Cléo, a linda bruxa de corpo longilíneo, pele morena, cabelos negros, sempre com vestidos esvoaçantes e coloridos, foi interlocutora de algumas das experiências mais incríveis que vivi. Com desconcertante lucidez, contei com a sua ajuda muitas vezes para desvendar o olhar que me permitiu seguir adiante. Inobstante aos encontros que tive, ela faz parte do universo mitológico carioca. Para muitos, se trata de uma lenda urbana. Uma personagem ficcional criada para ilustrar contos e contextos em conversas repletas de mistérios e desprovidas de compromisso. Respeito quem pensa assim. Acreditar em algo ou alguém é, ou deveria ser, um processo de construção racional. Ocorre que a Cléo escapa à lógica cartesiana. Não tenho o menor controle de quando estarei com ela. Os encontros nunca aconteceram quando eu os quis, porém, nos momentos escolhidos pela bruxa, sem qualquer aviso prévio. As conversas sempre aconteceram no topo da Pedra Bonita, um enorme maciço de granito debruçado a setecentos metros de altura à beira do Atlântico no Rio de Janeiro. Subo a montanha, me sento de frente para o mar e espero. Poucas foram as vezes que a Cléo apareceu. Do mesmo modo que surgiu, desapareceu como que por encanto, bailando rodeada de gaivotas. Contudo, esses raros encontros foram angulares pelas transformações oferecidas, conforme narrei em algumas histórias. Impulsionar os processos de mudanças intrínsecas sintetiza o poder da sua magia. Em síntese, magia significa transformação. Ninguém muda sem que tenha o firme propósito de substituir, em definitivo, aspectos e características comportamentais que até então o definiram. Apenas a vontade não basta. Faz-se necessário entender o que é melhor para si, uma tarefa bem mais complexa do que parece. Todos acreditam saber o que é melhor para si. Orgulhosos, vaidosos e gananciosos, assim como mentirosos, criminosos e egoístas também se movem nessa crença. O melhor para si precisa estar conectado à evolução espiritual. Somente essa compreensão nos deixa prontos para reeducar a mente e o coração. Fazer germinar luz das sombras internas exige comprometimento consigo mesmo. Não é fácil deixar para trás velhos hábitos de pensar e sentir. Haverá mil vozes interiores – dos gritos do medo aos convites da conveniência – na promessa vã de acomodar os sofrimentos e evitar o enorme esforço inerente ao desafio da transformação. Desconfio que nada na Cléo é aleatório. Quando conseguimos silenciar as vozes dissonantes, ficamos prontos para as mudanças. Então, ela aparece.
Por esses motivos, quando me procuram na tentativa de intermediar uma conversa com a bruxa, afirmo que ela não existe. Digo que a Cléo é uma personagem do imaginário popular, a qual me apropriei sem pedir permissão. Como sou incapaz de avaliar quando as pessoas estão prontas para realizar as mudanças que desejam, evito as frustrações típicas dos devaneios e das expectativas indevidamente criadas. Percebo que a maioria não leva a sério ou ainda não compreende o alcance e o poder das transformações. Estes, em maioria, querem apenas que o mundo se adeque aos seus desejos. Como jamais acontecerá, se tornam mal-humorados, impacientes, ansiosos e irritadiços. Todos eles, sem exceção, não sabem lidar ou negam a necessidade de aperfeiçoar o próprio olhar, aprimorar o pensar e aguçar o sentir. Enfim, fogem do esforço para mudar o próprio jeito de ser e viver. Preferem o desgastado discurso da incompreensão e da injustiça a que se dizem vítimas. Optam em transferir a responsabilidade sobre a própria vida. Desconhecem ou não querem aceitar que o poder da vida reside no âmago do ser. Ninguém o encontrará em nenhum outro lugar. Deixar de ser quem é para se tornar outro não é uma ideia rasa nem de entendimento imediato. Requer uma longa elaboração nos laboratórios da mente e uma criteriosa faxina nas gavetas do coração. Faz-se indispensável reaprender a pensar e a sentir. Um criterioso processo de desconstrução e consequente reconstrução de si mesmo. Afoitos e despreparados terminam por se decepcionar com a mesma rapidez de quem se lança ao mar bravio em bote frágil, desprovido de mapa e bússola, remo e leme. Não escrevo isso para desanimar ninguém, mas para não restar nem um traço de dúvida sobre a difícil jornada que terá pela frente. Entretanto, são nas dificuldades do trajeto que descobrimos as maravilhas da viagem. Expandir fronteiras nada tem a ver com chegar do outro lado mundo. Em verdade, fala sobre ir além das próprias limitações.
De início, não foi diferente com a Glória. Uma amiga desde os tempos da agência de publicidade. Ilustradora de raro talento, trabalhou comigo na equipe de criação por muitos anos. Ela conhecia as minhas histórias com a Cléo. Glória esteve casada com o Paulo por quase duas décadas. Começaram a namorar ainda jovens, quando cursavam o ensino médio. Divorciaram-se havia poucos anos. Tinham a guarda compartilhada do único filho. Fora ele quem quisera se separar, contra a vontade dela, apesar dos maus-tratos que sofria. Não se tratava de violência física ou ameaças. Tampouco, de coação financeira, uma vez que ela era uma profissional conceituada e bem remunerada. Porém, de manipulação psicológica face a dependência emocional oriunda da insegurança quanto ao amor que o marido sentia por ela. Suas alegrias e tristezas variavam de acordo com o carinho ou a indiferença com que o Paulo a tratava a cada instante. Se recebia atenção e sorrisos, ficava bem. Caso ele a olhasse com descaso ou irritação, afundava em agonia até que o marido decidisse por reverter o ânimo da esposa. Por saber do poder que tinha sobre a mulher, a tratava conforme o seu humor ou interesse. Era um joguete nas mãos do marido. A terapia a fez entender o processo ao qual se submetia por livre escolha. Cada pessoa tem sobre a gente o exato poder que concedemos a ela. Nem mais nem menos, ensinara a terapeuta. Jamais permita que algo ou alguém a arranque do seu eixo luz. Ao invés de mudar a si mesmo como maneira de alcançar a própria autonomia emocional, Glória preferiu conversar com o Paulo para que ele modificasse o jeito como a tratava. Mais uma vez abdicou do poder sobre si mesma. Ao contrário do pretendido, Paulo se serviu disso para fazer troças da fragilidade da esposa. Ainda mais, não satisfeito, pediu o divórcio sob a alegação de que ela não estava a sua altura. Queria uma mulher forte. No início, Glória acreditou que a separação, ao menos, serviria para pôr fim ao seu sofrimento. Ledo engano. Nada muda enquanto não levarmos a termo a indispensável transformação interna. Apesar de divorciados, o comportamento de Paulo continuava a determinar como Glória se sentia. O fato de terem um filho ainda pré-adolescente, em guarda compartilhada, mantinha vínculos de convivência com ex-marido, suficientes para que o seu bem-estar emocional seguisse manipulado por ele. Falavam ao telefone assuntos referentes ao filho ou se encontravam, ainda que por poucos instantes, nos momentos em que a guarda do menino era trocada. Palavras que insinuavam, olhares de desprezo ou sorrisos sarcásticos eram o bastante para desmoronar as estruturas emocionais da mulher. Por mais que se preparasse, continuava refém do comportamento do ex-marido. Ao contrário do que os seus amigos acreditavam, Glória não tinha a menor vontade de reatar com Paulo. Entretanto, dias antes dos encontros, vivia a ansiedade em saber como restariam suas emoções depois que se falassem. Embora tivesse consciência do desequilíbrio e conhecesse o processo psicológico, não conseguia se livrar do sofrimento a que se impunha. A terapia dera a compreensão da realidade, mas faltava o movimento final de libertação. O detalhe angular. Acreditava que Cléo pudesse lhe mostrar. De início, como de costume, neguei a existência da bruxa. A ilustradora não acreditou nem desistiu. Todos os dias me enviava mensagens falando da sua disposição em se livrar do cárcere erguido pela dor. O sofrimento é a mais cruel das prisões. Um dia me procurou na editora. Sensibilizado pela sua firme determinação em encontrar a cura, concordei sob uma condição: faríamos uma única tentativa. Se a bruxa não aparecesse, Glória teria de buscar outro caminho. Ela concordou com um lindo e confiante sorriso.
Era o mês de abril. O outono é a melhor época para subir a Pedra Bonita. Os dias costumam ter temperaturas amenas, com o céu azul sem nuvens nem névoas. A vista é deslumbrante. Fomos no meio da semana, quando não há quase ninguém lá em cima. Sentamo-nos de frente para o mar, tendo o Rio de Janeiro aos nossos pés. A brisa macia da manhã trazia o pulsar frenético da cidade. Não se tratava de barulho. O silêncio possuía um império no alto da montanha. Era possível ouvir os compassos dos corações descompassados entre a beleza e a ruína. Tanto o da cidade como o da Glória. Fechei os olhos e me deixei levar pelos pensamentos. Como eu estava cansado por ter trabalhado bastante naqueles dias, sem me dar conta, adormeci. Acordei no final da tarde. Como uma sentinela de plantão, Glória aguardava sentada ao meu lado. Ela me olhou aflita. Estava na hora de descermos. A bruxa não aparecera. Uma lágrima rebelde desceu como um pequeno riacho a desbravar o belo rosto de uma mulher sedenta pela própria libertação. Fiz menção em me levantar. Ela me segurou pelo braço e, com a outra mão, fez um gesto para que esperássemos mais um pouquinho. Sem perder o bom humor, disse que as bruxas também atrasam. Rimos. Expliquei que era perigoso ficar ali à noite. Ela me apontou para o sol poente e falou que quando o astro tocasse no oceano, desceríamos. Haveria claridade suficiente até chegarmos ao carro estacionado próximo à rampa de decolagem das asas-deltas. Concordei. Sensibilizei-me ao notar que ela tentava conter o mergulho do sol com a força do olhar. Qualquer segundo a mais importava. Até que não houve mais como esperar. Resignada, Glória se levantou.
Ainda sob o enorme platô de granito, andávamos rumo à trilha de descida, quando escutei o grasnar das gaivotas. Na fração de segundo seguinte, me virei para a Glória. Repletos de esperança, os seus olhos sorriam. Próximo de onde tínhamos ficado o dia inteiro sentados, acompanhada pelos pássaros, Cléo rodopiava à beira do penhasco. Por um instante, hesitei em retornar por causa dos perigos da noite. Os olhos da Glória me imploraram para não ir embora. Pediam para eu não fazer isso com ela. Foi impossível resistir. Voltamos.
Quando estávamos pertos, Glória disparou em corrida ao encontro da bruxa. Cléo a recebeu de braços abertos. Trocaram um demorado abraço. A ilustradora chorou de soluçar. Havia uma dor tão grande e antiga que não cabia mais nela. Era preciso deixar transbordar para que não explodisse de desespero nem implodisse em tristeza. Depois, mais calma, Cléo a fez sentar e se acomodou ao seu lado. Fiz menção em me afastar para as deixar à vontade, mas a bruxa me pediu para ficar: “É importante que você também escute. Não apenas para aplicar as suas relações, mas para lembrar a ela de tudo que foi dito. Nada deve ser esquecido”. Em seguida, Glória narrou as suas dores, dilemas e dúvidas. Enquanto falava, uma enorme e fantástica lua cheia avermelhada se erguia por trás da Pedra da Gávea iluminando a nossa noite.
Sem nenhuma interrupção, Glória falou por um tempo que não sei precisar. Somente quando cansou de se ouvir, foi que a bruxa pontuou: “Há três aspectos relevantes a serem abordados e entendidos. Validação, amor e perdão”. Fez uma pausa antes de prosseguir: “A sua dependência emocional em relação ao Paulo surge na exata proporção em que você se nega a reconhecer o seu próprio valor. A imagem que cada um tem de si mesmo não pode ser desenhada pela opinião de outro indivíduo. Assim como todas as pessoas, a minha imagem se constrói através da dignidade com que me conduzo pelos dias, pelas virtudes que aplico às relações, aos princípios que norteio as escolhas, ao amor semeado pelas estradas da vida, ainda que ninguém mais os perceba. O valor das minhas atitudes me basta, pois, é o único critério útil para estabelecer o meu tamanho, riqueza e beleza. O conceito que alguém faz de mim servirá apenas como régua para a exclusiva medição daquele que se arvora no direito de medir os outros. Jamais terá qualquer utilidade para definir quem eu sou. Cada um compreende a realidade conforme os olhos que possui”. Em seguida, ponderou: “A sua imagem cabe a sua compreensão. Tão e somente. Nunca conceda esse poder a ninguém. Seria como autorizar o absurdo controle de determinar quem você é, o que pode pensar, deve sentir, aonde tem permissão para ir e chegar, de acender ou apagar a própria luz. Ninguém necessita da validação de ninguém para ser feliz, viver em paz e amar sem limites. Trata-se de uma conquista interna, um movimento primordial de dignidade, libertação e cura”.
Glória quis saber se essa era razão do seu desequilíbrio emocional. Cléo explicou: “Também. Mas não é só isso. Para desmanchar um sofrimento se faz necessário ir à origem da dor para conhecer as causas que desestabilizaram a sua estrutura emocional. Sofremos pela incapacidade de elaborar a experiência vivida de maneira correta. Qualquer dependência furta o domínio que uma pessoa precisa ter sobre si mesma. Com isto, se torna impotente para as escolhas da sua vida, gerando a instabilidade causadora de ansiedades, medos e sofrimentos”. Ajeitou os cabelos antes de prosseguir: “Quando acreditou que a sua felicidade carecia do amor de Paulo, transferiu a ele o poder de manipular os seus sentimentos e a sua paz”. A olhou com seriedade e ressaltou: “Ele pode ter feito mal uso desse poder, mas não lhe roubou nada. Foi você quem o entregou”. Com o rosto banhado em lágrimas, Glória não teve como discordar. A bruxa deu de ombros e sugeriu: “Contudo, nada a impede de pegar esse poder de volta. É seu por direito, versa sobre a sua vida. Torna-se dona de si é uma escolha sempre disponível e possível”.
A ilustradora confessou não saber como fazer. Tinha sido honesta quando dizia não mais fazer questão de se sentir amada pelo Paulo. Isto a atordoava ainda mais, pois, não entendia o motivo de as atitudes do ex-marido ainda a desequilibrarem. Cléo foi direito ao cerne da questão: “O ódio”, afirmou sem rodeio. Glória tomou um susto. Disse que era uma pessoa boa. A bruxa não discordou: “Não tenho duvida disso. Do contrário, eu não estaria aqui. No entanto, pessoas boas também sentem ódio, inveja, ciúme e uma série de outros sentimentos autodestrutivos e desestabilizadores. Por condicionamento ancestral, tendemos a ficar com raiva e mágoa de quem nos faz mal, prejudica ou contraria. Desde tempos imemoriais fomos educados a pensar e sentir desta maneira. Alimentar o hábito é se afogar em veneno; negar o vício é se deixar destruir pelo sofrimento. Aceitar o sentimento amargo para, em seguida, o descontruir é a terapia de cura. O desequilíbrio é uma das inevitáveis consequências do ódio e do ressentimento por provocar a constrição do pensar e a acidez no sentir. Os movimentos se tornam ríspidos ou inseguros, o que faz escalar os níveis de instabilidade emocional, fertilizando o solo às raízes do sofrimento. Por ignorância, muitos confundem agressividade com força. Vale salientar que força significa movimento rumo à luz. Tudo mais se resume em brutalidade e maldade como síntese de covardia e fragilidade. A paz e a mansidão sinalizam a real presença do equilíbrio e da força de deslocamento por entre obstáculos e entraves da existência, sempre com leveza e suavidade”. Cléo ofereceu um lindo sorriso para a ilustradora e ponderou: “Troque o ódio pela força regeneradora e restauradora da compaixão. O reequilíbrio emocional será o efeito imediato dessa mudança de olhar. Ainda mais, terá a lucidez para entender como se colocou no lugar insalubre que estava e, assim, nunca mais voltar”. Glória ouvia com atenção. A bruxa prosseguiu: “A compaixão é a virtude de compreender e aceitar as fragilidades alheias a partir do entendimento das nossas próprias fraquezas e dificuldades. Afinal, não podemos exigir a perfeição que não temos para oferecer. Há muito amor e sabedoria nessa compreensão e movimento”.
A ilustradora questionou se todas as vezes que fosse tomada pelo sentimento de raiva ou impotência restaria desequilibrada emocionalmente. A bruxa disse sim com a cabeça e ratificou: “Esse é a pedra angular da transformação. O ponto onde o mistério do sofrimento é decodificado”. Fez uma pausa para que pudéssemos concatenar o raciocínio e continuou: “Sentir ódio ou mágoa nas vezes que somos prejudicados, fala de um comportamento atávico que nos atrapalha desde sempre. Logo, requer modificação. Tudo que incomoda, causa desconforto ou dói sinaliza algo mal construído dentro da gente. Preste atenção as impaciências e intolerâncias, que tanto mostram o quanto ainda não sabemos lidar com as contrariedades inerentes as diferenças que caracterizam as pessoas e terminam por fazer dos relacionamentos uma escola evolutiva por excelência. Perceba que a razão dessas sombras dialoga com a aspereza da alma de um indivíduo desacostumado a usar o amor como anteparo no trato pessoal. Seja consigo mesmo, seja com o mundo. Aprendemos a pensar errado. Desde o início dos tempos, vivemos relações nas quais há uma luta insana, velada e inconsciente por domínio e superioridade. Ao aceitarmos viver sob esta regra, por lógica, abdicamos da liberdade e da paz. E, não raro, da dignidade. Nos movemos através de disputas e rivalidades contínuas. Somos multidões de desequilibrados que não percebem o equívoco do método adotado. Num insensato círculo vicioso comportamental, pensamos de maneira a alimentar os sentimentos densos que estreitam a capacidade de pensar. Somos menos quando poderíamos ser mais. Sofremos por incompreensão. Sem entender onde escolhemos morar, vivemos no cárcere da dor enquanto a liberdade nos aguarda à distância de uma simples mudança de olhar”.
Tornou a pausar antes de fechar o arco filosófico: “A causa do desequilíbrio emocional é a raiva, o ressentimento, o medo, o vitimismo e a absurda crença quanto a própria incapacidade de lidar com toda e qualquer situação. De ser feliz, livre, digno, se sentir em paz e amar o quanto e quem lhe aprouver. É ignorar o poder da vida que grita das entranhas nas vozes do sofrimento: eu estou aqui, venha me resgatar”. A bruxa olhou com doçura para a ilustradora e finalizou: “Sofremos pelo desequilíbrio oriundo do ódio, da mágoa e do medo pelos quais nos movemos, ao invés de dar lugar ao amor e à compaixão diante das contrariedades e dificuldades inerentes à existência”. Fez uma pergunta no intuito impulsionar o raciocínio de Glória: “Entende que as provocações e manipulações do Paulo surgem das fragilidades e fraquezas que ele possui?”. Ela disse que ele sempre parecera um homem forte e dono de si. Cléo esclareceu: “Não se engane com as aparências. Há muito medo e sofrimento nele. Como não os compreende, se torna incapaz de equacionar os sentimento de maneira correta e, então, reage de modo a punir outras pessoas pela dor que sente. Se fosse feliz não agiria assim. As couraças do orgulho, da vaidade, da soberba, da arrogância e do sarcasmo escondem enormes e profundos sofrimentos. A aspereza no trato pessoal revela o alto teor de insatisfação interna inadmitida ou incompreendida. A compaixão permite a exata leitura desse cenário, modificando o olhar e o sentimento que se tem sobre a rudeza e a agressividade, nos mantendo imunes às incompreensões do interlocutor. Somente a partir da sincera aceitação das próprias dificuldades, se consegue compreender a fragilidade alheia. Sem humildade não se chega à compaixão. Um movimento interno desprovido de qualquer discurso. Tudo mais é mero exibicionismo de uma evolução ainda não alcançada. Trocar as lentes do ódio pelas do amor, afasta as causas do desequilíbrio e, por consequência, desmancha o sofrimento. O reequilíbrio mental, emocional e energético é reestabelecido de imediato. Os devidos limites necessários para evitar os desrespeitos, abusos e as influências nocivas da maldade, se apresentam com clareza e devem ser usados com firmeza e delicadeza a um só tempo. A firmeza fecha as portas para o mal, enquanto a delicadeza evita a produção do mal subsequente como reação à ação desastrada. À outra pessoa ainda restará os efeitos benéficos de constatar a ineficácia dos seus métodos, assim como o legado de dívidas que herdará pelo equívoco dos seus atos. Trata-se de uma escola de grande eficiência”.
Glória enxugou as lágrimas e sussurrou que compreendia com clareza o raciocínio oferecido. Se o sentimento amargo era a causa do desequilíbrio, ao substituir por outro, nobre e sutil, reverteria a instabilidade. Para tanto, se fazia necessário reeducar a mente para olhar tudo e todos sob novos, e até então impensáveis, ângulos. A bruxa sorriu e acrescentou: “Há um último detalhe, mas não menos importante”. Observou por instantes a fantástica lua avermelhada sobre a Pedra da Gávea, se virou para a ilustradora e pontuou: “Perdoe e perdoe-se”. Em seguida, explicou: “Ninguém esquece os fatos marcantes que viveu. Fazem parte da história pessoal e, por isto, fundamentais ao aprendizado. Ao fazer uma retrospectiva da sua existência, e é normal que a faça, lembrará dos maus-tratos. Se longe do perdão, sentirá culpa pelos abusos permitidos e mágoa pelas maldades sofridas. Se envolvida pelo perdão, compreenderá o quanto serviram ao seu crescimento espiritual. Alegrar-se-á”. Franziu as sobrancelhas e a lembrou com seriedade: “Do mesmo modo, enquanto se ativer à expectativa pelo arrependimento do Paulo, se manterá desequilibrada pela frustração gerada por algo fora do seu controle. Não caia nessa armadilha. Você pode ficar aprisionada por séculos. Por lógica, a libertação não depende do ato alheio. É movimento autônomo e independente. Ninguém tem o poder de fazer o outro caminhar. Cada um faz ao próprio gosto e ritmo. Nisso reside a força do perdão. Contudo, o desejo de uma pessoa pelo atraso não pode impedir a outra de embarcar no trem da evolução para seguir a viagem. O peso dele não pode fazer carga à sua leveza. Cada um é integralmente responsável por si. Sem lamentos nem reclamações. A esse entendimento denominamos maturidade”. Em seguida, sintetizou a conversa: “A cura dos males provenientes do desequilíbrio se ergue com a autoestima, se estrutura por intermédio do amor e da sabedoria contidos na compaixão, para se completar com a libertação alcançada pelo sagrado perdão”. Sagrado é tudo aquilo que nos torna pessoas melhores, balbuciou Glória. Cléo piscou um olho em anuência.
Sem mais palavra, a bruxa se levantou, não sem antes oferecer um lindo sorriso à ilustradora, que agradeceu a conversa e o código para a libertação e a cura. Usá-los para abrir as portas por onde precisava atravessar era a tarefa que a aguardava. No espelho dos olhos da Glória, vi a Cléo, rodeada por gaivotas, bailar na beira do penhasco até sumir. Aproveitamos a noite de lua cheia avermelhada para metabolizar aquelas ideias. Era preciso que se tornassem instrumentos da transformação que a aguardava. Do contrário, o encontro restaria desperdiçado. Repassamos cada frase, conversamos e refletimos. Descemos ao amanhecer. Glória parecia não caber em si. Estava alegre e animada pela perspectiva quanto à própria vida dali para a frente. Sentia o poder dos dias na palma da mão. Garotava ao caminhar. Os seus pés pareciam nem tocar no chão.
4 comments
Gratidão 🙏
🙏🏼
Nossa.. feito pra mim..
Só Gratidão
Que estes ensinamentos alcancem mais e mais pessoas nas profundezas de seu inconsciente, tornando-se conscientes e lúcidos
Obrigada!