O emblema na porta era de uma prestigiada universidade. Pelo visor de vidro pude ver uma sala de aula em formato de anfiteatro, daquelas que os alunos se sentam em carteiras dispostas como se estivessem em uma arquibancada. Entrei. O professor tinha a fala mansa e pausada. O silêncio da turma demonstrava o interesse e o respeito dos alunos. Subi os degraus e me sentei em uma das poucas carteiras que estavam vagas. Ninguém pareceu se importar comigo. O professor disse: “O Caminho é vasto, está em todos os lugares e movimentos”. Em seguida explicou: “Vasto é o atributo de algo cujo tamanho é impossível de dimensionar; difícil expressar a sua grandeza por intermédio de números, tabelas ou conceitos; as fronteiras da vastidão vão para além do alcance dos olhos e das ideias. Tudo que é vasto possui amplitude e profundidade. Amplitude é o movimento horizontal, em direção ao mundo para encontrar pessoas e, através delas, viver as experiências que mostrarão o que está incompreendido, e por isto mal construído, em si; então, reconstruir. Profundidade é o movimento vertical, que sobe ao Alto à medida que desce as profundezas do próprio ser, como o herói mitológico que leva o fogo para encerrar a escuridão da caverna onde adormece a espada sagrada, aquela que consagrará a conquista da sua integralidade. Iluminar a si mesmo é a batalha sagrada de todos nós. Eis o mito não apenas do herói moderno, mas de todos os tempos, que através de histórias singulares vencem as próprias sombras que o aprisionam em cárceres de sofrimento e medo”.
Os seus olhos mostravam uma alegria serena, típica daqueles que a tem em estado permanente. Ele prosseguiu: “Para que não reste incompleto, o movimento horizontal pede pelo vertical, sem o qual o indivíduo não alcançará a devida compreensão e consequente transmutação. Extrínseco e intrínseco; expansão e contração; laboração e elaboração; sobrevivência e transcendência; sombras e virtudes; yang e yin. Assim se move a evolução”.
Fez uma pausa e continuou: “Uma das maravilhas ocultas da vida é encontrar a presença do Caminho em todos os lugares e movimentos da existência. O Caminho está, ao mesmo tempo, dentro e fora da gente, presente em todos os momentos do dia. Absolutamente todos. Impossível percorrê-lo somente de um dos lados da vida. Todas as relações são pontes ou abismos, aprendizados ou prisões, a depender de como o indivíduo irá elaborar cada experiência. Sem exceção. A decisão é de vocês e minha. Assim cada um se torna o herói das suas próprias batalhas”.
Um dos alunos interrompeu para perguntar qual a melhor maneira de percorrer o Caminho. O professor respondeu: “Faça a sua obra em silêncio e nada atribua para si”. Tornou a pausar antes de prosseguir: “Fazer a obra significa evoluir, a razão final pela qual cada espírito vive inúmeras experiências reencarnatórias para que consiga amar mais e melhor. O amor possui mil faces e nuances que conhecemos e aperfeiçoamos através de atributos denominados virtudes. Quando aliado à sabedoria, o amor adquire amplitude, alcançando um número maior de pessoas; e profundidade, aumentando infinitas vezes a intensidade. Assim nos iluminamos; assim o herói contemporâneo vence a batalha sagrada. Desconheço outro jeito. Esse é o ponto onde a mitologia e a religião se encontram para contar a mesma história com diferentes enredos”.
Foi até a lousa. Com um bastão de giz, escreveu: humildade, simplicidade, compaixão, gentileza, delicadeza, sinceridade, honestidade, justiça, mansidão, firmeza, pureza, misericórdia, coragem, precaução, sensatez, perdão, fluidez, fé… . Em seguida, explicou: “São alguns exemplos de virtudes. Há outras tantas mais. Na jornada de iluminação, o viajante deve, pouco a pouco, conquistar cada uma delas, as agregando à sua bagagem, ou seja, ao seu jeito de ser e viver, as empregando em todas as suas relações e em cada situação vivida”. Arqueou as sobrancelhas e esclareceu: “Em qualquer movimento em que uma virtude não se faça presente, sinaliza a influência predominante das sombras e o consequente afastamento da luz”. Com giz de outra cor, elencou na lousa as sombras mais comuns: orgulho, vaidade, ganância, ciúme, ódio, ciúme, mágoa, vitimismo, desprezo, ironia, medo, ignorância… .
Virou-se para turma e prosseguiu: “O poder da luz se manifesta na sutileza, na suavidade e na leveza; agressividade, aspereza e o exibicionismo são características avessas à evolução. A quietude e o silêncio são importantes movimentos internos de elaboração e criação antes de se manifestarem em forma de virtude no mundo”. Uma aluna pediu que definisse os atributos da luz que havia acabado de citar. Ele foi didático: “A sutileza é a virtude de não permitir que nenhum dos seus movimentos venham impregnados de qualquer elemento denso e deletério; embora de extrema eficácia, ela é mansa, discreta e delicada. A suavidade é o atributo de se mover sem provocar atritos, ruídos, confusões e discórdias, quase sempre desnecessários. A leveza é a virtude de jamais levar ao coração qualquer situação desagradável; o viajante sabe que o mal pertence a quem o praticou e, portanto, não há nenhuma boa razão para o guardar em si. Não há sabedoria em carregar o mal consigo. Há que se ter compaixão. Assim, ele perdoa e segue em frente”.
Girou os olhos pela turma e fez uma pergunta: “Onde encontrar tamanha força e equilíbrio em mim para atravessar os desertos da existência, os incessantes obstáculos do dia a dia?”. Como não houve resposta, iniciou a exposição do arco filosófico daquela aula: “Para atravessar as inúmeras dificuldades, presentes em diferentes aspectos na vida de todas as pessoas, e ainda se encantar com as maravilhas ocultas opostas pelos obstáculos, pois sempre trazem consigo preciosos aprendizados, é indispensável haver equilíbrio e força na bagagem do viajante. Esse é o poder mitológico, o escudo e a espada, do herói contemporâneo. Equilíbrio é a capacidade de não deixar que nada nem ninguém o arranque do seu eixo de luz. Força é a vontade inabalável de vencer a si mesmo; sendo assim, ele trata cada dificuldade como uma oportunidade evolutiva ao invés de se desesperar ou desanimar como costumeiramente fazemos”.
Em seguida, explicou alguns conceitos básicos: “Esse poder se origina na conjunção de duas fontes: virtudes e verdade. Mitologicamente equivalem aos ingredientes misteriosos que, quando misturados, formam o elixir mágico capaz de transformar o indivíduo comum em herói. Ao beber dessas fontes, a luz se manifesta o capacitando a vencer as suas próprias sombras, razão de todos os seus medos e sofrimentos. As virtudes são ferramentas de amor e de sabedoria utilizadas na Grande Arte, a construção cada vez mais aperfeiçoada de si mesmo. A verdade é o último limite alcançado pela consciência no presente instante”. Olhou para turma e ponderou: “Antes que perguntem, sim, a verdade de hoje estará mudada amanhã. Não há problema nisto; pelo contrário, significa que houve uma evolução. Contudo, para que a verdade se expanda, será que preciso que você a aplique no limite do seu alcance, sem a negociar em um único milímetro. Aliada ao erro, é a fantástica forja do nosso aprendizado”. E prosseguiu com as definições: “Consciência é a percepção e a sensibilidade do indivíduo sobre si mesmo e o mundo ao redor. Existe uma relação simbiótica entre a consciência e a verdade. A consciência expande, a verdade muda, o viajante transmuta”.
Prosseguiu: “Das virtudes, as quais falaremos bastante durante o curso, três são primordiais: a humildade, a simplicidade e a compaixão. Reunidas no alforje do viajante, oferecem mecanismos internos com capacidade de fazer com que o viajante flua por entre os muros da soberba e da intolerância, típicos de comportamentos movidos pelo orgulho e pela vaidade daqueles ainda afinados às ideias cultuadas pelas sombras, nas quais o poder necessita de brutalidade e coerção, fama, dinheiro e aplausos para existir, e, por isto, exige pompa, espetáculo e propaganda. Portanto, ao espetacularizar as suas conquistas, por mais generosas e sinceras que sejam, o indivíduo se afastará da luz por ter se deixado aprisionar pelos brilhos sedutores das sombras”.
Fez um gesto com a mão como se fosse um barco e disse: “O viajante navega na contramão dos desejos das multidões. Ele não se orienta pelos condicionamentos planetários e midiáticos, mas pela sua verdade, já com alguns elementos alinhados à verdade cósmica. Qualquer imagem dissociada da verdade, embora possa existir no mundo, não é realidade, mas mera miragem”. Uma aluna ponderou que, se cada pessoa tem a sua verdade, como saberia se estava diante da realidade ou de uma miragem. O professor arqueou os lábios em discreto sorriso, como se esperasse pela pergunta, e respondeu: “Preste atenção ao que o tempo devora. O que sobreviver é realidade”.
Pegou um copo com água sobre a mesa, bebeu um gole e continuou: “O amor é sereno; a sabedoria, silenciosa. O ciúme faz escândalos; a ignorância causa ruídos. A virtude não carece de aplausos nem de cenas espetaculosas; ela se satisfaz com a grandeza intrínseca do movimento, ainda que mais ninguém saiba ou perceba. Mesmo que haja crítica, indiferença ou desprezo, você sabe qual ideia e sentimento que o moveu. Se forem dignos, bastarão. O mérito não está nos elogios recebidos, mas no valor virtuoso da ação livre de recompensas de qualquer espécie. Toda riqueza se traduz na simplicidade do amor semeado, jamais na empáfia de um celeiro abarrotado. Somente quando o bem gerado se mostrar uma iguaria apreciada pela sua alma, você conhecerá a grandeza do amor e, assim, entenderá o fundamento pelo qual os sábios afirmam que o verdadeiro amor liberta. Amar pela alegria de pavimentar estradas e colorir os dias. Nada mais”.
Franziu as sobrancelhas e acrescentou: “Um fundamento prepara o seguinte, assim como um degrau antecede outro. Portanto, cuide das pessoas, sem nada exigir, sem nunca as dominar. O amor não é um balcão de negócios ou um livro contábil; tampouco pode se assemelhar, seja no aspecto financeiro, físico, emocional ou mental, a um cárcere”. Sentou-se em uma cadeira ao lado da mesa, cruzou as pernas, e seguiu com a sua fala mansa: “Na medida do seu avanço, o viajante tocará no coração de algumas pessoas, trará em sua bagagem o mapa para muitas rotas existenciais que conduzem a curas existenciais, desembaçará olhares e reacenderá a chama da esperança naqueles que já não mais acreditam neles mesmos. A sua luz servirá de guia para quem está perdido no becos escuros das incompreensões”. Tornou a franzir as sobrancelhas ao aumentar o tom de seriedade e alertou: “Todo o cuidado é pouco. Situações como essas farão que muitas pessoas acreditem que não serão capazes de viver sem os seus conselhos, palavras e acolhimento; surgirá a tentação para que se torne um guru ou outro tipo de dominador. Relações de dependência surgem nos ambientes profissionais, familiares, religiosos e fraternais. Toda dependência é sombria. Ninguém precisa disso, ninguém caminha se não for com os próprios pés. O amor não gera credores nem manipuladores. Todo movimento impulsionado por contrapartidas, vantagens e controle alheio é contrário ao Caminho, logo, a luz”.
Outro aluno indagou se esta seria uma maneira de encontrar com Deus. O professor explicou: “Descartem a imagem antropomorfizada de Deus; é por demais rudimentar. Trabalhem com o conceito de evolução para atingir as plenitudes. Elas são o Céu na Terra. Você conviverá com Deus à medida que se alinhar a verdade e a expandir em si; O sentirá pulsando em suas veias todas as vezes que utilizar uma virtude para iluminar uma situação, pacificar uma relação ou superar a si mesmo. Tudo mais são alegorias de uma mesma ideia”.
Não satisfeito, o mesmo aluno tentou provocar o professor sob a alegação de que não enxergava grandeza em uma vida sustentada por aquelas ideias. Sem se alterar, o professor disse: “O Caminho não obriga ninguém a percorrê-lo. Nem todos têm interesse, muitos ainda não têm maturidade. Nem em mil anos acontecerá. O motivo é fácil de compreender. Essa multidão não encontrará as riquezas que admira e cobiça; no Caminho o poder brota de uma fonte real, mas muitos ainda se deixam enfeitiçar pelos encantos das miragens. Ao olharem para o viajante, o acharão pequeno. Até mesmo insignificante. Não importa. O conceito de poder sustentado na imposição de interesses e desejos, assim como a ideia de sucesso ligada à fortuna e à fama, nenhuma importância têm ao viajante. Servem apenas para criar gigantes de papel, super-heróis efêmeros, arrogantes, artificiais, desequilibrados e frágeis, logo devorados pelo tempo. Distribuem medo e sofrimento; servem à escuridão na contramão da luz, mas não têm noção disto”.
O professor explicava com delicadeza e sem pressa: “O verdadeiro poder é dominar as suas sombras pessoais, acender a própria luz como modo de iluminar a si e ao mundo. Não há outra vitória capaz de sobreviver ao tempo. Quem acredita que esse movimento o tornará famoso ou milionário, ainda está distante do Caminho. Como diria um sábio da antiguidade, viver pela beleza das ideias e a pureza dos sentimentos aplicadas ao cotidiano. Não fazer o menor mal sob nenhum pretexto; praticar todo bem diante de qualquer contexto”.
Olhou para turma com carinho e comentou: “Tenho especial fascínio pelo bem distribuído nos pequenos gestos do cotidiano, possível a qualquer indivíduo, independente das condições financeiras que estiver agraciado. Alimentar quem está com fome e agasalhar aqueles que sofrem com o frio são ações importantes, sem qualquer dúvida. O bem pela oferta material é conhecido e justamente valorizado. Mas também muito divulgado. De outra face, existe o bem emocional, aquele que nenhuma moeda custa ao bolso, possui valor incomensurável e passa desapercebido para a maioria. Falo da boa palavra para desesperançados, do abraço a quem se sente perdido ou abandonado, do ombro disponível para recolher lágrimas de desespero, da escuta para aquele que precisa desabafar, da compaixão oferecida àqueles que ainda não conseguem vislumbrar a verdade e teimam em seus equívocos, da tolerância com quem culpa o mundo por suas próprias incompreensões, entre outros inúmeros exemplos nos quais é possível levar luz à escuridão. Ações como essas significam o mais puro amor semeado. Um jardim secreto, silencioso e de muita luz. São através de movimentos como esses que permitem ao viajante saber o seu tamanho. Para ele, isto basta. Os jornais nada falarão, não haverá condecorações. O viajante dispensa aplausos e homenagens. Apenas oferece o melhor de si e segue em frente. A sua luz se intensifica, a verdade se amplia, as virtudes se aprofundam. No dia seguinte, um pouquinho mais. A viagem avança sutil, suave e leve. Desapercebida para a multidão”.
Uma aluna comentou que gostaria de ser livre como um pássaro. O professor a corrigiu em um conceito básico: “Embora a imagem seja inspiradora e, por isto, devidamente usadas pelos poetas, os pássaros voam por determinismo biológico, assim como os peixes nadam e os cavalos galopam. Pássaros não voam por serem livres”. Fez uma pausa para esclarecer: “Entender a liberdade ajuda na sua conquista. A liberdade se iniciano livre-pensar, sem as amarras dos preconceitos e dos condicionamentos socioculturais que muitas vezes interferem em nossas escolhas sem que percebamos. Nos deixamos conduzir pelos trilhos que nos foram impostos, enquanto acreditamos estar no comando das nossas decisões. A liberdade precisa da humildade para que tenha espaço para crescer dentro do viajante, da simplicidade para afastar os seus enganos e da compaixão para desmanchar as mágoas que cegam”. Esperou um pouco para que os conceitos fossem alocados e seguiu com as explicações: “A liberdade prossegueatravés de um pensar sem dependências emocionais, interesses obscuros e desejos vis. Enfim, a liberdade precisa de uma mente clara e de um coração sereno para que possa ser plena. Por fim, a liberdade se completano total desinteresse em influenciar, subjugar ou dominar qualquer outra pessoa. Tampouco, cobrar delas qualquer contrapartida. Lembrem, todo senhor é também prisioneiro do seu escravo pela vigilância que precisa exercer para evitar a sua fuga”.
O professor levou a turma a terras inimagináveis: “O trato consigo traduz boa parte da liberdade, mas também ensina a arte da dignidade, que se manifesta no modo pelo qual trato as pessoas. Se não for da maneira como espero ser tratado por todos, haverá indignidade no meu jeito de viver. Esta é a base de toda verdade até então compreendida e vivida. Esta coerência do ser no viver define um importante código ética de comportamento e escolhas, fundamentais ao processo evolutivo. Ser livre é a maneira mais sublime de tratar a si mesmo; aplicar o mesmo padrão no trato com toda gente leva ao expoente máximo da dignidade. Viva isto sem nenhuma distinção. Do contrário, surgirão dívidas e amarras em todas as relações. Uma vida na qual o amor, a liberdade e a dignidade reverberem através dos gestos simples e palavras suaves desenham a beleza de uma vida e a consagração do herói moderno”.
A sirene tocou. Os alunos agradeceram, guardaram os cadernos e se foram. Ficamos a sós. O professor me olhou com bondade, sorriu, pegou o giz e desenhou uma mandala na lousa. Despediu-se com um aceno e se foi. Eu sabia o que tinha de fazer.
Poema trinta e quatro
O Caminho é vasto,
Está em todos os lugares e movimentos.
Faça a sua obra em silêncio e
Nada atribua para si.
Cuide dos dez mil seres
Sem nada exigir,
Sem nunca os dominar.
Muitos o acharão pequeno.
Não importa.
O sábio conhece o seu tamanho.
Isto basta.
Ele dispensa aplausos e homenagens.
4 comments
Divino.
Gratidão 🙏
Gratidão pelo texto e pela reflexão!
Texto muito profundo; espero que tenha uma amplitude proporcional. obrigado