TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Trigésimo oitavo limiar – O amor e a ética)

A paisagem e o vestuário me mostravam que eu estava de volta à Grécia Antiga. Subi os poucos degraus que me separavam da porta de uma casa. Pessoas entravam e saiam, sinalizando o livre acesso. Sentado na escada, um homem com barba e cabelos e brancos, de ombros largos e compleição robusta, vestido com uma túnica azul claro, fazia anotações em um caderno com a avidez de quem precisa registrar uma ideia. Olhou para mim e expressou o seu pensamento: “A virtude maior não existe como virtude. Por isto é uma virtude. A virtude menor, por ser apenas um reflexo da maior, não é uma virtude”. Voltou os olhos para o caderno e anotou as frase. Comentei que as palavras não faziam sentido. Ele me ajudou a entender: “O amor é a virtude maior. Dizem os poetas que para existir amor basta amar. Eles não estão errados, mas também não estão certos. O amor tem níveis e espécies; amplitudes e profundidades. Ninguém nasce pronto; é preciso aprender a amar mais e melhor todos os dias; o indivíduo realiza a sua jornada evolutiva ao aperfeiçoar o amor contido em cada movimento, seja no relacionamento consigo mesmo, seja com o mundo”. Em seguida, discorreu sobre as características do amor: “O amor não se vangloria em amar. Não faz propaganda, barulho nem exige nada em troca, apenas oferece o melhor de si na tentativa de afastar todo mal, dificuldade, sofrimento ou desconforto que possa surgir em qualquer situação. O genuíno amor não tem pompa nem interesse. Não exige esforço, é apenas a luz de um indivíduo desmanchando a escuridão tanto universo adentro como mundo afora. Na confluência do amor com a sabedoria, as virtudes são os rios que desaguam em mil maneiras de amar”.

O homem prosseguiu: “A ética é a virtude menor. Trata-se de um gesto bom, útil e nobre, gerador de harmonia interna naquele que se move por tais princípios e valores; fundamental na criação de um ambiente agradável e acolhedor. Princípios são como o projeto de um prédio; valores são as ferramentas de construção. A ética tem a capacidade de construir belas obras. A ética põe as genuínas virtudes em movimento”.

Questionei quais seriam as virtudes do amor. O grego elencou algumas: “A humildade, simplicidade, compaixão, misericórdia, gentileza, firmeza, mansidão, delicadeza, sinceridade, honestidade, sensatez, justiça, pureza e fé”. Indaguei quais seriam as virtudes da ética. Ele respondeu: “São as mesmas”. Ponderei que o amor e a ética seriam a mesma coisa. O homem discordou: “Claro que não. Embora tanto a ação quanto o resultado externo possam se assemelhar, a força intrínseca que os move são diferentes”. Eu quis saber sobre como os distinguir. O filósofo me disse: “A ética surge da ideia do homem bom que quero ser. Então a coloco em prática; é o bem raciocinado que ainda precisa de uma alavanca chamada vontade para se movimentar em mim; do contrário, não chegará ao mundo. O amor é o bem que transborda da fonte sem nenhum esforço. Como o rio que se explica e se completa ao sustentar a vida da população ribeirinha; sem nada exigir, segue tranquilo e alegre rumo ao mar”. Fez uma pausa antes de concluir: “Há muitas boas maneiras de usar a água; por isto as virtudes são várias; o amor se aperfeiçoa ao direcionar o seu curso pelas margens amplas da sabedoria”. Franziu as sobrancelhas e disse com seriedade: “Margens estreitas têm problemas com grandes volumes de água; os rios ficam revoltos e difíceis de navegar”.

Perguntei como eu saberia se um ato bom era ético ou virtuoso. O grego era bondoso: “Se surgir dúvida em sua prática significa que a mente se ressentiu do impulso oferecido pelo coração e precisará buscar as melhores razões para que a ação aconteça; neste caso falamos da ética”. Fez uma breve pausa antes de exemplificar: “Uma verdadeira mãe não hesitará em acudir o filho que chora; o vizinho talvez pondere sobre os prós e contras de prestar ajuda ao menino; o que os diferencia é o amor. A ética exige esforço para que a boa ideia se torne ação; no amor a virtude se move com suavidade e leveza. A ética é o reflexo da luz idealizada pela mente no coração; no amor a luz não é mais uma mensagem da mente, porém, a realidade daquele coração”.

Comentei que havia uma séria crítica à ética em suas palavras. O grego discordou: “De jeito nenhum. O bem será sempre bem-vindo. Não importa se a prática do bem é motivada por orientação religiosa, regras morais, por amor ou qualquer outro motivo nobre, vale a importância do acolhimento. Igualmente importante, é destacar que o exercício do bem equivale à jardinagem do amor; de tanto cultivar flores, nos afeiçoamos ao jardim. A ética apresenta a cartilha, se não de todas, das principais virtudes. Isto determina a grandeza e o alcance do gesto. Contudo, quando vazio em amor, o gesto pode restar contaminado. Veja a humildade, quando desprovida de amor, apresenta o risco de trazer resquícios de orgulho disfarçado; a simplicidade pode esconder fagulhas de vaidade quando ainda mal compreendida. A misericórdia, o belo ato de colocar o coração para atenuar o sofrimento de alguém, sem compaixão, é ato mecânico de caridade que, embora valioso, ainda não consegue ser virtuoso. São indivíduos que, movidos pelas melhores intenções, ainda não conseguiram sair completamente da caverna onde sempre habitaram, e ainda confundem as imagens da vida refletidas na parede, com todas as distorções que possuem, como se fossem a verdade desnuda e cristalina mostrada à luz do sol. A ética mostra um sujeito disposto a sair da escuridão; o amor disponibiliza a claridade inimaginável, possível apenas para quem vive fora dela”.  Cessou a escrita por instantes para concluir: “A ética é o manual a ensinar sobre o uso e a utilidade de uma lanterna; o amor, é a chama de um coração que ilumina o mundo”.

Aproveitou para fazer uma ressalva: “Não perderei tempo em discorrer sobre a caridade ou qualquer outro ato quando movido por interesses escusos como culpa, vaidade, orgulho, interesses mesquinhos, motivação política ou a ilusão absurda de se acreditar que é possível negociar com o Invisível e seguir em frente sem se redimir dos próprios erros. Caso em que não existirá ética, tampouco amor. Apenas a tentativa de polir a aparência de uma essência rasteira e vazia”.

O homem voltou às anotações. Ele falava à medida que escrevia: “Há as virtudes básicas que existem por elas mesmas, como a generosidade, por exemplo, presente nas vezes que concedemos algo a alguém mesmo sem estarmos obrigados a fazê-lo. É o amor em nível primordial. Há também as virtudes complexas, que surgem do agrupamento de mais de duas virtudes para dar origem a uma terceira; como a justiça que precisa da sinceridade, honestidade, sensatez, firmeza, humildade, simplicidade, compaixão, além da própria generosidade reunidas como músicos de uma mesma orquestra a executar a perfeita melodia”. Franziu as sobrancelhas e concluiu: “Como vê, ser bom é mais fácil do que ser justo; e exige menos do amor. Ao contrário do que muitos acreditam a justiça não afasta o amor, mas o aperfeiçoa. Ou não será justiça”.

Continuou: “Por isso a afirmação de que o amor tem níveis e espécies, amplitudes e profundidade. Na perfeita harmonia do amor com a sabedoria, uma virtude não apenas irá integrar outras, como também mostrará a intensidade da luz que reluz em nós”. Pedi que exemplificasse para facilitar o entendimento. O grego explicou: “Ora conseguimos ser generosos, mas não conseguimos ser justo; ora conseguimos ser gentis, mas não conseguimos ser sincero; ora conseguimos ser corajosos, mas não conseguimos ser mansos, agindo com agressividade desnecessária. Enquanto não agregarmos todas as virtudes de maneira equilibrada, viveremos fragmentados como a chama bruxuleante de uma vela que diante de uma singela brisa encontra dificuldade para firmar a sua luz. Desorientado, podemos desanimar acreditar que a busca é vã. A quedaserá enorme”.

Pedi para que falasse mais sobre isso. O grego era um excelente professor: “Quando as pessoas se movem pela ética, pode acontecer de serem traídas em sua pureza, a virtude de sempre escolher o bem mesmo quando o mal está disponível para uso, por sujeitos inescrupulosos; ao invés de aceitar a ideia de que o mal pertence a quem o pratica, descartam a pureza como instrumento do bem viver. Entendem que ela não é uma ferramenta útil ou a confundem com ingenuidade. Então, passam a se conduzir pela generosidade. Ao se sentirem magoados ou prejudicados em alguma situação, se tornam mais duros e rigorosos. Para manter os relacionamentos no âmbito da civilidade, retrocedem à polidez, um atributo que, embora agradável à convivência, é vazio em virtude”. Falei que era bom estar ao lado de pessoas educadas. O grego deu de ombros e disse: “Os canalhas são polidos; os farsantes têm uma conversa envolvente. A polidez é boa sem ser necessariamente do bem; pode ser apenas uma camada de verniz brilhante sobre a madeira podre. Se tiver de escolher, prefiro ao meu lado um sujeito sem polidez, mas de coração puro”. Fez uma pausa antes de acrescentar: “Quem está fora do Caminho não resiste aos percalços inerentes à jornada; amaldiçoam os problemas sem entender a finalidade pedagógica que possuem. Apequenam a vida ao empobrecerem as suas relações; amiúdam a si mesmos ao deixarem de fora da bagagem valiosos instrumentos da viagem”.

Em seguida, comentou: “O mais grave está por vir. Quando as regras não mais responderem, restará a retaliação. Ao entenderem que as regras de civilidade não mais trazem um retorno satisfatório, os que se movem pela virtude menor sentirão a necessidade de erguer as paredes dos limites e as fronteiras demarcatórias da separatividade. Significa que o conflito venceu e vai se propagar. Haverá punições e funerais. Motivos de euforia para muitos, que acreditam na aplicação de leis cruéis como mecanismos de justiça; enquanto, em verdade, somente disseminam a escuridão; enxergam os fogos de artifício acreditando estar diante de uma autêntica fonte de luz”. Franziu as sobrancelhas e concluiu: “Esse é o perigo de quando nos damos por satisfeitos com a virtude menor e nos recusamos a avançar rumo à maior. Acostumar-se com a escuridão da caverna nos faz estranhar a claridade do sol. A vida se estreitará e, pior, acreditaremos que é mesmo assim. Não, definitivamente, não é”.

O homem voltou a alertar: “A pequena virtude é o passo primordial para quem almeja entrar no Caminho. Isto pode representar um avanço. Mas não basta. Tem que ter cuidado para não haver acomodação nem enganos. Acreditar ser o que nunca fomos equivale à estagnação, um lugar onde os dias apodrecem. O perigo da ética é a aparência de virtude que possui. As aparências escondem a ignorância. O olhar resta enevoado. Confundem ordem social, que são políticas de conduta coletiva, com a paz, uma conquista intrínseca alcançada quando desmanchamos todos os medos ao compreender o fluxo da vida. Confundem riqueza, que se caracteriza pelo acúmulo de bens materiais, com prosperidade, o tesouro espiritual de viver bem consigo mesmo. Confundem a lei, normas coercitivas e garantidoras que criam obrigações e direitos, com justiça, movimento educador e evolucionista. O respeito, que surge da necessidade de impor limites às relações para que não haja qualquer abuso, com separatividade, a banalização do afastamento que pode levar à nefastas políticas de segregação; o desejo que se traduz na satisfação do ego imaturo, com a busca, que revela o propósito de uma alma em transformação. Acreditam que a euforia, o prazer artificial usado para entorpecer a consciência da verdade incômoda, tenha o mesmo alcance da alegria, a conquista de encontrar o mestre oculto a revelar a verdade em cada momento da vida. Não entender o exato significado de cada situação revela o desconhecimento absoluto por si mesmo”.

Abriu os braços como maneira de ressaltar as palavras e disse: “A ignorância está na origem de todas as sombras. A falta de conhecimento sobre quem eu sou me impede uma compreensão adequada quanto às emoções que me assaltam todas as vezes que os acontecimentos são marcados pela imprevisibilidade ou quando sou contrariado em minhas pretensões. As emoções densas turvam a mente. Acuado no pensar, sinto medo. Surgem a tristeza e o ódio; o desânimo e a intolerância. Orgulho, vaidade, ciúme, ganância, vitimismo, entre outras sombras. Fujo da verdade; a minha luz arrefece. Faço escolhas sem entender a profundidade das suas raízes nem a amplitude dos seus alcances. Deixo o amor de fora das minhas equações por melhores soluções. Por estar aprisionado em minhas próprias incompreensões, não percebo todas as rotas possíveis. Deixo de me pertencer; a vida se estreita. Solo fértil para todos os tipos de sofrimentos individuais e desajustes coletivos”.

Eu quis saber como não me deixar alcançar por tanta confusão. O grego arqueou os lábios em sorriso e segredou: “O sábio rejeita as flores, ele habita no fruto”. Perguntei o que ele tinha contra as flores. O homem tornou a sorrir, como quem se diverte com o disparate de uma criança, e disse: “Nada tenho contra as flores. Eu as adoro. Trata-se somente de um antigo ditado oriental usado para oferecer significado a um valioso entendimento”. Em seguida, explicou: “A ética é importantíssima para o crescimento intelectual, moral, emocional e espiritual. Contudo, por si só, não basta; é uma ferramenta, não a obra. Qualquer ferramenta de desenvolvimento, quando mal-usada, serve de máscara ou fantasia, dando uma aparência virtuosa ao indivíduo, enquanto esconde o vazio do seu conteúdo. Enganamos todos por algum tempo, nunca pelo tempo todo. Com a chegada das inevitáveis ventanias, aqueles que construíram a obra de si mesmo sem os devidos pilares de sustentação, as virtudes maiores, irão desmoronar. É quando assistimos ao triste espetáculos de belos prédios ruírem por terem se erguido sem fundamentos robustos. O conhecimento aparenta sabedoria; a fala pausada aparenta serenidade; o olhar firme aparenta honestidade. Comportamentos que, embora possuam a bela aparência das flores, não trazem necessariamente o conteúdo das frutas que alimenta a vida”.

Finalizou: “Há quem viva pela sofisticada imagem das flores; são muitos. Poucos se encantam pela simplicidade das formas dos frutos, fontes genuínas de vida pelas transformações que oferecem. Os frutos trazem em si a semente da vida e o poder da evolução. A ventania arranca tanto as flores como os frutos do galho. Despedaçada em pétalas, a flor perece. Arrebentado no chão, do fruto salta o caroço que renasce em árvore”.

O grego se levantou. Tinha alunos à espera. Estava na minha hora de partir. Andei a esmo pelo jardim até um riacho próximo. Refletidos na água, os raios de sol formavam uma mandala multicolorida. Atravessei.

Poema Trinta e Oito

A virtude maior não existe como virtude.

Por isto é uma virtude.

A virtude menor, por ser apenas um reflexo da maior,

Não é uma virtude.

A virtude maior não tem pompa nem interesse.

Quando as pessoas se movem pela virtude menor,

Traídas em sua pureza,

passam a se conduzir pela generosidade.

Ao se sentirem magoadas,

retrocedem à polidez.

Apequenam a vida.

Quando as regras não mais responderem,

Restará a retaliação.

As aparências escondem a ignorância.

O sábio rejeita as flores,

Ele habita no fruto.

6 comments

MARCELLO MELLO SCHWEITZER fevereiro 28, 2023 at 8:16 pm

Uma das melhores estorias q eu ja li aqui nesse site. Simplismente divino.

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Jéssica Perri março 3, 2023 at 8:58 am

Tão necessário e gratificante!

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Terumi março 11, 2023 at 1:34 am

Gratidão 🙏

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Rhodolfo março 13, 2023 at 10:10 pm

Gratidão!

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Maangoba agosto 29, 2023 at 7:57 pm

Obrigado

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Lucas Teixeira Oliveira julho 16, 2024 at 11:52 am

Incrível. Sabedoria profunda

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