Eu estava em uma enfermaria próxima à linha de frente em um dos campos de batalha da Primeira Grande Guerra. Gritos de dor e pavor. Movidos por inestimável dedicação, médicos e enfermeiras transitavam entre um sem-número de macas e camas de campanha. Mostravam-se incansáveis. Observei o local por alguns instantes sem saber para onde ir. Tive a atenção voltada a um dos médico, especialmente preocupado com as consequências das infecções causadas pelos ferimentos. Visitava cada um dos soldados. Amputar braços e pernas era a única solução possível a evitar o óbito. Isso quando a ferida não estava localizada onde o expurgo era impossível. Havia um sincero sentimento de preocupação em seus olhos. Depois, se sentou em um banco de madeira, retirou um pequeno bloco do bolso e fez anotações a lápis. Aproximei-me. Ele me olhou por um átimo de segundo e retornou às observações que escrevia. Comentei que os horrores da guerra eram inimagináveis para quem não os vive. O médico se virou e disse: “Deliciar-se com os romances de guerra apenas é permitido para aqueles que nunca viveram a guerra. Imaginar não significa conhecer. A imaginação alcança valor e poder somente a partir do conhecimento para, então, o expandir. Antes disso é mero devaneio e irresponsabilidade típicas de almas imaturas”. Confessei-me encantado pelo compromisso e misericórdia de médicos e enfermeiras daquele acampamento. O homem sorriu resignado e pontuou: “A misericórdia consiste na virtude de aplicar o seu melhor sentimento no esforço de atenuar o sofrimento de alguém. A etimologia da palavra tem origem no latim, na junção de outras duas, miseratio e cordis, miséria e coração, respectivamente. Ainda me restam muitas léguas para a agregar na bagagem. Os parcos traços desse precioso atributo que por ventura já existam em mim, se revelam por intermédio do interesse científico a procura de um medicamento que possa estancar e reverter o processo destruidor da gangrena”. Murmurou como quem conta um segredo: “Tenho amor e paixão pela cura”.
Em seguida, prosseguiu: “Assim que regressar a Londres, retomarei as pesquisas sobre um tipo específico de fungo tóxico do qual acredito haver a possibilidade de extrair a substância curadora que procuro”. O me notar surpreso com as suas palavras, explicou: “Assim como a lótus, com sua inestimável beleza, nasce do lodo fétido, não raro, a origem do remédio reside no veneno”. Girou os olhos pela enfermaria para me mostrar a dor inquantificável e disse: “Para sermos capazes de ojerizar o ódio com todas as nossas forças, temos de conhecer na profundidade esse sentimento mesquinho e desequilibrado que, com em maior ou menor intensidade e controle, ainda permeia nossas emoções diante de cada contrariedade. Sem vivenciar todo o seu horror, faremos poesias e discursos sobre algo que imaginamos sem conhecer. Quem enaltece e insiste nas guerras não luta nas trincheiras, mas resguardados em palácios. Enquanto o ódio permear as nossas relações e reações significa que ainda não conseguimos extrair deste veneno o amor indispensável à cura”. Embora eu não tivesse vivenciado nenhuma guerra, ao menos na última existência, me declarei livre do ódio. Confessei que apenas possuía mágoas e ressentimentos de algumas poucas pessoas. O médico me olhou com compaixão e esclareceu: “Não se engane. O ódio, em suas muitas variantes, é o mal em estado gasoso, muito difícil de ser contido face sua volatilidade. Mágoas e ressentimentos nada mais são do que o ódio reprimido, acondicionado e petrificado pelo tempo dentro da gente. A mágoa e o ressentimento nada mais são do que o ódio em estado sólido. O mal é um ilusionista a nos enganar com diversos truques. Como resíduo do mal, a mágoa é a gangrena decorrente do ódio a nos consumir, esgotar e devorar”.
Deu de ombros e exemplificou: “A neve das montanhas se desfaz em rios até desembocar no mar. O calor faz essa água se tornar nuvem. O vento a leva para se derramar como tempestade em lugares distantes, dificultando a identificação da sua origem. Assim o mal nos distrai sobre os sentimentos que nos movem e dominam; e o ódio se manifesta sem darmos conta da sua existência em nossas escolhas, comportamentos e construções erráticas. Enquanto não encontrarmos o amor escondido como sendo o remédio incompreendido capaz de erradicar o ódio, continuaremos a padecer da gangrena dos ferimentos que cada um termina por provocar em si mesmo. Nos valemos do mal no exercício de argumentos disfarçados em justiça, dignidade e supostos direitos, na vã tentativa de negar as evidências dos desejos de subjugação e controle que nos acostumamos a praticar diante de tudo que nos causa medo. Vingança não é justiça; orgulho nada tem a ver com dignidade; boa parte dos direitos não passa de manipulações de interesses. Ficamos assustados diante do desconhecido, das diferenças e do imponderável. Desde a tenra infância somos condicionados a viver de acordo com conceitos que, por estarem incutidos desde sempre em nós, fazem parte de como nos erguemos como indivíduos, dirimimos problemas e definimos cárceres e liberdade sem os questionar. São os dogmas pessoais. Todos os temos ainda”. Questionei sobre como saber se algum conceito mascarado em verdade nos conduzia à masmorra ou a voos de grande a altitudes. O médico respondeu de pronto: “Amor ou egoísmo. Amor ou ódio. Basta perceber o sentimento que o move para entender como as suas razões, raciocínios e decisões são construídas. Não se ergue um bom prédio em cima de fundamentos podres”.
Franziu as sobrancelhas e explicou: “Ainda usamos o mal para deter o mal. Lamentamos este mal, não aquele. Reprovamos o mal em geral, mas o aprovamos quando utilizado na defesa de nossos interesses, vontades e caprichos. Sem entender a rota escolhida, espraiamos as escuridão dentro e em torno de nós. O medo e o sofrimento nos guiam até a última fronteira, quando para além do limite resta apenas o precipício da miséria existencial profunda”. Indaguei onde estava localizada esta fronteira. Ele esclareceu: “Em um antigo axioma está escrito que, se as pessoas não temem a morte, não há como as dominar com ameaças de morte. Julgar e punir são fontes de poder mundano por causa do mal que podemos provocar em outras pessoas em caso de ousarem a desobedecer. Erro e castigo. Não falo dos delitos previstos nos código legislativos. Refiro-me nas vezes que desaprovamos a atitude de alguém por se portar de modo contrário aos nossos ideais, conceitos ou interesses. Julgamos no alcance do entendimento permitido pela qualidade dos sentimentos e emoções que expandem ou contraem a consciência. Julgamos quando precisamos encontrar nos erros alheios os argumentos indispensáveis para manter a sensação de superioridade a nos enganar na crença que estamos onde nunca colocamos os pés. Não raro, passamos grande parte dos dias envolvidos em críticas sobre o comportamento e escolhas alheias. Não porque nos preocupamos com eles, mas para evitar o esforço ao indispensável aperfeiçoamento daquele podíamos nos tornar. Como um viciado qualquer, somos dependentes de uma atmosfera emocional desenhada nas tintas das ilusões, mentiras e incapacidades criadas a partir dos julgamentos e condenações que prolatamos o tempo todo. Julgamos meramente pelo prazer inconfessável de condenar. Condenamos para fugir da verdade. Quem somos não nos interessa saber. Compreensão, paciência, mansidão, tolerância e gentileza estabelecem os níveis de amor e sabedoria já alcançados. Servem de instrumentos à percepção e à sensibilidade, as bases da consciência individual. Nela reside a capacidade de destruir velhos olhares no compasso da construção de novas verdades a nos guiar e mover. A necessidade de regenerar e reinventar a si mesmo surge a partir do momento em que conceitos até então usados se mostram obsoletos, ineficazes para solucionar as questões existenciais inerentes ao cotidiano. Ocorre que, ainda que teimemos em não admitir, aos olhos do mundo, o poder é proporcional a quantificação do mal que o indivíduo pode praticar. Não falo apenas sobre assassinatos e lesões corporais, mas também na supressão de direitos e coações emocionais, sociais ou econômicas. Há muitas formas de punir e disseminar o ódio. Vivemos nas duas pontas, punimos e somos punidos em nossos relacionamentos. Como se percebe, por intermédio das próprias incompreensões, permanecemos estáticos frente a um inimigo de enorme dinamismo e mimetismo. Concedemos poder ao mal ao fazer uso de ameaças, explícitas ou implícitas, veículos pelos quais estabelecemos as relações de poder, sejam familiares, sociais ou profissionais. Deste modo, acreditamos ficar protegidos de tudo aquilo que nos amedronta”. Balançou a cabeça em negação e murmurou: “Na contramão do amor e da liberdade, empoderamos universo adentro exatamente aquilo que repudiamos mundo afora”.
Perguntei se essa era última fronteira do mal dentro da gente. Ele disse não com a cabeça e explicou “Diante dos desobedientes, daqueles que se recusam a ceder ou negociar com o mal, será preciso executar a ameaça, sob pena de descrédito ou enfraquecimento da autoridade que o orgulho e a vaidade exigem para existir. É também o preço cobrado ao medo. Somos compelidos à prática do mal. Não por ninguém, mas movidos pelas nossas próprias sombras, incoerências e incompreensões. Antes, porém, num gesto de autodesculpa, nos convencemos não haver restado outro recurso, senão o mal como único instrumento capaz de restabelecer o equilíbrio, respeito e a justiça às relações. Lidamos com o mal como se fosse uma ferramenta indispensável à vida. Assim, por consequência inevitável, na maior de todas as contradições humanas, vivemos como se o mal fosse necessário à felicidade. Em verdade, apenas mostramos o quão distante estamos do amor, ilustrando o pouco que conhecemos da força transformadora e poder restaurador deste sentimento sagrado. O respeito e o equilíbrio são construções internas erguidas pelo viés do amor-próprio e da autoestima. O aspecto pedagógico é pressuposto fundamental a todos os atos de genuína justiça. Não se educa sem amor nem se caminha sem virtudes”.
O médico prosseguiu: “Os bons ainda se mostram tímidos, os maus sempre foram audaciosos. Para construir há poucos voluntários; para destruir a fila é enorme. Basta notar a quantidade e a qualidade das críticas feitas em comparação aos elogios que tecemos todos os dias quanto ao comportamento dos outros e as coisas do mundo. Falamos o que vemos. Cada um enxerga com os olhos que tem. Haverá graças ou desgraças, maravilhas ou catástrofes em um mesmo evento a depender do observador. Portanto, sempre haverá carrascos à postos para executar a sentença. Muitas vezes, somos nós a condenar e aplicar a pena em ato contínuo. Implacáveis na execução, desfalecemos na revolta e na tristeza do vitimismo insensato quando o jogo se inverte e temos de arcar com as consequências da punição que foi imposta à revelia de nossas boas intenções. Nos julgamentos das relações cotidianas, defesas são desprezadas e meras suposições têm valor de provas cabais. Quem se vale da espada da insensatez e da maldade para condenar não pode reclamar do pescoço exposto ao gosto da guilhotina alheia. Desde tempos imemoriais, usamos a paz como argumento para autorizar a guerra. A tirania valida a opressão como sendo o preço da liberdade. Carrascos somos todos quando usamos as pomadas das incoerências, permissividades e medos na tentativa de evitar a gangrena das feridas provocadas pelas próprias incompreensões”.
Confessei que, embora aquelas palavras me servissem de espelho, eu nunca tinha me visto pela ótica do carrasco. O médico se calou por alguns instantes, como quem reflete antes de falar para que não restasse nenhum mal-entendido, e ressaltou: “O mal precisa ser estancado no limite dos recursos necessários. Ultrapassá-los é também se valer do mal. Opor-se ao mal com a força do bem é um dever de quem está compromissado com a própria luz. Ceder ao medo ou a qualquer outro interesse para negociar com o mal, outro erro crasso. Estar atento aos sentimentos e ideias que o movem a cada instante é fundamental para não se deixar enganar pelo mal, se valendo dele a pretexto de fazer a coisa certa. Se não houver virtudes na ação, as corrija imediatamente. Algo em si está fora do prumo. Como ensinou o maior dos mestres há dois milênios nas colinas de Kurun Hattin, estamos mais preocupados em apontar o cisco nos olhos dos outros do que em retirar a pedra que existe nos nossos. Enquanto enxergarmos mal pela quantidade de entulhos que impede a perfeita visão, estaremos inaptos para julgar. Ninguém pode avaliar o que não enxerga nem entende. Não podemos condenar quem está em cima da árvore do nosso quintal se não conseguimos ver os animais selvagens que o espreitam. Muitas vezes, essas feras somos nós. Jamais podemos esquecer das emoções ainda indomáveis que continuam a nos arrancar do eixo de luz. Elas são comuns a todos. Seremos medidos com a régua que usarmos para medir os demais, ensina outro trecho daquele texto sagrado. Ocupar a função do carrasco é como usar a serra do marceneiro sem o conhecimento indispensável ao manejo. Impossível não cortar a mão. Incontáveis são as feridas gangrenadas na alma a espera de cura”. Fez uma pausa antes de concluir: “Viva em função da prática do bem. Abdique de qualquer mal em suas relações, conquistas e escolhas. Aperfeiçoe-se a cada obstáculo. Virtudes agregadas e verdades descortinadas são fundamentais ao aprimoramento pessoal. Aguce a percepção e a sensibilidade para que sempre encontre soluções criativas e inusitadas diante das dificuldades inerentes ao dias. Lembre-se, problemas ocultam grandes mestres. Encontre-os e terá acesso às maravilhas da vida e do mundo. Faça o melhor que puder e reserve a aplicação da justiça a quem de direito, atributo e competência. Somos partes de uma perfeita teia confeccionada em prol da evolução individual e coletiva. O amor e a sabedoria regem as leis cósmicas no equilíbrio e ajuste de tudo e todos nessa fantástica escola-oficina planetária. Inexoravelmente. Sejamos réus ou magistrados. Sem privilégios nem exceções”.
Fomos interrompidos por uma enfermeira. Um dos soldados feridos precisava de cuidados imediatos. Era hora de partir. Agradeci a conversa e perguntei por onde eu deveria seguir. O médico apontou com o queixo na direção de uma enorme fogueira próxima ao acampamento. Acreditei que fosse proveniente da explosão de um projétil. Diante do meu espanto, ele balançou a cabeça para que eu confiasse sem dar espaço ao medo. Não se tratava de fogo físico, porém, místico. Uma mandala. O fogo como elemental de transmutação. Atravessei o portal e segui a viagem.
Poema Setenta e Quatro
Se as pessoas não temem a morte,
Não há como as dominar com ameaças de morte.
Diante dos desobedientes será preciso executar a ameaça.
Sempre há carrascos à postos
Para executar a sentença.
Ocupar a função do carrasco
É como usar a serra do marceneiro.
Impossível não cortar a mão.