TAO TE CHING

TAO TE CHING (Septuagésimo segundo limiar – As pontes e os muros do Caminho e do destino)

Eu estava em um ashram na Índia. Um homem de estatura mediana, barbas e cabelos brancos e longos, orientava as construções de uma ponte e de um muro no lindo jardim do lugar. Eram de pequeno tamanho e me pareceram sem qualquer serventia. Não havia rio ou precipício a serem ultrapassados pela ponte; o muro não impedia nenhum acesso. Comentei isto com o homem de olhos tenros e sorriso doce. Ele balançou a cabeça, como se dissesse que me compreendia e ponderou: “Cada movimento que realizamos, seja no universo intrínseco, seja no mundo exterior, por menor que seja, equivale a uma pedra tirada do lugar. A depender de onde e como será colocada, servirá para levantar os muros que nos impedirão a passagem ou utilizadas para construir as pontes pelas quais atravessaremos os abismos da existência”. Fez uma pausa para que eu concatenasse a ideia e concluiu a explicação: “Essas singelas construções funcionam como obras de arte a céu aberto. São símbolos do poder que cada pessoa possuí para determinar o próprio destino. Todos no ashram precisam se lembrar disso a todo instante. Os movimentos internos determinam os deslocamentos através dos dias. Tanto para o bem como para o mal”.

Questionei dois aspectos na fala do homem: o fato de sermos senhores dos nossos destinos e sobre a real existência do mal. Havia várias teorias, algumas muito bem articuladas, quanto a inexistência do mal. Eu também me perguntava sobre o grau de participação ou influência de cada pessoa sobre o próprio destino, uma vez que muitos se mostram insatisfeitos com os acontecimentos no desenrolar dos dias em desacordo com os planos desejados. Ele franziu as sobrancelhas e argumentou: “O mal tem muitas artimanhas. O seu truque mais poderoso é fazer acreditar de que não existe. Esse perigoso sofismo nos torna vulnerável às suas manipulações. Não raro, nos valemos do mal na sincera crença de que estamos praticando o bem”. Fez uma pergunta para expandir o raciocínio: “Já utilizou a expressão foi um mal necessário?”. Respondi que sim. Ele me alertou: “Existem remédios amargos, porém, nenhum mal é necessário”. Falei que aquela frase me parecia apenas um jogo de palavras para ocultar semelhante situação. Indaguei se o mal necessário não seria um remédio amargo. Ele explicou: “Sempre será possível esconder a genuínas intenções por trás de palavras inteligentes e gestos de suposto altruísmo. Enganamos as pessoas e, muitas vezes, a nós mesmos, porém, jamais conseguiremos nos dissociar dos autênticos sentimentos que nos movem. Temos plena responsabilidade por quem somos, ainda que neguemos ou desconheçamos as verdadeiras razões de cada escolha realizada. Virtude e vício, um ou outro, estarão presentes em cada decisão que podem apresentar igual aspecto mecânico na aparência, mas são díspares na essência. Existe a hora do não e há o momento do sim como supremos exercícios de amor e sabedoria. O sim pode representar generosidade ou fraqueza; o não pode demonstrar sensatez ou egoísmo. Isto diferencia o suposto mal necessário do necessário remédio amargo. Conhecer e admitir o autêntico sentimento que move cada ato ou palavra é fundamento básico ao aperfeiçoamento pessoal. Ninguém muda o que ignora ou nega em si. Como a finalidade da estrada do tempo é nos conduzir à evolução, a depender de como o viajante lida com cada pedra que encontra no caminho, definirá as pontes e os muros que encontrará. O bem e o mal praticados possuem uma conexão direta com as experiências que nos aguardam”. Olhou-me com doçura e perguntou: “Encerrei a sua dúvida sobre como somos responsáveis pelos nossos destinos?”. Respondi que sim com a cabeça.

Ponderei que em análise mais aperfeiçoada o uso do mal termina por despertar a beleza do bem em cada pessoa, seja pela grandeza dos exemplos ao redor, seja pelos medicamentos amargos que são impostos. O escritor concordou: “Sem dúvida, mesmo sem saber – e nem sempre é de fácil compreensão – o mal trabalha a favor do bem. O uso do mal enlouquece e adoece. Ninguém é feliz ou vive em paz vivendo a intimidade da maldade. Na busca por sua regeneração, o antigo usuário se empenhará para não retornar aos becos fétidos e sombrios que habitava dentro de si. A teia da vida tem a trama traçada com fios de amor e sabedoria, mas também de responsabilidade e justiça. No entanto, a ideia de que, a longo prazo, o mal trabalha a favor do bem não serve de desculpa para extravasar sentimentos mesquinhos e alimentar ideias enfermiças. Ao se valer da maldade não a justifique como sendo necessária. Nenhum mal é necessário. O mal é tão e somente o mal. Jamais o adjetive. Ter acesso ao mal sem fazer uso dele para alcançar vitórias ou satisfazer prazeres permite acesso à virtude da pureza, um valioso portal de aperfeiçoamento, a partir do qual o viajante consegue caminhar sem fazer uso da maldade mesmo a tendo à disposição. Contudo, não fácil nem simples. Pureza não significa ingenuidade. Trata-se de uma virtude de alto valor ético e espiritual. O mal existe e exige cuidado. Sem a devida vigilância e o indispensável conhecimento sobre os ardis que utiliza, seremos envolvidos por seus disfarces. Ao ignorar ou menosprezar o mal, você será alcançado por suas garras e dentes. Conheça os meandros e as filigranas da maldade para não se tornar um dos seus instrumentos de ação e disseminação. Nenhuma maldade é pequena e vã. Tenha ciência dos poderes de sedução, das tentações hipnotizantes e paralisantes sobre virtudes e valores, os argumentos que oferece para desvios de raciocínios e condutas, assim como as incríveis manipulações sobre nossas vontades, interesses e destino. As quedas são grandes e tristes. Nem tudo que reluz é luz. O mal está por toda parte, mas nenhum é tão perigoso como aquele que nos habita e move sob falsos pretextos. Esta é uma das razões pelas quais a viagem à verdade passa pela rota do autoconhecimento e tem como destino a conquista da liberdade em nível mais amplo e profundo”.

Falei que nada assusta tanto as pessoas como o mal. O poeta fez um gesto com a mão como se falasse o óbvio e disse: “Teme e sofre pelo mal quem não compreende as suas raízes. Todos têm medo do mal praticado pelos outros, mas não percebem o mal que alimentam por intermédio de suas escolhas rasas. Vivem a crença de que as suas dores emocionais são decorrentes das atitudes alheias sem entender que, em verdade, sofrem na incompreensão de si mesmo e do genuíno significado da vida. Os outros são os outros; somos os outros dos outros que, por sua vez, nos culpam pelos seus sofrimentos. Enquanto vivermos na condição de vítimas nada poderemos fazer. Vítimas são impotentes. Estaremos aprisionados em um círculo vicioso sem fim enquanto os movimentos intrínsecos se mantiverem estáticos por serem repetitivos. É preciso alterar a rota para retomar o rumo. Pare com a tolice de reclamar das pessoas, da sorte ou do destino. Nada podemos fazer em relação ao comportamento alheio. A solução não passa por mudar o mundo, mas em compreender os motivos que o faz sair da luz para entrar nos porões escuros de si mesmo. Traga para si a responsabilidade por todos os seus sentimentos. Os bons e os ruins, sem exceção. Eles sempre existiram dentro de você. Entenda que são seus. Somente então terá o poder para desmanchar os sentimentos que o destroem. Não estreite a sua casa nem despreze a sua existência. Dentro de si habitam as exatas condições para as conquistas da dignidade, da paz, da liberdade, do amor e da felicidade. Tudo mais é menos. Todas as experiências têm por finalidade última conduzir à plenitude do ser e permitir acesso às maravilhas da vida. O início e o fim dos males que o assolam começam e encerram em si mesmo. De nada adianta negar ou transferir a responsabilidade. Todas as situações que o fazem desabar trazem questões íntimas que precisam de melhor compreensão e exigem urgente reconstrução. A engrenagem emocional desregulada faz disparar sentimentos dolorosos. Traduz uma experiência mal elaborada que precisa ser reprocessada. Ao invés de utilizar elementos como o revide e a mágoa na equação, use diferentes virtudes, na sagrada mistura do amor com a sabedoria, para encontrar inusitadas e melhores soluções. Sempre é possível expandir a verdade. A realidade é redesenhada quando acrescentamos novas cores à verdade. As multidões lamentam as precárias condições materiais, físicas, sociais ou afetivas que as envolvem sem se dar conta que toda dificuldade é pedra indispensável à construção da ponte sobre o abismo da própria incompreensão. Sem entendimento e aceitação do método pedagógico adotado pelo Caminho, o destino continuará indecifrável, o sofrimento será inevitável e o medo seguirá como um adversário invencível. Não cabe reclamação quando somos ingrediente do veneno ingerido”.

Perguntei como saber em que curva do Caminho eu estava. Ele explicou: “Preste atenção de como reage diante de cada adversidade. As reações contêm as exatas doses de virtudes agregadas e do quanto de verdade já foi alcançada. Do quanto controla as emoções decorrentes dos infortúnios e o quanto elas ainda o dominam. Tenha o cuidado de analisar apenas a si mesmo sem a ingenuidade e o equívoco de se comparar aos outros. As aparências costumam esconder a essência. As dificuldades falam de dores e incompreensões íntimas, quase nunca acessíveis a quem vive fora do universo intrínseco no qual somente o indivíduo habita. Trata-se de um erro vulgar o vício de apontar os deslizes e descuidos dos afogados em mar calmo sem saber das correntes marítimas que os sugam por debaixo d`água. A incapacidade de julgar surge do desconhecimento. Tudo e todos têm algo de valioso a ensinar. Não deixe de aprender com os próprios erros, não há mestres melhores. Por isto, o sábio dedica os dias a se conhecer mais e melhor. Ele nunca critica os tropeços alheios. Se compadece e auxilia. Lembra das quedas que teve e de quanto esforço é preciso para se levantar. Pede desculpas por seus erros sem jamais buscar desculpas por eles. Não se deixa perturbar pelos ruídos, tampouco se assusta com os rugidos mundo. Sabe que a verdadeira batalha é travada no âmago do ser, onde a própria consciência é juiz e arena do combate incessante dos vícios contra as virtudes. A cada decisão um novo combate, uma nova chance de vencer ou perder para si mesmo. As lutas são diárias, os oponentes traiçoeiros. Nem sempre somos quem acreditamos ser. É preciso ir mais longe e mais fundo. A cada dia um pouco mais. Mais pontes, menos muros. Agradeça ao Caminho pelas pedras. Agradeça as pedras pelo caminho. Siga em frente sem jamais se exibir ou falar dos seus feitos. O silêncio é companheiro da humildade e a simplicidade é conselheira dos bons movimentos. O sábio se trata com carinho sem se aprazer com os elogios. Nada mais perigoso do que se deixar enfeitiçar pelas sedas e brilhos da vaidade, causa de tristes e inevitáveis quedas. A cada escolha, o sábio agrega e desapega; acrescenta e subtraí; multiplica e divide ao mesmo tempo. Escolhe isto, rejeita aquilo. Aceita e declina. Separa o certo do errado, o bem do mal. Arruma a bagagem ao ajustar a si mesmo”.

Fomos interrompidos por um dos operários. Veio informar que a construção da ponte no jardim terminara. O bom homem me convidou a fazer a travessia. Entendi que a conversa se encerrara. Agradeci os ensinamentos. Ele me sorriu em despedida. Um sutil portal amarelo e lilás me aguardava do outro lado da ponte. Prossegui a viagem.

Poema Setenta e Dois

Ao ignorar o mal,

Você será alcançado.

Não estreite a sua casa

Nem despreze a sua existência.

Sem entendimento e aceitação,

O sofrimento será inevitável.

O sábio se conhece, mas não se exibe;

Trata-se com carinho

sem se aprazer com os elogios.

Escolhe isso, rejeita aquilo.

3 comments

Maangoba agosto 19, 2024 at 7:50 pm

Oi, meu amigo. Esses textos sobre o mal chegaram na melhor hora. Obrigado

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Naly agosto 21, 2024 at 4:51 pm

Magnífico!

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Márcia Campos agosto 28, 2024 at 2:29 am

Uma perspectiva sobre o mal absolutamente essencial para sua devida compreensão 🌹

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