interna. Posturas de poder e força aparentes usadas no intuito de esconder a fragilidade inadmitida e inconfessável. Sombras que se mascaram para confundir o indivíduo e, por conseguinte, os seus movimentos e relacionamentos. Assim, acreditam que rigor é sinônimo de retidão e justiça. Um engano comum e vulgar. Sem dúvida, o mal precisa ser estancado, assim como o erro merece reparo. No entanto, a característica essencial à justiça é a educação. A capacidade de corrigir tendo como finalidade primordial levar à compreensão clara sobre o certo e o errado, o bem e o mal. Ninguém consegue fazer isto sem amor. Ao insistir, restará apenas o sentido retributivo da ação vingativa, completamente esvaziada do conteúdo pedagógico fundamental ao ato justo. Se a gestão é rigorosa, o povo responde com artimanhas. Não é justo nem sensato esperar pela generosidade e benevolência por parte daqueles em situação de maior fragilidade nas relações; esta é a arte secreta e luminosa apenas permitida àqueles genuinamente fortes. Não me refiro ao poder da brutalidade ou das conjecturas legais, sociais, políticas e econômicas, mas à força da luz dos virtuosos. Quem não consegue ser justo em suas relações não pode se espantar com eventuais ardis e prejuízos existenciais. Estarão ao nível do relacionamento a que se propuseram. Quando nos comportamos com rigor, seja quanto aos equívocos alheios, seja quanto às diferenças, quando não admitimos outra maneira de pensar, um jeito diverso de fazer, diferente de ser ou discrepâncias no olhar, mesmo sem perceber, amiudamos o mundo aos nossos interesses, valores e limites. Oprimir significa espremer para caber. Ao comprimir o que deveria expandir geramos dor, medo e conflito. Quanto mais frágeis forem aqueles a quem sufocamos, maior a chance de buscarem por mecanismos maliciosos na tentativa de evitar sofrimentos, danos e sufocamento. Todos querem viver ao seu jeito e têm direito a isto. Ao menor descuido, nos tornamos déspotas daqueles com quem convivemos e até mesmo inimigos de quem tanto amamos. Todos perdem”.

Comentei que esses cuidados seriam fatores determinantes à felicidade ou desgraça experenciada por cada pessoa. O homem argumentou: “Felicidade e desgraça representam os momentos extremos da existência de todas as pessoas. Clímax e anticlímax. Aqueles que vivem a desgraça tendem acreditar que a felicidade lhes é inalcançável. O desequilíbrio atinge tal ponto que o sujeito não consegue enxergar uma maneira de retornar ao lado ensolarado da estrada. Sente-se traído, desamparado ou desafortunado pela vida. Como se tudo e todos conspirassem contra ele. Um desprovido de sorte aos seus próprios olhos. Não consegue entender que nada acontece por acaso. Todo revés é lição e impulso à felicidade. Todos os dias, ao olhar para trás, ao encontrar conquistas recentes, perceber o quanto já caminhou, se certificar que se tornou um indivíduo diferente e melhor de quem era antes, terá a felicidade como inseparável companheira de viagem”. Olhou pela janela por instantes, como se recordasse de algumas situações, e pontuou: “Por vezes, a felicidade tem origem na desgraça”. Antes que eu fizesse qualquer pergunta, ele se adiantou em explicar: “As desgraças são férteis em aprendizado. Quando o sujeito se sente no patamar mais baixo da existência, como se nada mais tivesse para perder, entende que só lhe cabe renunciar ao modelo de ser e viver que se provou equivocado. Há um enorme poder em momentos assim por apenas restar, ao menos para aqueles dispostos a se aceitar em constante construção, os movimentos de reconstrução. Uma maravilhosa oportunidade para descontruir tudo aquilo que foi erguido de maneira errada e que, por isto, desabou. Por vezes demoramos a entender, mas a desgraça é a destruição involuntária do prédio que nos aprisionava em nossas próprias incompreensões. Viveremos em seus escombros até compreendermos que somos as verdadeiras causas das nossas ruínas. Somente então será possível reiniciar uma jornada de sucessivas transformações que, em análise aprofundada, versa sobre a conquista da felicidade”. Bebeu mais um gole de café e ponderou: “Em contrapartida, a desgraça espreita a felicidade. Descuido, estagnação e soberba são ameaças constantes e perigosas. No ápice das bonanças existenciais, devemos ter muito cuidado para não tropeçarmos em nosso eixo de luz. Os perigos são muitos e por demais traiçoeiros. As Leis do Caminho possuem um direcionamento de educação e justiça como mecanismo de reequilíbrio cósmico diante de todo e qualquer desajuste. Nada termina aqui ou ali, ninguém será esquecido ou terá qualquer privilégio. As quedas surgem quando nos iludimos superiores, infalíveis, acima do mal e impune dos erros. No instante que acreditamos ter finalizado a obra, não raro, é quando nos descuidamos da verdade e das virtudes. A vida empurra quem se recusa a seguir em frente”. Em seguida, concluiu: “Poucos sabem se orientar entre os limites e opostos que ordenam e impulsionam a um só tempo”.

Pedi que explicasse melhor a última frase. O homem foi generoso: “O mal se confunde com o bem e o errado parece certo nos momentos em que o indivíduo se afasta de si mesmo, da essência que o anima e orienta. Perde a capacidade de discernir o bom do mau. A palha se mistura ao trigo na fabricação do pão de cada dia. Não me refiro ao alimento do corpo, mas aquele que fortalece a alma. O movimento que deveria avivar o espírito termina por o envenenar. Há muito tempo as multidões estão perdidas nesse labirinto. Não se deram conta que as portas da liberdade se abrem para dentro. As fronteiras são tênues, os inimigos não são os outros e, ao contrário do que pregam, os fins jamais justificam os meios. Não se constrói um bom prédio se valendo de um projeto ruim. Por isto o sábio é justo sem ferir. Assim como a justiça tem o compromisso de entregar a cada um na exata medida do seu merecimento e necessidade, existe a possibilidade de ter que negar a pretensão desejada por alguém. Contudo, essa negativa deve ser realizada de maneira sutil a não colocar o indivíduo em posição desconfortável, mas o incentivar a prosseguir em seu processo de aperfeiçoamento. Ao invés de dizer você não merece, dirá você ainda não está pronto. Embora o resultado material imediato seja o mesmo, as perspectivas existenciais serão bem diferentes por não retirar a esperança e o direito à conquista almejada em um momento mais adiante e, igualmente importante, garantindo que dependerá apenas dos seus próprios esforços para a alcançar. O sábio usa a verdade sem ofender. A verdade é força, nunca agressão. É equilíbrio, jamais ostentação. É abrigo, nunca abandono. É alicerce, jamais canhão. Serve para as inevitáveis desconstruções, mas deve evitar todo desastre. Deve ser usada para cicatrizar, não para decepar. O uso da verdade não está autorizado pela simples razão de estar disponível. A verdade tem muito poder; e poder sem amor gera agressividade. O uso da verdade exige sutileza e possui arte própria”.

Olhou-me nos olhos e finalizou: “O autêntico sábio é essencialmente humilde. Ele é como um prédio em constante evolução, sem nenhuma preocupação em ser o mais alto, bonito ou moderno. Por se tratar de uma obra sempre incompleta, ele apenas almeja se tornar um lugar cada vez mais confortável e seguro para viver dentro de si mesmo, além de acolhedor para quem eventualmente necessite se abrigar durante as intempéries temporárias e comuns à existência. Sem cobrar aluguel ou fazer propaganda. A luz do sábio não ofusca ninguém. Ofuscar significa impedir a visão, encobrir, obscurecer, tornar turvo ou confuso. A luz não existe para nada disto. Quando o movimento de alguém, por mais brilhante que possa parecer, tem a intenção de diminuir outro alguém, não há ali qualquer resquício de luz. Apenas a espetacularização da esperteza vulgar e sórdida sem nenhum traço de sabedoria. Tampouco um pouco de amor. Serão somente exibições repletas em sombras e vazias de virtudes”.

O escritor disse que precisava levar os originais do seu livro à editora. Era hora de eu partir. Agradeci a conversa e antes de me levantar, ele disse que tinha um presente para mim. Entre os desenhos que ilustrariam a obra, retirou um e me entregou. Havia uma mandala azul e rosa desenhada no papel. Sorri e me deixei conduzir através do portal.

Poema Cinquenta e Oito

Se o governo preza pela simplicidade,

O povo é benevolente.

Quando a gestão é rigorosa,

O povo responde com artimanhas.

A felicidade tem origem na desgraça;

A desgraça espreita a felicidade.

Poucos sabem se orientar entre limites e opostos.

O mal se confunde com o bem,

O errado parece certo.

Há muito tempo as multidões estão perdidas nesse labirinto.

O sábio é justo sem ferir,

Usa a verdade sem ofender.

A sua luz não ofusca ninguém.

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