MANUSCRITOS III

Um pouco sobre máscaras, roteiros e sombras

Eu e Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos, tínhamos acabado de assistir a um filme no único cinema da pequena e charmosa cidade localizada no sopé da montanha que acolhe o mosteiro. Fomos para uma agradável livraria que abriga uma cafeteria na parte dos fundos em busca de boa prosa e café. A fita narrava a história de Dayse e Giovani, casal de namorados na faixa dos cinquenta anos de idade; ambos já tinham passado por outros relacionamentos. Ele era um tranquilo professor de matemática em uma escola do ensino médio, praticante de judo e dedicado aprendiz de roteirista. O seu sonho era contar ao mundo as histórias que o povoavam desde sempre. Passava boa parte das horas de folga aplicado em suas escritas. Ela era uma mulher alegre que vivia da generosa pensão deixada pelo marido falecido há muitos anos. Era uma pessoa caridosa, sempre atenciosa às necessidades alheias, que também gostava de passear com a amigas e se divertir. Para muitos formavam um casal perfeito. No entanto, tinham uma relação intermitente, de idas e vindas. A causa era sempre a mesma: ela, por vezes, se mostrava irritadiça e mal-humorada, seja com o pouco carinho que recebia do namorado, seja pela vida quieta que levava ao lado dele. Giovani, então, preferia se afastar na certeza de que ela não era a pessoa com a qual deveria compartilhar a sua vida afetiva. Passado alguns dias ou semanas, a namorada o procurava como se nada tivesse acontecido e o relacionamento era reatado, mais por comodidade do que por amor. Isto aconteceu várias vezes e sempre pelo mesmo motivo. Quando do último afastamento, embora não fosse uma separação declarada, ele tomara a decisão de não mais voltar, pois tinha a convicção que, apesar de a moça possuir muitas virtudes, não a amava.  Uma relação sustentada apenas por comodidade acabava por ser prejudicial a ambos. Entretanto, dessa vez, por acaso, tomara conhecimento de que ela estava envolvida com outra pessoa. De outro lado, Dayse soube, através de terceiros, de que Geovani tinha ciência do seu novo romance. Ela enviou uma mensagem de que a história não era exatamente como aparentava, desmentiu o novo romance, afirmou que Geovani ainda tinha lugar cativo em seu coração e voltou a um discurso, muito comum a ela, de transparência e fidelidade. Ela sempre lamentara que o seu casamento anterior fora muito afetado pelos contantes casos de infidelidade do marido falecido e, por isto, não tolerava tais situações. Segundo ela, este era o motivo pelo qual acabou levando-a também a ter relações extraconjugais durante o matrimônio. Mas o fato, agora revelado, era inegável. Embora tenha sentido ciúme, ele entendia o momento dela, respeitava o seu direito em tentar ser feliz ao lado de outra pessoa e pensava que, cedo ou tarde, o melhor seria também se envolver com alguém. O problema é que resolveu passar na casa de Dayse para devolver alguns pertences que estavam consigo e para dizer que poderiam ser bons amigos. Para a sua total surpresa, foi recebido com extrema agressividade, sendo alvo de acusações vagas e desconexas. A mulher alegou que tudo aquilo tinha acontecido por causa dele, que odiava a vida pouco movimentava que levava ao seu lado e, por fim, que sentia desprezo por ele e que se enganara quanto ao amor que sempre dissera sentir. Giovani passou dias sem entender a razão de tamanha reação. Até que decidiu escrever um roteiro sobre essa história, com a finalidade de contá-la para si mesmo, na tentativa de entender o fundo da questão. Ocorre que esse se torna o primeiro roteiro que ele consegue vender a uma produtora. Na sessão de estreia reencontra com Dayse no saguão do cinema; ela, feliz, está acompanhada do seu novo namorado; ele, feliz, pela realização de um sonho. A cena final é uma troca se sorrisos entre os dois, deixando ao expectador a conclusão que melhor aprouver.

Devidamente acomodados em uma mesa no canto, com duas canecas de café à frente, comentei que a cena em que Dayse recebe Giovani com extrema violência verbal era desnecessária. Confessei que tinha me incomodado.  O sapateiro argumentou: “É a cena mais importante do filme, um momento fabuloso, que permite uma virada na vida de ambos”. Falei que não tinha entendido o seu raciocínio. Ele explicou com paciência: “Toda a agressividade é consequência da desarmonia entre as metades que compõem o ser. De um lado o ego, sempre preocupado com as aparências, em construir uma imagem de perfeição e força para o mundo, quase sempre irreal, moldando o indivíduo aos cruéis condicionamentos socioculturais. Acaba por levar a pessoa a um estilo de vida que, inevitavelmente, traz um enorme vazio, desequilíbrio e sofrimento. Não raro, o indivíduo, quando ainda envolvido pelos mantos do orgulho e da vaidade, faz um grande esforço em ocultá-los, tanto dos outros quanto de si mesmo. De outro lado existe a alma, a metade ligada ao aprimoramento da essência do ser. Aquela que tem o conhecimento, ainda que inconsciente, de que a melhor aparência será sempre a mais pura essência. Quando com a consciência já desperta, o ser não se importa em revelar ao mundo as imperfeições e dúvidas que lhe são inerentes, pois possuem a determinação em caminhar sob a orientação da simplicidade e da humildade, nos primeiros passos rumo à plenitude”.

“A luta entre a luz e as sombras que nos habitam é silenciosa, mas nem por isto menos dolorosa. Quanto mais distante as partes, maior o sofrimento. A mais importante batalha da vida, não tenha dúvida, é travada dentro de cada ser. A maior vitória é aquela que você consegue sobre si mesmo, que consiste em alinhar amorosamente e em comum-união as suas metades em conflito. Unir uma parte à outra é a sublime arte da existência”.

Falei que entendia a explicação do artesão, mas não compreendia a razão da namorada ter sido agressiva. Loureiro deu de ombros e falou: “A rainha não pode ser vista nua”. Perguntei se ele se referia a Dayse, o sapateiro negou: “A rainha são as sombras pelo poder oculto que exercem sobre nós”. Diante do ponto de interrogação que surgiu na minha face, o sapateiro aprofundou o raciocínio: “As sombras precisam se manter disfarçadas para que possam continuar a exercer o seu domínio sobre o indivíduo. Ao serem reveladas é comum a reação violenta. É o destempero de quem se descobre por inteiro, sem máscaras, ilusões ou subterfúgios. As sombras chegam para socorrer e, o truque mais comum, é fazer acreditar que aquele sofrimento é por culpa de outra pessoa, transfere a responsabilidade e vira o rosto do exato espelho para não olhar nos olhos da verdade. Veja o caso de Dayse, ela sempre manteve relações extraconjugais, embora as condenasse, mas atribuía a sua atitude aos desvios do ex-marido. Daquela vez não teve como sustentar discurso sobre o valor da sinceridade e da lealdade, então, a fúria e o desequilíbrio”.

“Sob o falso argumento de oferecer proteção, as sombras nos iludem através de óticas equivocadas e retóricas tortuosas. O ciúme, o orgulho, a vaidade, a mentira, a inveja, o egoísmo, a ganância, o medo, ignorância sobre si mesmo são as sombras mais comuns. As máscaras, os personagens que criamos em busca de aceitação e aplausos, a transferência de responsabilidade pelas próprias escolhas são as ferramentas mais usuais oferecidas pelas sombras”. Eu quis saber como elas surgiam. Loureiro foi didático: “Cada um cria as suas próprias sombras; o abismo entre as partes do ser é o solo fértil para elas se agigantarem.  São criaturas que se apossam do criador, arrastando-o anos a fio como um sonâmbulo de uma realidade aparente”.

Comentei que Dayse estava sendo hipócrita, pois tinha um discurso diferente da prática exercida. Loureiro me corrigiu: “Não. A hipocrisia tem que ser uma atitude consciente. No caso dela, as suas sombras a convenciam a uma prática que ela própria condenava transferindo a responsabilidade para o companheiro pelo fato de ele não entregar o amor que ela julgava merecer. Assim, a cada dia, concedia maior poder as próprias sombras. Se você para pensar, em última análise, a ira da Dayse não foi contra Giovani, mas em razão da verdade ter surgido em hora imprópria. Foi o desespero de estar diante de si mesma sem qualquer disfarce. Por ironia e tragédia, aquilo que lhe dava prazer também trazia dor, seja pelo vazio, seja pela incompletude, seja pela ilusão. Assim são as sombras”.

“Quando ela fica diante do namorado, sem condições de negar uma prática que tanto condenava, sem máscaras, sem a fantasia do personagem social que havia escolhido para si, se sentiu impossibilitada de enfrentar o momento de jeito sereno. As sombras do orgulho e da vaidade nunca permitem, sempre entregando o boleto para alguém pagar a conta. Não à toa, o diretor do filme a mostra abrindo porta logo após o banho, com os cabelos molhados e sem maquiagem. É a exata metáfora. Na verdade, quando ela olha para o namorado acaba por revelar para si mesma as próprias sombras, percebendo nela tudo aquilo que tanto atribuiu aos outros e a incomodou em seus romances. É o vazio de uma vida distante da verdade. Ela percebe que a raiz do sofrimento não está nas escolhas alheias, mas nas decisões que tomou ao longo da vida”. Deu um gole no café e prosseguiu: “Dayse explode em fúria não por estar impossibilitada de enfrentar o Giovani, mas por não conseguir enfrentar a si mesmo. Esta é a motivação mais comum para a agressividade das pessoas: as próprias sombras que na ilusão de proteção ou de sucesso aparente acabam por manipular e sufocar o melhor do ser. Até o limite da dor que causa na alma. Então, a pessoa explode, quando não em fúria, através de doenças somatizadas ou de tristezas sem fim, por tudo aquilo de bom que poderia ser, mas não foi”.

Comentei que o Giovani tinha tido sorte em escapar da vilã. Loureiro tornou a me corrigir: “A Dayse não é a vilã da história. Repare que Giovani tinha também as suas próprias sombras que necessitavam de igual iluminação. Recorde que ele estava ao lado de Dayse pelo fato de ela ser uma pessoa bacana e atenciosa, porém, ele não a amava. Tanto que nem se importava quando ela ficava mal-humorada e o casal se afastava. No entanto, quando soube que ela estava com outra pessoa, sentiu ciúmes”. Falei que, talvez, somente assim foi capaz de reconhecer o amor que sentia pela namorada. O artesão balançou a cabeça e esclareceu: “Antes fosse, porém, na maioria das vezes não é isso que acontece. O amor é um sentimento fortíssimo, não costuma deixar dúvida e possui vínculos com a liberdade. O ciúme, por sua vez, está sempre ligado à dominação. Penso que ele no fundo gostava da sensação de poder que sentia pelo fato de depois dos afastamentos a namorada sempre o procurar, declarar o seu afeto, de tê-la sempre à disposição. A dominação é um vício ancestral que sustenta o orgulho e a vaidade, duas sombras que, embora nos tornem extremamente frágeis, nos entorpecem com a falsa sensação de vitória. O poder sobre si mesmo é pura luz; sobre os outros é uma terrível, porém, inebriante sombra”.

Questionei se Giovani seria o vilão da história. O artesão explicou: “Também não. O maniqueísmo de imaginar pessoas absolutamente perfeitas ou totalmente imperfeitas é outra sombra que atrapalha demais o entendimento e, por consequência, a evolução. Todos, sem exceção, somos viajantes em direção às Terras Altas, alguns em estações mais avançadas do que outros, no entanto, cedo ou tarde, todos completarão a jornada de iluminação”. Interrompi para dizer que as sombras eram as vilãs do filme. Loureiro deu uma gostosa gargalhada e corrigiu mais uma vez: “Abandone em definitivo esse conceito de herói e vilão, ao menos de forma absoluta. Ninguém pode lhe prejudicar mais do que você a si mesmo, assim como cada qual sempre será o seu principal aliado. As forças da luz e das sombras estão em você, qual delas usar define o próprio destino. Cada um, ao mesmo tempo, é o protagonista e o antagonista da própria história”.

“Até as sombras têm um importante papel a serviço da luz, como o instrumento que irá romper a casca que impede as sementes das virtudes de ganharem vida. Não negue nem sufoque as suas sombras para não explodir em desequilíbrio e raiva. Apenas aprenda a usá-las amorosamente a seu favor. Repare que após a cena sombria, ambos os personagens partem em busca das inevitáveis transformações pessoais por se sentirem sinceramente incomodados com tudo que aconteceu”.

“A cena dos dois na casa de Dayse é repleta de simbolismos importantes. Lembre que o diretor faz questão de que a porta seja aberta em câmara lenta para enfatizar não o encontro entre namorados, mas como se uma porta se abrisse para que cada um pudesse ir ao encontro de si mesmo. Ela de cara lavada e sem máscaras; ele com a desculpa de devolver os objetos, quando na verdade ansiava pelo pedido de desculpas da namorada e restabelecer os seus domínios”.

“Cada qual cria a própria prisão em cela sem grades. Por isto, o voo da liberdade será sempre uma escolha pessoal e intransferível”.

“O filme mostra que cada personagem, ao seu modo, após o conflito, vai em busca de entendimento e transformação. Ela vai fazer terapia e meditação para se autoconhecer e perceber os sentimentos que verdadeiramente a movem; Giovani para escrever o roteiro precisa compreender a história que viveu e isto só foi possível porque conseguiu revelar para si mesmo a sua face oculta. Toda a cura consiste em primeiro reconhecer as sombras para depois trazê-las à luz e, em seguida, transmutá-las para sempre”.

Eu quis saber, na opinião do sapateiro, qual seria o significado do sorriso que Dayse e Giovani trocam na cena final. Loureiro respondeu de pronto: “De cumplicidade”. Cumplicidade? Estranhei. Perguntei sobre qual cumplicidade a que ele se referia. O bom sapateiro disse: “Eles foram cúmplices na libertação”. Fez uma breve pausa antes de finalizar: “Cada um sobre si mesmo”.

10 comments

Claudia Pires julho 27, 2017 at 8:26 pm

Muito bom.

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André Filipe julho 28, 2017 at 12:11 pm

Cada vez melhores ficam estes textos, me emociono sempre!!

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Joane Faustino julho 28, 2017 at 2:27 pm

Gratidão!

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Hélio Dauto Proença julho 29, 2017 at 10:49 am

Muito bom…
Penso que cada buscador tem que se olhar muito profundamente para identificar o que realmente ele é, para poder transformar naquilo que deseja ser, só assim vamos nos livrando das personalidades e nos encontramos com a essência do nosso eu maior…
A caminhada é longa mais qdo despertamos para essa realidade não deixaremos de caminhar!

Gratidão…

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Edivalson Fogaça Falcão julho 29, 2017 at 5:49 pm

Ótimo texto…

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Douglas Dust agosto 2, 2017 at 11:29 pm

Muito obrigado; esse texto veio em uma hora muito boa para mim
Me encontro em uma situação de romance e traição
Movido pelo desejo, esse texto me indico a qual reflexão devo tomar em meu caminho e pensar no que realmente importa para mim se almejo evoluir em um caminho espiritual onde estou atrevessando uma floreSta de ilusões e não sei se sigo a luz ou os desejos vazios do mundo
Não vou entrar em detalhe já que isso não importa
Gostaria de agradecer imensamente pelas palavras
Elas são como sementes que uma hora irão germinar
Adoro seus textos
Grato

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Rê Freitas agosto 3, 2017 at 2:07 am

<3

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Christina Mariz de Lyra Caravello agosto 5, 2017 at 1:47 am

“A melhor defesa é o ataque”

A meu ver, os vais e vens dos relacionamentos não são benéficos porque, na verdade, nem vão e nem vem completamente. São recursos momentâneos, mas que a cada ida e a cada vinda, tornam a relação mais fraca. São mais verdadeiros quando vão do que quando vem. Porque há algum tipo de anseio no ir e apenas um, no vir: a comodidade.

Não havia amor na relação de Dayse e Giovani. Apenas costume. E também a traição não tem justificativa. Ela passou a trair porque o ex marido a traía? E mesmo não justificando as traições?
Que pensamento mais torto ! E como justificar trair Giovani, se ele não a traía?

Quando ela explode em fúria, concordo com Loureiro, ela está explodindo com ela mesmo por ter se mostrado sem nenhum tipo de máscara.

A humanidade distorcida das pessoas complica os relacionamentos.

“O amor é um sentimento fortíssimo, não costuma deixar dúvida e possui vínculos com a liberdade. O ciúme, por sua vez, está sempre ligado à dominação. Penso que ele no fundo gostava da sensação de poder que sentia pelo fato de depois dos afastamentos a namorada sempre o procurar, declarar o seu afeto, de tê-la sempre à disposição. ”

Tanto ela, como ele tinham motivos errados para as idas e vindas em seu relacionamento. Com certeza não era amor. E com certeza tinha tudo ou tinha nada para dar errado.
E como um objeto restaurado, por melhor que seja a restauração, nunca mais será íntegro, também um relacionamento não o será.

Pelo menos no filme, o fim foi também um novo começo…

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Brunão agosto 7, 2017 at 10:43 am

“A melhor aparência será sempre a mais pura essência.”

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Nilma agosto 8, 2018 at 11:58 am

Gratidãosempre!

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