TAO TE CHING

Tao Te Ching, o romance (Quadragésimo oitavo limiar – O sabor da vida)

Era uma biblioteca notável. Do chão ao teto, os livros cobriam as paredes. Pelas janelas pude ver lindos gramados entre prédios baixos. Jovens carregando livros andavam em todas as direções. Não tive dúvida de estar em uma universidade. Em uma pequena sala anexa, um homem com cerca de sessenta anos, de cabelos brancos e despenteados, sentado à mesa, fazia anotações a lápis em um bloco de papel branco. Ao me ver, apontou um livro grosso em uma das estantes e, com modos gentis, me pediu para eu o pegar. Como havia dois, lado a lado, ambos de Física, perguntei qual deles seria. O homem deu de ombros e sugeriu: “Escolha você, por favor”. Não entendi, mas obedeci. Entreguei um que falava sobre a Teoria da Relatividade. Ele agradeceu e o colocou no chão para apoiar os pés, de modo a se sentir mais confortável na cadeira. Não gostei de ver um livro sendo usado daquela maneira. O interrompi questionando se já o tinha lido. O homem me olhou com candura, disse sim com a cabeça e complementou: “Algumas vezes, mas confesso que não o entendi por completo. Há muitas lacunas a serem preenchidas, várias perguntas ainda estão sem resposta”. Falei que os livros, por serem fontes de conhecimento, eram sagrados e deviam ser tratados com respeito. Ele parou de escrever, colocou o lápis sobre o papel e disse com serenidade: “O sagrado não está na reverência, mas na utilização”. Falei que não tinha entendido. Ele se apressou em me explicar: “Sagrado é tudo aquilo que me torna uma pessoa melhor. O conhecimento é sagrado a depender do uso que fizer dele. Ajoelhar-se diante da imagem confeccionada em justa homenagem a um homem santo significa respeito; somente ao aplicar no cotidiano os bons ensinamentos legados por ele, quando da sua passagem pelo planeta, a tornará sagrada para você”. Deixou o olhar girar por tantos livros ao redor e comentou: “Quem se dedica aos estudos cresce um pouco a cada dia, como um pintor que acrescenta novas cores em sua paleta de tintas”. Mexeu a mão para ressaltar a conclusão óbvia e acrescentou: “Resta saber o que fará com elas”. Em seguida, prosseguiu: “De nada adiante falar todos os idiomas se o poliglota não consegue se comunicar com ninguém; ou ter todas as chaves, mas nenhuma porta para abrir. As multidões se preocupam com quantidade e tamanho; quanto mais e maior, mais poderosas se sentem. Ler todos os livros não faz de ninguém um sábio se o conhecimento adquirido não servir de espelho e for usado como formão para automodelagem. Teremos apenas um erudito pedante, com palavras de efeito a impressionar os tolos que se deixam levar pelas aparências estreitas e rasas”. Interrompi para questionar se ele desprezava o conhecimento. O homem me corrigiu o pensamento: “De jeito nenhum. Falo sobre a utilidade da ferramenta, não sobre o impacto causado pelo seu tamanho, sofisticação ou variedade de modelos. Saber como o mundo funciona é de extrema importância e faz a justa glória dos cientistas; entender a verdadeira razão de cada uma das nossas escolhas e movimentos, por mais simples que sejam, o que representam e aonde nos levam é o desejo dos autênticos sábios”.  

O homem continuou: “Um indivíduo sem tanto conhecimento, mas com a percepção e a sensibilidade apuradas, tem capacidade de fluir melhor pelos acontecimentos do que outro bem mais culto, mas com nível consciencial reduzido. Embora o estudo sirva para decodificar o funcionamento da ciência das coisas, e até mesmo da alma, somente a autodescoberta permite o acesso à verdade, pois, no âmago de cada pessoa adormece o legítimo poder da vida. Para acessar esse segredo, mais importante do que acrescentar, se faz necessário retirar os excessos que tanto atrapalham a mais valiosa de todas as conquistas. Assim, ao deixar para trás todas as suas desnecessidades, quem vive o Caminho diminui um pouco todos os dias, pois, o viajante se despe dos enganos, descarta os subterfúgios, abandona a superfície, desfaz as aflições, desmonta dos conflitos, esvazia os sofrimentos, faxina as mágoas, descola o supérfluo, joga os medos no lixo, desmancha as culpas. Tudo que avoluma e pesa dificulta os movimentos, furta a agilidade. A estrada até a essência prescinde de sutileza, leveza e suavidade, jamais de força bruta, em quaisquer das suas modalidades, mesmo as mais desapercebidas, como impaciência, intolerância e desânimo”. Fez uma breve pausa antes de prosseguir: “Por saber se tratar de uma disputa insensata, nefasta e inútil, o viajante não deseja ser melhor nem maior do que ninguém. Tem consciência que o bom combate se resume na luta travada consigo próprio para iluminar as suas sombras através das mil virtudes. No entanto, ninguém compreende o poder das virtudes nem as suas utilidades sem antes conhecer a si mesmo, movimento anterior e fundamental para acessar a verdade. Trata-se de uma viagem evolutiva, na qual o viajante se transforma a cada trecho da jornada, em um sem-número de pequeníssimas metamorfoses. O mundo se modifica aos poucos, na exata medida em que após cada uma das múltiplas curvas do Caminho o viajante o observa e se move de maneira diferente”.

O homem continuou: “Ao passo em que o ego se aproxima da alma, o indivíduo se encanta com a autonomia e a independência que alcança. O mel da vida não ficará à espera de permissões alheias ou de acontecimentos mundanos, mas estará em suas mãos a cada movimento que fizer para encontrar consigo próprio, sem a necessidade de qualquer dependência externa. As conquistas do espírito estão além do poder do tempo e das influências da cidade; nunca se deterioram, não entram nem saem de moda. Um poder atemporal que, por sua sutileza, escapa dos desejos comuns das multidões sedentas e aflitas que sofrem e se amedrontam por desconhecerem quem são, e, porquanto, sobre a verdade que deveria lhes servir de mapa e bússola. Acabam por seguirem o fluxo pelo mero fato de todos estarem indo naquela direção; a existência se esvairá no esgoto dos dias perdidos entre medos, sofrimentos e conflitos desnecessários, os vários frutos da árvore da incompreensão que possuem sobre si mesmos”.

Falei que estava confuso. Eu tinha dificuldade para entender aquele raciocínio. O homem esclareceu: “Conheça a si mesmo e conhecerás a verdade; conheça a verdade e se libertarás. São duas das mais ontológicas frases da História da Humanidade”. Apontou os livros nas estantes e disse: “Todo conteúdo desta memorável biblioteca não oferece a evolução oferecida em tão poucas palavras. Descobrir quem eu sou é a grande aventura da vida; um retorno à essência, da qual irei renascer com diferentes fundamentos. Aceitar as minhas imperfeições, sem me acomodar a elas, abre as sucessivas portas da verdade. Sob esses novos fundamentos e inusitado olhar, na reconstrução de quem irei me tornar, compreendo as conquistas que me libertarão”. Libertar de quê, perguntei. Ele respondeu de imediato: “Dos medos e sofrimentos provocados pela ignorância e pelos desequilíbrios emocionais, prisões comuns a todos nós”. Deixou o olhar vagar por instantes pela janela e disse: “Através da verdade oriunda do autoconhecimento, compreendo o poder das virtudes, com as quais enraízo força e equilíbrio para lidar com as dificuldades do cotidiano; os problemas, por me ensinarem algo que desconheço em mim, se tornam fontes de aprendizado e transformação, não mais de preocupações; adquiro leveza por me livrar dos rancores e dos sofrimentos, ganho suavidade por me mover sem medo nem conflitos”. Arqueou os lábios em doce sorriso e concluiu: “Os dias se tornam extremamente saborosos”.

Perguntei qual era o sabor da vida. O cientista deu de ombros e comentou: “Você escolhe. Assim é comigo, contigo e com todos”. Argumentei que todos queriam dias repletos de abraços e encontros, geladeiras cheias e casas confortáveis. Ele concordou: “Sim, nada há de errado nisso. Contudo, preste atenção aos movimentos que faz para alcançar tais conquistas. Nem toda conquista entrega aquilo que se imaginava alcançar. Não raro, ao se chegar no topo da montanha, olhamos ao redor nos dando conta que nada havia do que acreditávamos encontrar. Significa que subimos a montanha errada; mas não há razão para desanimar. Caso tenhamos aprendido algo de bom com essa escalada, não reiniciaremos do zero”. Teve a atenção voltada para um grupo de alunos que passava em algazarra pelos jardins da universidade, sorriu pela irreverência que sempre apreciou, e voltou ao assunto: “Sem se mover internamente para pacificar as próprias sombras, desmanchando cada uma das incompreensões que possui sobre as suas relações, seja consigo próprio, seja com o mundo, as ações externas se manterão conflituosas. Os movimentos intrínsecos servem para elaborar as experiências vividas no intuito de depurar a si mesmo e agregar virtudes para se expressar no mundo através de ideias, sentimentos e gestos cada vez mais nobres. Lembre que as virtudes são ferramentas extraídas da fusão do amor com a sabedoria. Portanto, serão sempre movimentos quietos e silenciosos, sem alarde, propaganda ou qualquer grande impacto coletivo. Ações simples e firmes, porém, sempre mansas, e sem necessidade de muitas palavras; gestos quase invisíveis, costumeiramente desprezados pelas multidões ansiosas em realizar feitos vultuosos. Sem os devidos fundamentos consolidados no laboratório da alma, todas as conquistas serão vazias, deixando a vida com um sabor amargo; tanto esforço para tão pouca alegria, dirão ao constatar que pouco, ou nada, caminharam na estrada do tempo”. Pegou um copo com água que estava sobre a mesa, bebeu um gole e pontuou: “O sábio conhece o sabor da vida; ele faz cada vez menos até alcançar o não-agir”. Questionei se ele incentivava a inércia ou a estagnação como molde à felicidade. O homem negou: “De jeito nenhum. Não foi isso que eu disse”. Em seguida, explicou: “Por serem de menor importância para a maioria das pessoas, as conquistas intrínsecas são adiadas, depreciadas ou menosprezadas em seu genuíno valor. Por se tratar da superação dos obstáculos internos, e não das vitórias vultuosas aos olhos do mundo, muitos têm a sensação de que o sábio nada fez, quando em verdade travou as mais difíceis batalhas evolutivas para se superar e se transformar. Mudamos o mundo ao modificar quem somos. Desconheço outra maneira. Como pouquíssimos percebem esse movimento intrínseco valioso e fundamental, por ser quase invisível aos olhos das multidões, no Oriente utilizam a nomenclatura agir através do não-agir. Este termo possui outras interpretações, todas válidas. Significa também a ação sem esforço, impulsionada por uma ideia já bem sedimentada e impulsionada pelo mais puro amor, quando o bem é praticado com mesma naturalidade com que respiramos. Ninguém pensa se deve ou não respirar, simplesmente o faz, como se outra ação não fosse cabível. Assim, um dia, a luz se manifestará em nós”. Em seguida, concluiu: “Embora tenha se tornado uma pessoa diferente e melhor, firme e equilibrado em suas ideias, emoções e ações, se movendo com leveza e suavidade por entre tudo e todos, mas por não ter alcançado as glórias do mundo, muitos acreditarão que o sábio nada fez. Contudo, tudo restará feito”.     

Eu quis saber como escolher o sabor da vida. Ele respondeu de pronto: “Por intermédio das suas prioridades; os objetivos que considera mais valiosos e urgentes”. Interrompi para lembrar que as condições básicas de sobrevivência não merecem qualquer negligência. Ele me corrigiu mais uma vez: “Eu não disse nada ao contrário disto. Falo sobre o sagrado estar enraizado ao mundano; necessariamente. Um se completa ao outro em perfeita simbiose, permitindo a manifestação divina em todos os gestos praticados com essa sincronia. São atos que, por sua extrema simplicidade, estão ao alcance de qualquer pessoa; basta entender e querer. Todos os dias e situações são perfeitos para fazermos de um jeito nunca ousado antes. Sou o criador da minha própria criatura; moldo e esculpo aquele a quem quero me tornar. Lute pela sua sobrevivência, se esforce para oferecer condições confortáveis a quem está ao redor, mas nunca ofereça a sua luz como objeto de barganha. O suor do trabalho apenas será glorificado através de uma existência virtuosa. Senão, tudo restará desperdiçado”. Uma funcionária da universidade entrou para o avisar de uma reunião que começaria dali a instantes. O cientista a agradeceu, esperou que ela saísse e continuou: “O sagrado, conforme falamos há pouco, consiste em tudo aquilo que me faz uma pessoa melhor. Assim, os acontecimentos do dia a dia, mesmo os mais banais, são as únicas oportunidades que temos para os exercitar o sagrado que nos habita; e evoluir. Inexiste outras. Aqueles que acreditam que o sagrado se restringe aos templos e igrejas, nada sabem sobre a luz”. Bebeu mais um gole d`água e continuou: “Nessas ações simples do cotidiano, ganhamos o mundo por abdicar em dominar o seu fluxo. Em outras palavras, seja livre para decidir sobre a sua rota e rumo; porém, permita que todos façam o mesmo. Temos o impulso de impor a nossa verdade, vontade, interesse ou desejo sobre as outras pessoas. Esta é a causa de grande parte dos nossos conflitos. Ainda temos dificuldade em sermos contrariados e frustrados. Trata-se de um condicionamento ancestral de controle e poder indevido; logo, ilegítimo. Mais grave, são comportamentos coercitivos de efeitos amargos, mesmo quando manifestado em palavras doces. Pior, em alguns casos, dominador e dominado se aprisionam por longas algemas de dependência. Por ignorância, muitas vezes nos surpreendemos por não perceber a tentativa de interferência das nossas ações, gerando dores e dissabores, azedando o gosto da vida. A desconstrução desse jeito de se relacionar retira muitos dos entulhos que carregamos desnecessariamente e impedem uma melhor fluidez pela estrada do tempo”.

Pegou o lápis e rabiscou uma equação no papel com apenas três letras e um único número. Nada mais. Depois, pontuou: “Dizem se tratar de uma das fórmulas mais importantes da ciência contemporânea. Foi criada sem a necessidade de qualquer aparelhagem sofisticada; tampouco de lei, investimentos financeiros ou incentivo governamental. Bastou lápis e papel, criatividade e dedicação. Tão e somente. Como vê, ninguém precisa de muito para ir longe. Não raro, menos é mais. Perdemos a vida por não compreendermos o sabor da sua simplicidade, a virtude que afasta os enganos que nos distanciam da verdade, desfaz a mentiras convenientes que gostamos de acreditar, despe das desnecessidades que insistimos em perseguir, retira as máscaras que nos impedem de descobrir quem somos e, assim, nos coloca na rota do encontro fundamental, aquele que cada um terá de ter consigo mesmo. Contudo, ninguém chega à simplicidade sem a indispensável humildade em se aceitar como criaturas que, por estarem mal construídas precisam ser desconstruídas antes de se reconstruírem. Orgulhosos e vaidosos, muitos querem se erguer acima das nuvens altas, acreditando ser possível sobrepor infinitos andares sobre quem são, sem se darem conta que nenhum prédio se sustenta sem estar devidamente firmado por alicerces robustos. O valor da obra não consiste na sofisticação das suas linhas e formas, mas na simplicidade do seu uso e finalidade”.

O cientista disse que precisava ir. Uma reunião o esperava. Agradeci a conversa. Ele sorriu, pegou o livro que servia de apoio para os seus pés, abriu em uma página repleta de fórmulas e o girou sobre a mesa. Números e letras se embaralharam diante dos meus olhos, formando uma inusitada mandala. Atravessei o portal.

Poema 48

Quem se dedica aos estudos,

Cresce um pouco a cada dia.

Quem vive o Tao,

Diminui um pouco todos os dias.

Fazer cada vez menos

Até alcançar o não-agir.

Tudo restará feito.

Ganhamos o mundo

Por abdicar em dominar o seu fluxo;

Perdemos a vida

Por não compreendermos a sua simplicidade.

7 comments

Haian agosto 8, 2023 at 4:44 pm

Gratidão, ha 6 anos fazendo parte desses momentos sagrados..

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Maangoba janeiro 30, 2024 at 4:51 pm

que bacana! deve ter uns 6 ou 7 anos que encontrei o Yoskhaz tbm. sou feliz por ter encontrado esse Caminho.

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Chiavorelli Carmem Lucia agosto 12, 2023 at 9:06 pm

Eu preciso reler para tecer um comentário realmente capaz de expor meus pensamentos. Obrigada pela oportunidade.

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Dalgiza setembro 10, 2023 at 2:00 am

Que texto perfeito! Obrigada,por tantos ensinamentos.👏

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Rhodolfo Diniz setembro 16, 2023 at 1:27 pm

Gratidão! 🙏🙏

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Terumi outubro 3, 2023 at 12:51 am

Gratidão 🙏

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Maangoba janeiro 30, 2024 at 4:50 pm

obrigado! percebi que quando me afasto dos seus textos, me afasto de mim. continuarei voltando.

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