A atmosfera do mosteiro estava tensa naquele período de estudos. O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, tinha sido convidado para ministrar uma palestra em uma universidade e ainda não retornara da viagem. Até que voltasse, eu ficara responsável pela direção. Havia pouco tempo, Alex ocupara o cargo de coordenador-geral dos cursos. Decidira estabelecer uma rota na qual os monges teriam de trilhar a partir de então. Os cursos não seriam mais de livre escolha, como sempre acontecera. Estabeleceu-se critérios à trajetória de estudos, sob o pressuposto de que alguns conhecimentos são fundamentais à compreensão de outros, como degraus primordiais e indispensáveis à escadaria infinita para um conhecimento maior. O Velho aprovara o novo planejamento e, antes de viajar, fizera uma reunião com os monges para que todos tomassem ciência e dirimissem dúvidas. Contudo, mudanças trazem inquietações, desconfortos e contrariedades. Se nas mudanças reside o cerne da evolução, brota também o germe da insatisfação em quem se sente atingido pelas transformações dos movimentos exigidos pela vida. Quase ninguém gosta de se levantar da poltrona confortável da qual se considera dono pelo longo tempo que está sentado. Embora a comodidade, a conveniência e o privilégio fomentem o atraso e a desigualdade, não há como negar suas raízes ainda atuantes no comportamento comum. Sem darmos conta, influenciam na leitura dos acontecimentos e interferem em nossas ações e reações, escolhas e destino, aproveitamento ou desperdício de oportunidades. São condicionamentos ancestrais, com uma pesada carga de primitivismo e imobilidade.
Com o passar dos dias, o burburinho aumentou. Diversas requisições foram indeferidas pelo Alex, redirecionando os proponentes a outros cursos, conforme o plano de estudos traçado pela coordenação, e não aqueles desejados pelos monges, na contramão de hábitos que, de tão antigos, viraram vícios ou supostos direitos. Como se não bastasse, algumas rejeições tratavam do anseio de quem estava há bem mais tempo na Ordem do que o Alex. O aforismo popular sustenta que antiguidade é posto. Uma falácia criada por interesses de oportunidade, muitas vezes obscuros e nem sempre justos. Capacidade, competência e comprometimento são pressupostos com maior teor de equidade e justiça do que a cronologia de ingresso em uma instituição, empresa ou irmandade. Capacidade fala da habilidade inata para o exercício de uma função específica; competência se refere a habilidade adquirida através de estudos e práticas; o comprometimento se revela por intermédio do nível de dedicação e esforço indispensáveis à tarefa. De outra face, habilidade não se estabelece apenas com inteligência cognitiva e erudição. Não há como negar a existência dos gênios à serviço das sombras. Não raro, eles somos nós, quando insatisfeitos ou contrariados, fomentamos conflitos, desagregação e, por consequência, ainda que inconscientemente, semeamos dor e sofrimento. Bons e nobres sentimentos são essenciais no exercício de separar o bem do mal. Cabe-nos a meticulosa tarefa de valorizar a luz reverberada na utilização das virtudes como meio de deslocamento por entre os obstáculos inerentes às relações e ao cotidiano. Humildade, simplicidade, compaixão, delicadeza, sensatez, firmeza, paciência, tolerância, honestidade, pureza, entre outras virtudes, na confluência do amor com a sabedoria, ilustra o nível do desenvolvimento espiritual alcançado. Em situações de conflito, a lucidez aliada ao equilíbrio emocional se mostra mais útil, valiosa e necessária do que qualquer genialidade ou diploma, sem importar a capacidade de cognição em resolver complicados cálculos matemáticos, citar autores consagrados ou o prestígio da universidade cursada.
A insatisfação escalou tons no mosteiro. Embora a maioria tenha aceitado de bom grado as mudanças, lhe reconhecendo a importância e a necessidade, percebia-se a formação de um pequeno grupo de monges descontentes, cujo comportamento beirava a revolta. Poucos, quando articulados e insistentes, podem abafar a voz da maioria e contagiar os desprevenidos e distraídos. Então, o perigo se alastra. Como responsável pela direção na ausência do Velho, por inexperiência, eu demorei a agir para debelar os ânimos acirrados e manter o mosteiro unido. Até que estávamos na cantina, reunidos para o almoço, quando o Ibrahim, um dos integrantes mais antigos da Ordem, que teve a sua requisição rejeitada pelo Alex sob a alegação de que antes de realizar o estudo pretendido, precisava cursar outro como pré-requisito, questionou em público o motivo do indeferimento. A decisão se pautara nas novas regras estabelecidas, sem levar em conta o conhecimento, a experiência e a trajetória de Ibrahim no mosteiro ao longo de tantos anos. Em fração de segundo, da conversa se fez uma discussão ríspida. Inveja, ciúme, despeito, abusos e desrespeito foram termos utilizados na troca de acusações. A aspereza no timbre da voz, no teor das palavras e no fundamentos dos argumentos ilustravam a gravidade e o descontrole da situação. Não se tratava de um desentendimento isolado entre o Alex e o Ibrahim. Alguns monges tomaram partido. A animosidade escalou intensidades, evidenciando uma fratura na estrutura do mosteiro. Não física ou material, mas espiritual e energética. Empresas, famílias e amizades; impérios, tribos e casamentos, antes prósperos e felizes, desmoronam diante da desatenção com movimentos dessa natureza. Ao contrário do que muitos acreditam, o maior perigo não vem de fora, mas reside latente e paciente do lado de dentro, a espera do descuido e do desequilíbrio para se manifestar e destruir tudo e todos ao redor, inclusive, e principalmente, a si mesmo. Somos hospedeiros, lanceiros e herdeiros da nossa própria tragédia. Não cabem lamentos nem reclamações.
O mal-estar se instala de imediato na presença da discórdia e da incompreensão. A ambiência na cantina, onde todos os monges estavam reunidos para almoçar, costumeiramente alegre e descontraída, restou pesada e sombria. Atônito, pedi que os dois me acompanhassem até o gabinete da direção. Embora não soubesse exatamente como agir, entendia que algo precisava ser feito de imediato na tentativa de impedir que o conflito se alastrasse e a desavença amargasse outros corações. Deixei que cada um expusesse as suas razões, incentivei o diálogo e o entendimento, mas fui incapaz de costurar a paz. Estavam irresolutos e inflexíveis em suas posições e convicções. Se foram com a promessa de que refletiriam sobre os seus comportamentos. Havia a necessidade premente de expandirem suas fronteiras internas para que um coubesse no coração do outro. Foi o meu pedido a ambos. Apesar de desejar, eu não acreditava que, naquele momento, isso fosse possível. Estavam fechados para a clareza do pensar e a serenidade do sentir, como sempre ficamos quando somos dominados pela intransigência, ódio ou mágoa. A irredutibilidade se sustenta na denominada certeza de túnel, aquela que o olhar se fixa em uma única direção, sem levar em consideração a enorme beleza e as mil possibilidades do universo que existe e pulsa além das paredes da incompreensão e da intolerância, que amiúdam e estreitam o objetivo e a verdade. Em momentos assim, se faz imprescindível que algo ou alguém seja capaz de demolir essas paredes para, então, encerrar os conflitos. A reboque, desaparecerão os sentimentos densos e sofrimentos que acompanham e estimulam a discórdia.
Antes de viajar, o Velho havia realizado uma palestra em que desenvolveu o seguinte raciocínio: “Vivemos em momento planetário no qual ninguém ainda conseguiu se desligar por completo das influências que ancoram o atraso, estimulam os confrontos e aprisionam em vícios comportamentais que tanto postergam a evolução. Em maior ou menor grau, ainda oscilamos entre luz e sombras. A dualidade existe, mas não precisa perdurar. Em algum momento, há de ser superada. Uma jornada intrínseca e extrínseca a um só tempo, que não fala apenas sobre encontrar a paz, mas permite o movimento primordial à liberdade. Ser livre não é meramente fazer o que se tem vontade. Isto os inconsequentes e irresponsáveis sempre fizeram sem jamais auferir qualquer vantagem evolutiva. Entre outras questões, a genuína liberdade versa sobre a desconstrução das prisões insalubres e dolorosas do sofrimento, nas quais cada um se coloca por desconhecer como aprimorar e conduzir as próprias escolhas. Acontece nas vezes que não conseguimos enxergar as mil possiblidades que sempre estarão à disposição. Quem diz que não tem escolhas, nada sabe sobre as escolhas. Revela imaturidade ou falta de coragem. Quando uma decisão não é capaz de gerar bem-estar, reequilíbrio e serenidade, significa que outra, ainda escondida ou inadmitida, está à espera. A recusa em agir ou reagir no modo automático, no qual, lançados pelos conflitos, ódios, medos e mágoas, costumeiramente despencamos no despenhadeiro da dor, é passo primordial à transformação. A liberdade se inicia com a autopermissão de ir aonde nunca estivemos dentro da gente. Não há outro jeito de encontrar o sagrado, abrir portas e seguir em frente. Faz-se necessário deixar morrer uma parte de quem somos todos os dias. Do contrário não haverá espaço para alguém diferente e melhor possa renascer em nós”. Fez uma pausa antes de adicionar um importante comentário: “O sofrimento não é normal e inevitável, porém, uma enfermidade da alma, cujas raízes remontam às próprias incompreensões, típicas da imaturidade apegada às asperezas, privilégios, impaciências e intolerâncias usadas como lentes para interpretar o mundo e filtros para direcionar os relacionamentos. O cenário se apresentará cinzento, os personagens parecerão amargos e, amiúde, os resultados se mostrarão trágicos. Não se trata apenas da incapacidade em compreender pessoas e possibilidades. É bem mais. Tratamo-nos mal quando nos movemos por orgulho, vaidade, ganância, vingança e egoísmo. Sem darmos conta, geramos o mal-estar e as adversidades que vivemos. Fomentamos o celeiro das contrariedades e, depois, alimentamo-nos desses sofrimentos. Enquanto recusarmos a encontrar as escolhas que afastem a angústia e reconduzam ao equilíbrio, desperdiçaremos um sem-número de oportunidades de avanço e crescimento”. Eram palavras valiosas à vida, que também serviam de prenúncio aos acontecimentos que logo ameaçariam a integridade e a harmonia do mosteiro.
Pela manhã, após o desjejum, os monges se dividiam pelos diversos cursos oferecidos. Almoçávamos. A tarde era reservada para leitura, conversas e reflexões. Antes do jantar ocorria uma palestra comum a todos. Com pequenas variações, assim era a rotina do mosteiro. Naquela noite, conforme planejado, a palestra estava a cargo do Ibrahim. Pensei em alterar, porém, considerei que, se assim fizesse, passaria a todos a impressão de que ele sofrera uma punição pelo seu destempero na cantina. Eu não queria isso. No mais, o Alex também fora deselegante. Acreditei que, como tiveram uma tarde inteira para refletir e serenar os ânimos, não haveria problema. Eram pessoas adultas, cultas e bem-preparadas. Ledo engano. Equilíbrio emocional não se aprende nos livros. É uma conquista do espírito no decorrer da jornada, quando consegue realizar trocas angulares e substanciais, do fútil ao essencial, das conquistas rasas e imediatas àquelas de profundidade e eternas. Trata-se da arte da abnegação, fundamental ao equilíbrio e a força indispensáveis aos movimentos seguintes; senão, nos manteremos estacionários em conflitos e sofrimentos sem fim. Sem que eu fosse capaz de evitar, se instalara um duelo velado no mosteiro. Dois pequenos grupos disputavam quem detinha a razão e a verdade. Qual vontade prevaleceria em lamentáveis encenações de poder fútil e vazio. O tema da palestra versava sobre um texto de Platão denominado O anel de Giges, no qual um pacato camponês, ao encontrar um anel que tornava invisível quem o usasse, passou a praticar atos abomináveis de ganância e vingança, antes impensáveis àquele homem aparentemente humilde. Ao ficar protegido pelo manto da invisibilidade, uma desconhecida e improvável personalidade revelara a verdadeira face do pastor. Desde o início da palestra, com evidente desvio de finalidade, Ibrahim fez um paralelo com a função recentemente ocupada pelo Alex, repleto de provocações subliminares às decisões do jovem coordenador. Argumentara, de modo fictício, sem citar nome ou instituição, como indivíduos, sob os mais diversos e altruísticos pretextos, se valiam de cargos ou poderes pontuais para prejudicar pessoas com quem tinham problemas, antipatias ou rivalidades. Alguns cargos, pelos enormes poderes investidos, se equivaliam ao anel de Giges ao revelarem aspectos ocultos da personalidade de quem os exerce quando se sentem intocáveis. A reação de Alex, embora franca, foi igualmente agressiva. Uma confusão sem precedentes se instalou. Nunca acontecera algo parecido no mosteiro. Graças a sensatez e a serenidade presente na maioria dos monges, os dois grupos foram impedidos de prosseguir com as ofensas, evitando consequências ainda mais tristes e lamentáveis. Após o arrefecimento dos ânimos, sem prejuízo das emoções exaltadas, pedi que todos se recolhessem aos seus quartos. Era momento de pensar. Ninguém jantou naquela noite.
Com o sono intermitente e agitado, acordei antes do amanhecer. Fui à cantina em busca de uma caneca de café. Eu estava muito chateado. Não apenas pelo mal-estar criado, mas pelo fato de a confusão ter ocorrido quando o mosteiro estava sob a minha direção. Para a minha surpresa, ao chegar, encontrei o Velho sentado à uma das mesas próximas à janela com vista para as montanhas. Ao me ver, fez sinal de que havia café fresco no bule. Enchi uma caneca e me sentei ao seu lado. Não encontrei o tradicional sorriso, tampouco, qualquer traço de condenação em suas feições. Sua fisionomia era de serenidade. Entendi que ele já estava ciente do ocorrido. Antes que eu pudesse fazer qualquer comentário, Alex e Ibrahim entraram na cantina acompanhados de Heitor, o monge argentino, psicanalista, escritor e meu grande amigo. De imediato, compreendi que o Velho já conversara com o Heitor. Em consequência, os monges tinham sido convocados para uma conversa. Todos devidamente acomodados, o bom monge pediu para que cada um expusesse suas razões na tentativa de explicar o ocorrido. Permitiu os contra-argumentos, quantas vezes entendeu necessários. Não autorizou apartes ou interferências para que da conversa não se fizesse uma discussão. Ao perceber que os fundamentos se tornaram repetitivos, seja por desnecessidade em prosseguir, seja para não esgarçar uma relação já desgastada, encerrou o debate. Manteve-os em silêncio com a clara intenção de conceder tempo às indispensáveis reflexões. Um precisava ponderar os argumentos apresentados pelo outro para compreender se eram úteis e aplicáveis ao seu jeito de pensar, sentir e olhar. E, assim, sair de onde estava dentro de si mesmo.
Após alguns instantes, pontuou: “Todos têm o direito de conduzir suas vidas da maneira que melhor lhes aprouver. Contudo, para cada ação existe uma reação conforme o movimento realizado. Dentro e fora da gente. Inexoravelmente. Bem-estar, alegria, encontros e avanços ou conflitos, rupturas, sofrimento e atraso. Quando existe um grupo de pessoas em torno de um propósito em comum, há de haver ordem, disciplina e respeito. Isto vale para empresas e famílias, instituições e irmandades, amizades e casamentos, aqui no planeta ou nas Terras Altas”. Fez uma breve pausa para que pudéssemos concatenar ao arco filosófico proposto e continuou: “Ordem é uma determinação de origem superior, com o objetivo maior de estabelecer uma relação harmônica e próspera entre os integrantes de um grupo específico. Em alguns casos, como amizades e casamentos, não cabe a unilateralidade das regras, que devem primar pela pluralidade de opiniões na busca de um ponto comum, possível e saudável, com o aceite prévio dos envolvidos. Em outros, a relação hierárquica deve ser obedecida, no entendimento que cargos e funções são distribuídos em razão da competência, capacidade e comprometimento dos seus integrantes. Quando assim acontece, geram soluções e constroem pontes; do contrário, se tornam fontes de problemas e erguem muros. As diferenças de olhares não são antagônicas, porém, complementares, cabíveis e bem-vindas, desde que expostas com respeito, clareza e serenidade. No mesmo tom, as decisões devem ser respeitadas. Aos que ocupam funções diretivas, jamais devem se permitir às tentações do orgulho, da vaidade, da ganância, do revanchismo, entre outras sombras. De outra face, não devem ter apenas o respeito como guia, mas também a humildade, a simplicidade, a compaixão, a sinceridade, a delicadeza, a firmeza, a justiça, a pureza, entre outras virtudes”. Bebeu um gole de café e prosseguiu: “Disciplina é o cuidado e a atenção com os preceitos indispensáveis à boa ordem, seja daquele que dirige, seja de quem é dirigido, para que os objetivos traçados em prol de um bem comum não se percam, porém, restem direcionados rumo ao objetivo pretendido. Por sua vez, o respeito trata da regra fundamental de se colocar no lugar da outra pessoa, sem nunca fazer o que não gostaria de sofrer. E, em um patamar mais elevado de dignidade, em entregar na mesma medida que gostaria de receber”.
E não disse mais palavra. A intenção era que as ideias expostas encontrassem lugar na mente e no coração dos monges. Pensamentos transmutam sentimentos. A depender do teor ou do quilate, emoções impulsionam ou aprisionam o pensar. Portanto, este movimento simbiótico é a forja da genuína liberdade. Tudo mais são paredes erguidas em argamassa de devaneios e incompreensões na construção de antigos e recorrentes cárceres repletos de agonia e dor.
As fisionomias de Ibrahim e Alex estavam bem diferentes. Enquanto Ibrahim tinha os olhos marejados, Alex mantinha o semblante fechado. Em um tom de voz baixa, com evidente emoção à flor da pele, Ibrahim se confessou arrependido. Apesar de ter motivos para pensar que os monges mais experientes não devessem receber o mesmo tratamento dos recém-chegados quanto à escolha e alocação nos cursos, a forma como manifestou o descontentamento estava errada e agravou a situação. Perdeu-se de si mesmo quando se deixou irritar. Estava sinceramente triste por ter levado o mosteiro a tamanho conflito, próximo a uma fratura institucional. Pediu perdão ao Alex e disse que repetiria o gesto perante os monges no café da manhã. Se tornara pública a sua insatisfação e destempero, o pedido de perdão também deveria acontecer perante a todos. Tomado por profunda alegria, o Velho se levantou, trocou um forte abraço com Ibrahim e comentou: “A nobreza do seu espírito não me surpreende”. Em seguida sussurrou como se falasse consigo mesmo: “Vocês não imaginam a intensidade da luz gerada através do reconhecimento do erro e do pedido sincero de perdão. Um movimento fundamental ao autoperdão e, por consequente, a libertação do sofrimento”.
Os olhos se voltaram para o Alex. O jovem e culto monge, em timbre seco e com poucas palavras, disse que perdoava o Ibrahim. Fez-se um silêncio ensurdecedor por outros fundamentos, conteúdos e explicações. Como acréscimo, Alex se limitou a lembrar que a adaptabilidade é uma virtude indispensável aos inerentes movimentos de mudanças. Quanto às ofensas proferidas na discussão com o Ibrahim, justificou ter usado a linguagem adequada à situação. Respondera no mesmo tom da acusação. Sem deixar que o mal-estar se instalasse, o Velho contrapôs de imediato: “A atitude dos outros não é da nossa conta. Reagir da melhor maneira é a responsabilidade que nos cabe. Revela luz ou sombras. Fala sobre quem somos e o que ainda nos falta aprender. Tudo mais são incompreensões reverberadas em raciocínios tortuosos na tentativa de negar a perda de mais uma oportunidade evolutiva”. O bom monge prosseguiu: “A indispensável resiliência é virtude necessária a quem recebe novas ordem e regras, mas também indispensável àqueles que comandam e orientam. Entregar a cada um conforme as suas diferenças demonstra equidade, uma virtude que exige percepção apurada e sensibilidade aguçada. Na emergência de um hospital, um paciente com risco de morte deve passar à frente de outro em estado de menor gravidade, embora este tenha chegado antes daquele. Quem conhece trigonometria não precisa voltar à sala de aula ao lado de quem aprende as quatro operações básicas de matemática. Por lógica e bom senso, já as conhece. Diante de um muro alto, oferecer um caixote idêntico a dois meninos de tamanhos diferentes, significa igualdade, um mesmo tratamento aos dois garotos. De cima dos caixotes, a depender da altura dos meninos, permitirá que um veja o que existe do outro lado muro, enquanto o outro fique impedido de descobrir. Entregar um caixote mais alto ao garoto de menor estatura, permitindo que os dois enxerguem além do muro, concederá a mesma oportunidade a ambos. Como vê, a equidade, por vezes, é uma virtude mais refinada que a igualdade”.
Fomos interrompidos pelos monges que chegavam para o café da manhã. Sem demora, Ibrahim cumpriu a sua promessa de admitir o erro e pedir perdão a todos pela confusão causada. Foi aplaudido demoradamente. Não era difícil de reconhecer a grandeza daquele homem. Alex se manteve calado. Numa lógica desprovida de valor, pensava: se ele está errado, eu estou certo. Era nítido em seus olhos a expressão da vitória.
Naquela mesma manhã, fui chamado ao gabinete da direção. Cheguei junto com o Alex. O Velho, o Heitor e a Valentina, uma monja admirada por muitos, poetisa de raro talento e engenheira aeroespacial por profissão, nos aguardavam. Fomos convidados a nos sentar à mesa de reunião. O Velho comunicou que Valentina assumiria o cargo de coordenadora-geral dos cursos a partir daquele instante. As feições de Alex demonstravam espanto e decepção. Irritado, exigiu saber o fundamento da decisão. Foi o psicanalista quem explicou: “Você esteve diante de um grande mestre, mas foi incapaz de o reconhecer. Isto mostra que, apesar dos cursos que fez e dos livros que leu, ainda não está qualificado para funções de comando, pois, desconhece os mecanismos básicos de autoconhecimento. Em outro momento, voltará a ter uma nova oportunidade”. O jovem monge questionou quem era esse mestre. O Velho? Ibrahim? O próprio Heitor? Queria saber. Foi o bom monge quem esclareceu: “O erro, quando bem aproveitado, é o maior dos mestres. O erro sempre nos ensina algo que desconhecemos quando estamos dispostos a rever a rota para ajustar o rumo. Ensina a distinguir o certo do errado na forja ardente dos acontecimentos, a fazer reflexões cuidadosas para evitar a repetição de atitudes grosseiras ou negligentes. Contudo, se faz necessário humildade e compromisso com a verdade. Do contrário, o erro será um eterno algoz a nos impedir de sair de onde estamos”. O Velho concluiu: “A maneira de lidar com o erro revela a nobreza de caráter e a capacidade de aprendizado. O apego ao erro revela orgulho, vaidade e incapacidade de movimento. Usar o erro em favor do aprendizado fomenta o autoperdão, impulsiona o amadurecimento, o desfazimento do mal, refaz o equilíbrio e estimula o bem-estar”. Então, finalizou: “A cessação do sofrimento exige disposição, coragem e amor-próprio para ir à origem da dor e, então, a desmanchar por completo. Ninguém consegue isso sem educar a mente, serenar o coração e modificar hábitos no intuito de lapidar vontades, agregar virtudes e redirecionar escolhas. Não existe outro método de cura definitiva; tudo mais são terapias paliativas. Se tivesse prestado atenção à luz dos olhos de Ibrahim hoje cedo na cantina, entenderia melhor do que estamos falando”.
Inconformado, Alex disse que queria pensar. Precisava ficar sozinho. Com o timbre da voz alterado, solicitou uma licença para deixar aquele período de estudos imediatamente. Pedido concedido, saiu do gabinete de maneira estorvada. Em seguida, o Velho comentou: “Ele voltará. E chegará bem modificado. É um jovem inteligente e de bom coração. Precisa apenas arrancar as couraças do orgulho e da vaidade para encontrar a beleza do amor e o poder da verdade. Os erros são perfeitos para isso”.
Antes que traçássemos qualquer comentário, o bom monge disse precisar se preparar para a palestra daquela tarde. Levantou-se para se dirigir à biblioteca do mosteiro. Encantado, fiquei observando o seu caminhar de passos lentos, porém, seguros.
2 comments
Belo texto, simples e com muito conteúdo.
😊