MANUSCRITOS VI

Para não dizer que não falei dos canhões

De volta à pequena e charmosa cidade que fica no sopé da montanha que abriga o mosteiro, após mais um ciclo de estudos, passei na oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos livros de filosofia e dos vinhos tintos. Estava fechada. Fui para a estação de trem, de onde seguiria para uma metrópole não muito distante, na qual embarcaria para casa. Ao a desembarcar nessa grande, agradável e moderna cidade, como o horário do voo estava distante, decidi por fazer um passeio a pé, para conhecer os seus vários prédios seculares de inegável valor histórico. Flanando ao acaso pelas ruas, me deparei com a uma enorme praça. Dois grupos, compostos por muitas pessoas de ambos os lados, separados por uma tênue linha de policiais, se ofendiam de todas as maneiras que as palavras permitiam. Faltava pouco para ultrapassarem o último limite imposto pela civilização, à beira da histeria, para iniciarem as agressões físicas. Afastei-me rapidamente. Segui por uma estreita rua lateral, onde encontrei uma improvável cafeteria na qual havia uma bicicleta estacionada à porta, enfeitada com flores de todas as cores. Fui envolvido por uma sensação de aconchego. Numa sucessão de surpresas, vejo Li Tzu, o mestre taoísta, saboreando tranquilamente uma xícara de chá, como se os ruídos e rugidos do mundo fossem incapazes de abalar a sua paz. Ao me ver, sorriu para mim e me convidou para sentar-me à mesa com ele. Diante do meu espanto por encontrá-lo ali, explicou que estava para as comemorações do quadragésimo aniversário da formatura da sua turma na Faculdade de Botânica. Gentil, quis saber seu eu o acompanharia no chá. Agradeci, mas preferi uma xícara de café. Sem demora, comentei sobre a confusão na praça não muito distante dali. Perguntei se ele sabia o que acontecia. O mestre taoísta fez sim com a cabeça. Indaguei a opinião dele sobre as causas daquela confusão. Com a fisionomia serena e um tom suave na voz, disse: “O Caminho é infinitopara aqueles que o percorrem com amor. Do contrário, não conseguirão prosseguir. Haverá esgotamento e nenhuma conquista. Não existe vitória através das armas”. Fez uma pausa para acrescentar: “Entenda por armas qualquer tipo de agressão, seja verbal, seja física”. Falei que aquela maneira de pensar, apesar da beleza, não me parecia prática. Seria como usar flores para inocular os canhões que nos apontam. Li Tzu franziu as sobrancelhas e disse: “O Caminho é uma jornada personalíssima. Ninguém pode fazê-lo por ninguém, assim como não devemos seguir o fluxo da multidão que se vale do ódio para alcançar a sua vitória. Ela será vã e ilusória. Não restará nenhum Caminho, apenas possível quando vivenciado a cada momento do dia pelo viés do amor. Embora delicado, o amor não pode ser subjugado. Pois, não há como aprisionar aquilo que não tem forma nem corpo”.

O garçom colocou a xícara de café sobre a mesa. O mestre taoísta continuou a construir o seu arco filosófico: “Os canhões mostram a sua utilidade e poder na ausência do amor. O amor jamais gera conflitos. Desejos e interesses vis, sim, fazem nascer a discórdia”. Interrompi para lembrar que casais que se amam também brigam. Li Tzu mostrou o meu equívoco: “Jamais brigam por amor. O desentendimento nasce do ciúme ou de qualquer outra sombra. Nestes momentos não é o amor que está em disputa, mas uma luta por dominação e controle no relacionamento. Não entendem que quando amor orienta as escolhas nunca haverá fraude, traição ou subjugação, atitudes apenas possíveis nos momentos nos quais o amor deixa de ser uma prioridade existencial”. 

Levantou a xícara para brindarmos aquele encontro e disse: “Essa ideia serve para todos os relacionamentos, dos mais íntimos até os que abrangem uma grande coletividade. Onde as virtudes se fazem atuantes não coexiste nenhuma resolução de ódio ou de ganância. Ao menor tropeço, as virtudes, como derivativas do amor, nos reconduzem ao Caminho. O orgulho e a vaidade desaparecem na presença da humildade e da simplicidade; a intolerância, a impaciência e as condenações levianas são iluminadas pela chama da compaixão. Compreendemos as imperfeições e dificuldades alheias quando nos mostramos conhecedores das nossas próprias imperfeições e dificuldades. A ganância desaparece diante de um comportamento impulsionado pela sinceridade, honestidade e equilibrado senso de justiça, quando já se consegue entender a diferença entre o preço da riqueza e o valor da prosperidade; conquistas imateriais nunca dependem de circunstâncias materiais. Assim, começamos a conhecer a liberdade genuína aos nos livrarmos das amarras dos condicionamentos ancestrais que nos aprisionam em ideias de riqueza econômica e de poder político como modelos de sucesso e vitória”.

Esperou que eu bebesse um gole de café e prosseguiu: “Se os senhores do mundo seguissem essa trilha, não haveria insatisfação entre as pessoas. O povo não precisaria de leis. Todos saberiam a coisa certa a fazer”. Tornei a interromper para fazer alguns questionamentos. Primeiro, queria entender quem eram esses senhores do mundo a que ele se referia. Li Tzu explicou: “São todos os tipos de influenciadores e manipuladores que controlam a opinião e, por consequência, a vontade das multidões. Sejam políticos profissionais, jornalistas, artistas, professores ou religiosos. As pessoas possuem um forte impulso para aderir a esses movimentos de fluxos conceituais por vários motivos. Muitos não foram educados ao livre-pensar; outros ainda não conseguem descontruir ideias para formular conceitos próprios. Então, seguem para um destino que não escolheram. Quando somos carentes de aceitação, há o desejo de pertencimento tribal gritando mais forte do que a consciência e o coração.  Somente quando nos livramos dessas amarrar sociais é que aprendemos a pensar de maneira independente. Assim, nasce a liberdade; esse é o embrião das nossas asas”.

Bebericou o café e acrescentou: “Quem abre mão do livre-pensar abdica das suas escolhas. Quem não sabe decidir no prumo da sua consciência deixou de ser dono de si mesmo. De que vale possuir qualquer outra coisa quando não mais estamos no comando da nossa própria vida?”. Era uma pergunta que não precisava de resposta. Apenas balancei a cabeça como quem diz que o raciocínio estava claro e coerente. Questionei se não era ingênuo achar que a simples circunstância de haver mais amor seria suficiente para encerrar os conflitos. Ele ponderou: “Todos os conflitos têm causa quando os interesses e desejos são rasos em amor e virtudes; em percepção e sensibilidade. Nesta hora os canhões entram cena. As leis, com os seus inevitáveis poderes coercitivos e punitivos, são autênticos canhões de tinta e papel apontados em nossa direção. As leis existem porque nos falta entendimento e respeito. Se existe uma lei que precisa dizer que todos somos iguais é porque muitos na multidão ainda não se consideram assim. Leis funcionam como armas, cercas e correntes a nos impor limites. A fronteira entre a civilização e a barbárie é o rigor necessário nas leis para conter os impulsos de agressividade e instintos primários das multidões”.

Bebeu um gole de chá e disse: “Contudo, embora as leis possam apontar sinais de mudanças, não são capazes de promover qualquer movimento evolutivo. Jaulas não educam as feras, apenas reprimem os seus instintos. Assim funcionam as leis; triste saber que ainda precisaremos delas por muito tempo. Somente as transformações intrínsecas promovidas por novos conhecimentos e olhares são autênticas e efetivas. Falo de consciência e amor. Somente a práticas virtuosa será capaz de aprofundar as raízes de uma nova verdade, mantendo o indivíduo firme e equilibrado na luz diante das intempéries causadas pelas sombras individuais e coletivas”. 

Franziu as sobrancelhas e disse: “Tudo mais é mera maquiagem. Embora por trás de sofisticados disfarces, haverá um maior número de canhões. Uma prática que irá se perpetuar enquanto não entendermos que os decretos e as manipulações de vontade nunca terão força para mudar uma sociedade além da aparência. Seguiremos aquém da verdade. Apenas as transformações individuais trazem o poder de mudar o mundo. Tudo mais são interesses vis e absoluta cegueira. Conquistarão o mundo, mas perderão a si mesmo. Para estes, o Caminho permanecerá fechado. Os Guardiões dos Portais não deixarão que sigam em frente. Todas as vitórias serão vãs; mesmo as de concreto se desmancharão frente a outro Guardião, o Tempo”. 

Eu quis saber como ele se posicionava diante dessa situação. Li Tzu explicou: “Os meus colegas conservadores falam que sou liberal; os amigos liberais dizem que sou conservador”. Indaguei o que ele acreditava ser. O mestre taoísta deu de ombros e sussurrou como quem fala algo inevitável e simples: “Sou apenas eu mesmo. Uso a minha verdade como mapa e o amor como bússola. Onde há palavras de ódio, discursos de lamentos e hinos de confronto, não me detenho; sigo em frente”.

O seu olhar ficou distante, como se buscasse uma lembrança ou palavra, e falou como se recitasse uma poesia: “Era como quando o Céu e a Terra estavam unidos, sob doçura do orvalho”. Ao perceber um ponto de interrogação em minha face, se apressou em esclarecer: “Em todas as culturas e doutrinas religiosas, apesar das diferentes narrativas, existe a imagem do Paraíso e a cena da Queda. A história de Adão e Eva narrada nas Antigas Escrituras é somente um dos padrões mitológicos que habitam o inconsciente coletivo, um conhecimento comum a toda humanidade, embora não codificado em nosso consciente. O Paraíso é o arquétipo de um lugar onde o amor orienta a vida; Adão e Eva representam o arquétipo da pureza como virtude essencial às plenitudes. A serpente, como arquétipo das nossas sombras pessoais, convence ao casal a experimentar o Fruto dos Interesses, com o qual teriam acesso a prazeres e conquistas mundanas. Então, temos a imagem da Queda, cena recorrente quando abdicamos do amor como norteador do nosso estilo de ser e viver. Terminamos por conhecer o sofrimento”. Fez uma pausa antes de concluir: “A cura está em fazer o caminho de volta para Casa; voltar para Casa é iluminar as próprias sombras. Ego e alma alinhados na luz”.

Depois, comentou: “As pessoas naquela praça, todas atormentadas, embora desconheçam este fato, se ofendem mutuamente porque não aprenderam a escutar os próprios corações. Elas ainda acreditam nas vozes das várias Serpentes”.  

E acrescentou: “Longe da essência, para não sofrer tanto, o povo teve de aprender sobre os limites. Quando falo em limites, não me refiro ao indispensável respeito. Trata-se de algo triste, a separatividade, que surge quando o amor é posto de lado em prol dos interesses, desejos e conquistas mundanas. Cada indivíduo se fecha em si mesmo, como um peixe que teme o rio, embora pereça ao se afastar das suas águas. As pessoas se sentem ameaçadas, umas pelas outras, sem perceber que são fontes autênticas de afeto, compreensão, cooperação e aprendizado. Somos rios de amor, indispensáveis uns aos outros, para que os nossos corações não sequem de sede”.

Referindo-se à multidão da praça, falou: “São como um amontado de ostras que, embora próximas em corpo, as almas não conseguem dialogar por se manterem fechadas em conceitos rígidos e ideias que nunca foram suas. Ferem-se por causas menores, acreditam em mentiras e gritam por ilusões, como cegos que se deixam conduzir ao precipício por guias desonestos. Não percebem que estão a serviço dos senhores do mundo, que nenhum sentimento legítimo nutre por elas. São usadas como canhões para destruir outros senhores do mundo, que também usam de artilharia semelhante em imagem, intenções e valores. Não passam de lutas inglórias como são todos os movimentos sem amor e distantes da verdade”. Bebeu mais gole e disse: “Esqueceram de como é bom se alimentar de amor. São estimuladas a destilar o próprio veneno como mecanismo indispensável para se defender do ódio alheio”. Esvaziou a xícara de chá e lembrou: “Contudo, ninguém pode reclamar de sede por se afastar das fontes de águas doces. Enquanto não perceberem, haverá uma sequência interminável de quedas e sofrimentos. Nenhum daqueles que está na praça, sem importar quem derrotará quem, alcançará qualquer conquista real. Fora da luz não há vitória”. 

Eu quis saber se aquela situação o desanimava quanto ao amanhã da humanidade. Li Tzu fez não com a cabeça e disse: “Desanimar e desistir são palavras inapropriadas no Caminho. No mundo, o Caminho é como um rio para o mar”. Ele se adiantou a explicar a expressão: “É a doçura das águas dos rios que permite a existência de vida no mar. Do contrário, o nível de salinidade seria tão alto que impossibilitaria a existência da fauna marítima. Vide o exemplo do Mar Morto onde inexiste vida por ser muito salgado. Embora seja inegável a importância dos oceanos para o planeta, a água que bebemos, nos banhamos, cozinhamos e usamos para a limpeza provém dos rios. A vida seria insustentável sem a água doce.  Os fundamentos do Caminho são como a água doce que sustenta a vida no mar. Por isto, os rios desaguam no oceano. Sempre haverá indivíduos dispostos a dulcificar as multidões. O amor é imprescindível para sustentar a vida no mundo. Do contrário, a aspereza, acidez e azedume envenenariam por completo todos os corações. O coração do mundo também pararia de pulsar. Ainda que as pessoas respirem, andem, produzam e se reproduzam como autômatos sofisticados, a vida sem amor é o real significado da morte. Por mais que o depreciemos, desprezemos e até mesmo o ironizemos, essa fonte de doçura continuará à disposição de todos. Amar é uma simples escolha, disponível todos os dias. Para qualquer um”.

Não falei palavra. Não precisava. Então, Li Tzu finalizou: “Mesmo que se construam mil barreiras, mesmo que se ergam um sem número de represas, enquanto houver um único rio seguindo em direção ao mar, haverá uma fonte de doçura às multidões. A essência da vida é o amor. A razão do Caminho e o porto de Destino também”.

Ficamos algum tempo sem dizer palavra. Eu precisava alocar aquelas ideias. Como já estava na hora do meu voo, nos despedimos. Andei por algumas ruas, quando na entrada da estação do metrô, de onde iria até o aeroporto, avistei uma pequena banca de livros usados. Ao passar os olhos pelo singelo acervo, me chamou atenção um livro do Tao Te Ching. Sem hesitar, decidi por comprá-lo, pois era uma edição cuja tradução eu não possuía. Paguei, coloquei-o na mochila e segui em frente. Já sentado na poltrona do avião, ao pegá-lo para ler, reparei que tinha uma página arrancada. Ela estava dobrada dentro do livro. Era o poema trinta e dois. Fiquei impressionado. 

O Tao é infinito

Embora delicado, não pode ser subjugado,

Pois, não tem forma.

Se os senhores do mundo seguissem essa trilha,

Não haveria insatisfação entre os dez mil seres.

O povo não precisaria das leis,

Todos saberiam a coisa certa a fazer.

Era como quando o Céu e a Terra estavam unidos,

Sob doçura do orvalho. 

Longe da essência,

Para não sofrer tanto,

O povo teve de aprender sobre os limites.

No mundo, o Tao é como um rio para o mar.

Eu tivera uma aula sobre o milenar texto sagrado oriental enquanto conversava informalmente sobre uma questão mundana. Os verdadeiros sábios são suaves e quase imperceptíveis. Li Tzu era um deles. 

(Este texto foi adaptado de um trecho do livro que escrevemos sobre o Tao Te Ching de Lao Tsé, com tradução do próprio Li Tzu, que será publicado em 2022. Acontecimentos pontuais, de incrível sincronicidade, nos levaram a antecipar esta pequena parte da obra).

6 comments

Terumi março 21, 2021 at 9:33 pm

Gratidão 🙏

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André Filipe março 22, 2021 at 7:43 am

Eu acredito no poder do amor e das transformações que esta incrível força pode nos trazer. Gratidão.

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Fernando março 22, 2021 at 12:50 pm

Separatividade genocida…Gratidão meu amado irmão, profunda e sem fim…

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Vidyapriya março 24, 2021 at 11:47 am

Perfeito este lindo texto… se aplica muito ao momento que a humanidade experimenta … pandemia, pandemônio, pânico … precisamos aprender a se render ao AMOR … este ano de 2021 sobre a regência de um astro poderoso no céu teremos ótimas oportunidades de experimentar as facetas do AMOR … gratidão … Namaste

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Rosana março 25, 2021 at 2:36 am

A partir da pequena parte da obra antecipada, já sabemos o que esperar desse livro… Que venha 2022! Gratidão Yoskhaz!

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SCHWEITZER abril 16, 2021 at 4:30 pm

Que texto lindo que explica a importancia do amor. Amei. A passagem final do Tao foi a cereja do sorvete.

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