TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Décimo terceiro limiar – A ignorância é a semente do medo)

Havia marcas de cascos de cavalos, bois e rodas de carroça na terra molhada da estrada estreita que atravessava uma densa floresta. O som de animais silvestres e o canto dos pássaros compunham uma sinfonia telúrica. Hesitei para que direção seguir. Percebi quando um rouxinol encerrou o canto e, assustado, voou para longe.  Tive a clara sensação de estar sendo observado. Um, mais um, outro e mais outro, sem demora, da dúvida se fez a certeza. E um cerco. A uma distância segura, por ainda não saberem se eu representava um risco, eles me olhavam como um objeto em estudo. Aos poucos, à medida que acreditavam que eu não representava uma ameaça, o cerco se estreitava. As feições, com traços orientais, não eram amistosas. Temi pela minha vida, pois, não carregava nada que pudesse oferecer em troca. Senti que o ataque não demoraria mais do que alguns poucos segundos para acontecer, quando um deles se mostrou bastante assustado. Os demais seguiram a direção do seu olhar, sem dizer palavra, deram meia-volta e o bando sumiu na floresta. Virei-me para tentar entender o motivo do medo que resultou na fuga dos malfeitores. Sozinho, um samurai se aproximava. Os olhos eram serenos, os passos eram firmes, embora sem nenhuma pressa. Não sorria nem mostrava irritação. Ao se aproximar, perguntou se eu estava bem. Confessei que tinha sentido muito medo. Comentei que os bandidos ficaram assustados com a chegada dele. O samurai explicou: “Sou um guardião, um executor da Lei”. Ponderei que os bandidos eram em maior número e poderiam enfrentá-lo. Como se esperasse por aquela observação, esclareceu sem alterar o tom tranquilo da voz: “Já aconteceu algumas vezes. Ninguém caminha se não estiver disposto a enfrentar os riscos inerentes à estrada. Tudo aquilo que causa medo não vale a pena possuir. O medo é a raiz de todos os sofrimentos; a ignorância é a semente da qual brota a raiz”.

Perguntei se ele não tinha medo de morrer. O samurai explicou: “Vivo pelos princípios do meu espírito, não pelos desejos do corpo. Quando me consagrei na Lei e na Luz, entreguei a existência do corpo para dignificar a vida do espírito. Podem me jogar no fundo de um cárcere, me rasgarem as entranhas ou me pendurarem na forca. Pouco importa, o meu espírito permanecerá inalcançável, vivo e livre. Tenho a minha honra, isto nenhum indivíduo, seja rei, carrasco ou ladrão, poderá me tomar. Se não tenho nada a perder, nada há o que possa me amedrontar”.

Ele perguntou para onde eu me dirigia. Falei que procurava pela verdade. O rosto do guerreiro se manteve impassível, não me permitindo decifrar os seus pensamentos. Em seguida, convidou para eu o acompanhar até o vilarejo mais próximo. Andamos algum tempo sem dizer palavra até que me confessei encantado pela teoria exposta sobre o medo. Falei que fazia sentido e, portanto, me parecia autêntica. Contudo, era uma escolha difícil para pessoas que, como eu, tinham sido educadas sob diferente prisma existencial. O guardião balançou a cabeça para dizer que me entendia. Pedi para explicar melhor aqueles conceitos. Ele teve boa vontade: “O povo anseia pelos privilégios da fama, da fortuna e da nobreza, pelas facilidades indevidas e exaltadas homenagens que proporcionam. São as teias do orgulho e da vaidade que os aprisionam como se fossem moscas. Ignoram que a desgraça e o privilégio estão relacionados. O medo liga uma ao outro. Privilégios não falam de conquistas nem de merecimentos, mas de concessões indevidas e ocasionais. Tudo que te deram, podem te tomar. Da expectativa de perder algo, nasce o medo. Entenda que tudo que você pode perder não é seu, apenas está contigo. Esta é uma das principais causas dos desequilíbrios que geram os conflitos e as dores. De outra face, ao descobrir sobre o verdadeiro conteúdo da bagagem, você encontrará a leveza do espírito e conquistará o poder da vida que, em melhor análise, trata do poder sobre si mesmo”.

Confessei que as ideias ainda estavam confusas. O samurai foi atencioso: “Onde há privilégio falta harmonia. O ponto central da justiça está na igualdade. Regras que estabelecem privilégios desequilibram os indivíduos pelo desconforto que causam. Todo privilégio sinaliza um direito usurpado. Há um furto permitido pelas autoridades cuja incumbência seria manter a ordem e o bem-estar. Sem que se deem conta, o conflito foi gerado pela sensação de injustiça provocada. Os excluídos encontrarão meios para salvaguardar aquilo que entendem ter direito. Mesmo que silenciosa, haverá desordem. Gritos sem voz também se fazem ouvir”.

Comentei que isso poderia causar a ruína de uma família, negócio, aldeia ou mesmo de um império. O samurai arqueou as sobrancelhas, como se eu me negasse a entender o óbvio, e explicou: “Quando você privilegia o ego em detrimento da alma, uma parte essencial restará reprimida, impossibilitada de se manifestar em toda a sua capacidade. A cada dia, você será menos. Aos poucos, o fogo que anima a lareira se apagará. Os dias se tornarão invernais, a desgraça rondará o portão com os dentes à mostra, as ervas se espalharão pelo jardim. Quando se der conta, as trevas fincaram a bandeira no ponto central da sua casa”. Perguntei sobre as consequências quando coisas assim acontecem. O guerreiro esclareceu de maneira direta e sucinta: “Nem você se pertencerá mais”.

Perguntei por que insistimos por algo que nos levará a desgraça. Ele me surpreendeu: “Por ignorância, vocês buscam as conquistas erradas. Por ironia ou tragédia, quando as alcançam, são tomados pelo medo de perdê-las. Tornam-se mesquinhos, a vida se estreita. Sofrem pela amargura de dias assim. Não compreendem que tudo que está no mundo é apenas ferramenta, jamais propriedade. Teimam em lutar uma guerra inglória, de muitos troféus e nenhuma Luz”.

Havia serenidade no tom das palavras do guardião: “Como não tenho nada que possam me tomar, não existe razão para eu sentir medo. Portanto, não tenho motivos para sofrer. O uso de qualquer coisa que escapa à elevação do espírito não interessa à Luz por estar relacionado com as sombras do mundo”. Deu de ombros como quem fala sobre o inevitável e disse: “Não lamente os seus sofrimentos. Cada um escolhe os valores pelos quais enriquece ou empobrece a própria existência”.

Indaguei se ele poderia enumerar as coisas que eu poderia perder, causas do medo que sentimos. O samurai explicou: “Tudo que o seu corpo pode usar, acaba. Inclusive o seu próprio corpo. Ficar apegado ao que tem fim é uma enorme insensatez. Essa é a raiz do medo. Faça bom uso de todas as coisas, mas não se detenha por nenhuma delas. Porém, o povo só acredita naquilo que consegue tocar e guardar. Nada sabe sobre o ouro da vida. Pensar de maneira clara e cultivar bons sentimentos faz germinar virtudes que equilibram e fortalecem o espírito, o conteúdo genuíno que estabelece a identidade e a individualidade a partir da própria essência. O seu espírito é imortal, as suas virtudes também, pois estarão para sempre no seu alforje. A sua bagagem é tão e somente aquilo que faz parte de você. Ninguém poderá lhe tomar o amor e a sabedoria já agregados ao seu espírito”.

Por breves instantes desviou a atenção da estrada para me olhar e disse como quem explica a uma criança: “Podem roubar as terras, incendiar o castelo, furtar o dinheiro e as roupas, mas ninguém pode tomar de você quem você é. Nunca. Este é o grande e único poder. Aprenda a usar e nunca mais se verá ameaçado ou será derrotado”. Voltou a se concentrar no caminho e acrescentou: “Não há como arrancar a humildade, a compaixão, a honestidade, a coragem ou a fé. Salvo, é claro, se você for tolo o bastante para permitir. Aqueles que se perdem das próprias virtudes, em geral, são os que nunca as conquistaram em definitivo. Ainda não eram quem acreditavam ser”.

Fazia sentido. Andamos algum tempo em silêncio. Eu precisava alocar aquelas palavras em mim para algum dia fazer bom uso delas. Mais adiante, perguntei como alguém se tornava um samurai. Ele foi didático: “O monge é a evolução do guerreiro. Um samurai é a transição entre eles. Como executor da Lei, a minha espada é o meu instrumento de trabalho. Como um jardineiro, a uso para podar os galhos secos e arrancar as larvas que danificam a beleza e a pureza do jardim, dificultando que as flores cresçam ao sol”. Fez uma pausa para ressaltar com seriedade: “O que for seu, não deixo ninguém tomar. Aquilo que você não merecer, jamais lhe entregarei”.

Meneou a cabeça e disse: “Quando eu conseguir substituir o aço da lâmina pela sutileza das virtudes surgirá o monge. Como quem retira o último véu que cobre a lamparina, minha Luz poderá cintilar sem qualquer obstáculo. Não haverá nenhum resquício de escuridão em mim. Então, me tornarei um mestre das virtudes e terei cumprido mais um importante trecho da minha jornada. Contudo, a estrada não tem fim”.

Comentei que a sua função era de extrema complexidade. O guerreiro foi enfático: “Ser um samurai é uma conquista. Se você ama o mundo como ao seu corpo, ainda não é confiável para cuidar de todas as coisas. A imaturidade da alma é causa de desequilíbrio e fraqueza; as escolhas realizadas serão causa de equívocos e conflitos desnecessários em todas as suas relações. Aprenda a priorizar as virtudes do espírito. Então, será capaz de cuidar do mundo. Assim nascem os samurais”.

Saímos da floresta e foi possível avistar um vale florido à frente. Estávamos próximos ao vilarejo. As águas de um riacho moviam um moinho. Era possível sentir o agradável aroma dos grãos moídos. O samurai parou e, com o queixo, indicou a roda do moinho que girava incessantemente. O movimento revelou a mandala oculta no centro da roda. Agradeci ao guardião e segui na minha estranha viagem.

 

Poema Treze

 

A desgraça e o privilégio estão relacionados.

O medo liga uma ao outro.

Tudo que deram, podem tomar.

Tudo que você pode perder não é seu.

 

Tudo que o seu corpo pode usar,

Acaba.

Essa é a raiz do medo.

 

O seu espírito é imortal.

As suas virtudes também.

É tão e somente aquilo que faz parte de você.

Ninguém pode tomar de você quem você é.

Nunca.

 

Se você ama o mundo como ao seu corpo,

Ainda não é confiável para cuidar de todas as coisas.

Aprenda a priorizar as virtudes do espírito.

Então, será capaz de cuidar do mundo.

 

2 comments

Terumi fevereiro 11, 2022 at 1:35 am

Gratidão 🙏

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Fernando fevereiro 13, 2022 at 6:53 pm

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem medo e sem fim…

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