MANUSCRITOS II

O jogo das sombras

 

O dia ainda não tinha amanhecido quando entrei na cozinha do mosteiro. Eu tinha dormido mal, sono intermitente e com as ideias em turbilhão. Quando a mente não consegue descansar é o corpo quem paga a conta pela desarmonia que invade e ocupa, corrompendo o ser como um todo. O cansaço, por potencializar a irritação e a mágoa, sempre será um péssimo conselheiro. Era a minha exata situação naquele momento. Há alguns dias eu vinha em crescente discórdia com outro discípulo da Ordem. Tudo começara por um motivo bobo, uma pequena crítica que ele fizera ao trabalho filantrópico que eu coordenava. Retribuí apontando falhas de conduta em relação àquele que me censurou. Ele replicou subindo o tom da crítica. A troca de farpas foi ganhando dimensões inesperadas e, na tarde anterior, em discussão ríspida, quase chegamos às vias de fato. Ou seja, por pouco não trocamos chutes e socos. As ofensas verbais não conseguimos evitar.

Quando peguei o bule para passar o café, percebi que estava cheio e quente. Alguém chegara ali antes de mim. Só quando virei para trás foi que vi o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro, sentado em absoluto silêncio e reflexão, com uma caneca fumegante à frente. Ele me ofereceu um sorriso sincero quando nossos olhares se cruzaram. Com um gesto sutil do queixo, me convidou para sentar ao seu lado. Enchi uma xícara com café e fui ao seu encontro. Antes que ele pudesse articular qualquer palavra, abri o verbo, disse que precisava desabafar e narrei todo o conflito. O monge me ouviu com sua enorme paciência e quando encerrei, ele falou com a voz baixa e tranquila: “Você veio em busca de conselhos ou de cumplicidade? De alguém que lhe diga a verdade ou de alguém que lhe dê razão”? Mostrei-me indignado, pois não havia qualquer dúvida de que eu estava certo e que o outro discípulo deveria, no mínimo, ser advertido. Sem se alterar, o Velho disse: “Para todo fato há no mínimo duas versões, além da verdade”.

Argumentei que fora o outro discípulo quem começara tudo. O monge respondeu de imediato: “Isto não tem importância, assim como não me interessa quem tem razão”. Ele bebericou o café e prosseguiu: “Entretanto, todo aprendizado merece atenção. Salvo engano, temos uma bela lição que, se bem aproveitada, pode fortalecer, além de trazer crescimento espiritual a todos os envolvidos”. Perguntei se ele falava sobre o perdão. O monge respondeu de imediato: “Claro que o perdão terá que ser trabalhado não apenas neste caso. O perdão será sempre necessário, pois é impossível ser feliz sem perdoar. Porém, há outra preciosa experiência a nos oferecer valiosa sabedoria: entender o jogo das sombras”.

“O mal é o alimento das sombras, é o que concede poder às trevas. E somos nós, que tanto rejeitamos o mal, por mais contraditório que possa parecer, quem acabamos por alimentá-lo. A violência é uma iguaria muito apreciada; a ofensa um belo jantar; a fofoca um aperitivo muito aplaudido; a vingança o prato predileto; o sarcasmo uma sobremesa requintada. Os sofisticados ingredientes desse banquete sombrio são o orgulho, a vaidade, o egoísmo, o ciúme e o medo. Todos oferecidos por nós. Tudo temperado pela ignorância de não perceber que nessa refeição o cozinheiro somos nós e, pior, ela nos custará muito caro. O preço? O próprio e inevitável sofrimento”.

“Quando fazemos o jogo das sombras abdicamos de ser andarilhos do Caminho, por nos afastar Dele. Ao permitir que se apague o fogo da tocha dos guerreiros da luz, fomentamos a escuridão. Na infância do espírito deixamos nos conduzir, até em razão de condicionamentos sociais, culturais e ancestrais, pela lei de talião, onde se cobra o dente do outro pelo seu dente perdido, o olho furado do outro pelo seu olho cego. Claro que o dente e o olho são figuras meramente simbólicas. Na maioria das vezes, por achar que temos o direito, impomos um sofrimento ao outro pelo fato de ele ter nos causado alguma dor, em primitiva filosofia muito aplaudida pelas sombras. Afinal, esta é a motivação do seu jogo.

Não raro, inconscientemente, clamamos por justiça quando na verdade apenas desejamos vingança. As sombras se interessam apenas pela punição, em ver o outro sofrer pelo simples fato de que ele, supostamente, também nos fez sofrer. Uma absurda mentalidade de acreditar que ao espalhar o nosso sofrimento ele se tornará menor. A luz trabalha em favor do aprendizado. A justiça está ligada à educação, à evolução e, sobretudo, ao amor. Por sua vez, a vingança se interessa tão somente em impor um sofrimento ao outro. As sombras, habilidosas conselheiras do ego, fazem-nos acreditar que precisamos nos proteger, preservar a nossa imagem, resguardar os nossos direitos, como se ofender, revidar, acuar e dominar fosse a maneira mais sábia de manter a integridade e retidão. Assim, as nossas escolhas acabam corrompidas; os sentimentos mais sutis são substituídos pelos mais densos, refletindo-se em reações desmedidas. O pior é que, sem perceber, mantemos o mal vivo à nossa volta. O mais estranho é que nessa matemática a conta nunca zera. Um dente quebrado não substitui o outro, mas passamos a ter dois dentes imprestáveis, em progressão geométrica, no meio de uma multidão de olhos furados e egos cegos”.

Argumentei que ser um andarilho significa não compactuar com o mal. Logo, se vejo algo errado tenho que me opor à situação. O Velho franziu a sobrancelha e disse com seriedade, sem perder a doçura da voz: “Com certeza, Yoskhaz! No entanto, a maneira como fazemos isso é a diferença entre a luz e as trevas. Este é o jogo do mal: nos iludir para darmos passagem às sombras acreditando que estamos a serviço do bem”.

“Evidente que há casos graves em que temos que intervir com firmeza e determinação para estancar o mal. Porém, posso garantir que tais situações ocorrem poucas vezes na vida de cada um de nós. Na grande maioria das vezes, fazemos o jogo das sombras movido por situações de nenhuma importância, que poderiam ser resolvidas com um olhar de compaixão ao entender o nível de consciência do outro, a dificuldade dele em se relacionar com as próprias sombras. Afinal, as palavras e atitudes de cada um revelam a bagagem do coração. Como esperar flores de quem apenas tem espinhos? Há que se ter paciência e compaixão, até porque não podemos exigir a perfeição que nós próprios não temos para dar. Em alguns momentos cabe uma conversa revestida com amor e sinceridade; noutros, um silêncio misericordioso é mais do que suficiente”. Bebeu um gole de café e disse: “Não devolver a agressão não fará de ninguém um fraco, porém mostrará a coragem do andarilho em dominar o próprio ego e a sua sabedoria em negar o alimento das trevas e deixar que o mal pereça por inanição. Permitir, todos os dias, que a voz sagrada da sua alma seja cada vez mais ouvida e seu valioso segredo, exercitado: oferecer sempre o seu melhor sem esperar nada em troca. Isto é iluminar os próprios passos. No dia seguinte ofereça ainda mais do amor que há em você e espere ainda menos de volta. Esta é a batalha da liberdade do ser, este é o bom e inevitável combate”.

“É necessário cuidado com o jogo das sombras. Ele começa devagarzinho, quase imperceptível, para ir ganhando vulto aos poucos, ocupando terreno dentro de nós, até dominar os nossos sentimentos e manipular os nossos pensamentos. É nesta hora que acabamos por escolher o sofrimento. O mal é ardiloso e sorrateiro, seu melhor truque é iludir que não ele não existe em nós. Assim, por descuido e engano, complica-se o próprio destino”.

“Quase sempre o jogo das sombras começa com um motivo fútil, um breve comentário ou uma atitude impensada do outro em relação a nós. As sombras do egoísmo, do orgulho ou da vaidade, a depender do caso, despertam para nos alertar que o ego foi maculado e nos transforma em suposta vítima. Elas, as sombras, aumentam a grandeza da suposta agressão, acrescentam fermento à ofensa para que a raiva cresça dentro da gente até transbordar em ressentimento. A resposta acaba por ser desproporcional e desnecessária, pois visa, principalmente, ferir o sentimento do outro em igual ou maior intensidade do que a mágoa que sentimos”.

“Por sua vez, o outro, se for um andarilho experimentado, perceberá claramente o jogo das sombras e o estancará, reagindo com amor e paciência. Caso contrário, dobrará a aposta para devolver a ofensa em intensidade ainda maior, o que nos moverá ao revide em sequência sem fim de violência e sofrimento. Assim, jogando esse nefasto jogo, construímos o próprio inferno”. Deu uma pequena pausa e complementou: “O pior é teimamos em culpar os outros ou a vida por tamanha infelicidade, sem perceber a responsabilidade e as consequências das escolhas que fazemos. Basta entender que para encerrar o sofrimento basta apenas modificar a maneira como reagimos a tudo o que nos incomoda. Eis a chave da prisão. Fazer, a cada dia, que o ego se torne a imagem e semelhança da alma é o exercício indispensável para a integralidade do ser, encerrando definitivamente a dualidade que nos divide e rouba o equilíbrio necessário. Apenas assim a agonia dará passagem à paz. Transmutar, pouco a pouco, as sombras que nos habitam e terminar com o seu jogo é o que nos permite iniciar o Caminho. É o que nos concede as asas para o fantástico voo rumo às Terras Altas”.

“Perceba que neste caso não se trata de um conflito do mundo, mas de uma batalha pessoal, por isto tanto sofrimento pela falta de harmonia. Podemos enfrentar dificuldades materiais com tranquilidade, doenças com serenidade, as guerras do planeta com sábia resignação ao aceitar e entender a lição que nos cabe. Porém, não conseguiremos jamais a felicidade sem a paz que nos habita”.

Pediu para que eu completasse a sua caneca com café. Quando voltei, ele prosseguiu: “Apenas através do ego podemos ser ofendidos ou humilhados. Quanto maior o ego, mais seremos suscetíveis ao sofrimento. Ego poderoso, indivíduo frágil. Esta é a simples equação”. Deu uma pequena pausa e concluiu com uma pergunta: “Entende a razão e a força pela qual a humildade é o primeiro portal do Caminho”?

Abaixei os olhos e perguntei o que ele me aconselhava fazer. O monge, desta vez, foi sucinto: “Nada”, respondeu. Intrigado, eu quis saber se ele achava que eu devia deixar quieta a inflamada discórdia. O Velho disse: “Não falei isto. Quis me referir que não lhe direi objetivamente para fazer desse ou daquele jeito. Busque no silêncio e na quietude se afastar por instantes do seu frágil ego que veste pesadas armaduras na ilusão de proteção e poder. Então, poderá ouvir as palavras sussurradas da sua alma e usar as asas que ela guarda para você, pois na essência, somos tão somente ela, a alma, com toda a sua liberdade e leveza”.

Naquele mesmo dia, logo após a meditação, procurei o outro discípulo para conversar. Não para lhe expor as minhas razões, pois entendi que elas não tinham nenhuma importância. Mas para oferecer as minhas desculpas pelas ofensas que proferi e a dor que lhe impus. Quanto ao sofrimento que ele me causou? Só aconteceu porque eu permiti que a ofensa me atingisse. A sabedoria é o perfeito escudo; o coração guarda um antídoto infalível para o sofrimento: amor. Não resolveu? Tome mais uma dose. É de graça e também a própria graça. É o poder que me faltava aprender a usar e ainda estava tão distante de mim. Em silêncio, admiti que eu poderia ter feito diferente e melhor. Prometi a mim mesmo que tentaria da próxima vez. E agradeci ao Universo por sempre me conceder uma nova oportunidade.

Hoje, além de monges, somos grandes e leais amigos.

 

4 comments

Elvis junho 11, 2016 at 7:41 pm

Como somos ainda pequenos diante da sabedoria, como nosso ego ainda é grande,procuramo com a violência acabar com o mal. Somente o amor, se colocar no lugar do outro, se distanciar por um único momento da situação e que teremos um real discernimento. Outro dia pensei , o lobo mau só é mau porque só temos a versão da chapeuzinho vermelho.

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Wilson junho 12, 2016 at 10:36 pm

Ótimo para refletir sobre, se o que pregamos, se concilia com nossas atitudes.

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Christina Mariz de Lyra Caravello junho 16, 2016 at 3:48 pm

Tenho uma prima que é também minha amiga, mas tenho que admitir que ela tem um pavio muito, muito curto…
Seu filho único conheceu uma moça que era tão amorosa com ele, tão apaixonada que ele foi envolvido por esse sentimento e, em menos de um ano, quis casar. Ela estava fazendo um curso aqui no Rio, mas na verdade, morava em Aracaju. Já namoravam há oito meses quando o curso terminou e ela teve que retornar a sua cidade. Fui apresentada a ela quando estava na casa de minha prima e ela foi se despedir e, pelo que parecia, o amor estava no ar.
Enfim, como ficava difícil namorar à distância, ele foi com ela para conhecer a família e pedi-la em casamento. Ficou lá um mês , num hotel, ultimando os preparativos.
Sua mãe também passou dez dias lá para ajudar nos preparativos e conhecer os pais dela.
Quando voltou, não estava muito convencida de que deveriam se casar com tão pouco tempo de conhecimento, principalmente porque o filho, que estava sem emprego no Rio, teria que tentar arrumar, com urgência, um lá, onde não conhecia ninguém. Como seu curriculo era muito bom conseguiu um cargo de gerente numa firma de materiais de construção. O salário não era lá essas coisas, mas como seu sogro cedeu uma pequena casa que alugava nos arredores da cidade, era menos uma despesa. Minha prima não estava satisfeita com o rumo que as coisas iam tomando.
Casaram-se numa cerimônia simples e, como não daria para viajar em lua de mel e ela, a esposa, ainda não havia conseguido um emprego, iniciaram a rotina do dia a dia de casados.

Sempre que retornava de sua visita mensal, que passara a fazer, minha prima desabafava comigo. Não estava gostando da atitude de sua nora. Ela estava insatisfeita por ainda não estar trabalhando e descontava no marido. Explodia por coisas mínimas, sem a menor importância. A vontade que ela tinha era de se intrometer porque reparava que o filho sofria mas ficava calado.
Conhecendo minha prima, como eu conhecia, imaginei o esforço que estava fazendo para
não interferir.

“Quase sempre o jogo das sombras começa com um motivo fútil, um breve comentário ou uma atitude impensada do outro em relação a nós. As sombras do egoísmo, do orgulho ou da vaidade, a depender do caso, despertam para nos alertar que o ego foi maculado e nos transforma em suposta vítima. Elas, as sombras, aumentam a grandeza da suposta agressão, acrescentam fermento à ofensa para que a raiva cresça dentro da gente até transbordar em ressentimento. A resposta acaba por ser desproporcional e desnecessária, pois visa, principalmente, ferir o sentimento do outro em igual ou maior intensidade do que a mágoa que sentimos”.

Sentia que ela estava prestes a estourar. Mas o destino interferiu. Ela contou que os três estavam em casa aguardando os pais dela para almoçarem fora. A nora estava digitando um relatório para apresentar numa empresa na qual estava se candidatando a uma vaga. Como mãe e filho estavam na sala fazendo palavras cruzadas, a toda hora ela chamava o marido para ajudar em alguma dúvida. Numa das vezes, pediu a sogra que estava se dirigindo a cozinha para chamar o marido. Como ele demorou um pouco ela surtou, agredindo verbalmente a ele e a sogra, num desabafo absolutamente surreal. E saiu de casa, dizendo que ia até a casa dos pais… que não ia almoçar com ninguém, e por aí foi. Nem lembro de tudo que ela contou.
Lembro que ela teve que fazer um esforço enorme para não devolver na mesma moeda. Mas, de repente, sentiu que a nora deveria estar com algum distúrbio e que precisava se tratar.
E foi o que falou com os pais quando chegaram para almoçar fora e encontraram aquele clima.

“O pior é teimarmos em culpar os outros ou a vida por tamanha infelicidade, sem perceber a responsabilidade e as consequências das escolhas que fazemos. Basta entender que para encerrar o sofrimento basta apenas modificar a maneira como reagimos a tudo o que nos incomoda. Eis a chave da prisão. ”

Foi um processo demorado convencer os pais dela que ela precisava procurar um especialista. Muitos atritos ainda aconteceram com os pais, com o filho de minha prima e com ela também, todas as vezes que ia visitá-los. Até o dia em que o marido não aguentou mais. Depois de um dos muitos surtos da mulher, comunicou que estava saindo de casa, saindo do casamento, saindo da vida dela.
Ela ficou desesperada. E foi procurar um médico. Depois de vários exames, o diagnóstico final acusou que tinha um distúrbio que, por falta de hormônios ligados ao prazer e a alegria, ela surtava.
O casamento acabou. O filho de minha prima ainda ficou morando dois anos lá e depois retornou para a casa da mãe.
Como testemunha que fui, sei que minha prima precisou de muito auto-controle, muito jogo de cintura e de ter que engolir muitos girinos (como ela sempre diz), modificando sua forma de reagir aos acontecimentos. Foi uma batalha pessoal.

“Perceba que neste caso não se trata de um conflito do mundo, mas de uma batalha pessoal, por isto tanto sofrimento pela falta de harmonia. Podemos enfrentar dificuldades materiais com tranquilidade, doenças com serenidade, as guerras do planeta com sábia resignação ao aceitar e entender a lição que nos cabe. Porém, não conseguiremos jamais a felicidade sem a paz que nos habita”.

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Maria setembro 7, 2020 at 8:15 pm

Gratidão por este texto!

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