MANUSCRITOS VII

O dragão e o sábio

Esta história aconteceu há muitos anos. O céu mesclava entre o rosa e o azul de um amanhecer sem nuvens. Fazia frio. Ouvia-se o canto dos animais na floresta que abrigava o mosteiro. O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, ocupava a última mesa da cantina junto à janela com vista para as montanhas. Ele sorriu ao me ver. Enchi uma xícara com café e me sentei ao seu lado. O desjejum seria servido em breve, quando então o silêncio do local seria preenchido pela conversa animada de dezenas de monges. Falávamos sobre as atividades do dia, quando notei uma mudança na fisionomia do Velho. Como eu estava sentado de costas para a porta, me virei para entender o motivo da seriedade repentina no seu olhar. Pedro, um dos monges mais jovens da Ordem, muito querido por todos em razão da sua intensa amorosidade, acabara de entrar. Estava com a fisionomia transtornada. Surpreendi-me. Ao contrário do que nos habituáramos, vibrações densas o acompanhavam. Ele estava muito irritado. Ficou alguns instantes para se decidir entre uma xícara de chá ou de café, terminando por não se servir de nenhuma das duas. Dirigiu-se à mesa em que estávamos e se sentou com uma empáfia que desconhecíamos nele.

Naqueles dias, o mundo era apresentado ao fantástico universo virtual proporcionado pelo avanço célere da informática com suas impensadas possibilidades. Afeito a essa nova linguagem, Pedro a tornava acessível aos demais monges que, apesar de encantados, ainda não possuíam a mesma desenvoltura com a recente tecnologia. Sempre atencioso e gentil, traços marcantes da sua personalidade, facilitava a vida de todos no mosteiro através das surpreendentes estradas digitais.

Sem a gentileza que lhe era comum, Pedro disse que estava se desligando definitivamente da Ordem. O Velho, que o observava no exato tom entre a seriedade e a serenidade, perguntou se ocorrera algo capaz de uma atitude tão drástica. O jovem disse que estava cansado de todos no mosteiro se aproveitarem das suas habilidades, sem lhe devolverem o merecido reconhecimento. Mencionou o fato de o Velho tê-lo chamado à responsabilidade no dia anterior por uma tarefa que não entregara no prazo, fato que atrasara o andamento de outras atividades. De fato, nas últimas semanas, Pedro estava relapso com os afazeres; quando questionado sobre as suas obrigações, era monossilábico nas respostas. O jovem gentil se tornara arredio. Não demos muita importância. Atribuíamos a mudança de comportamento ao fato de ele estar apaixonado por uma bela moça. Com casamento marcado, várias vezes ao dia era chamado para atender as ligações da noiva; conversavam por demorados minutos (na época, os sinais de telefonia móvel não alcançavam o mosteiro nas montanhas). Os monges interpretavam com naturalidade a atitude do jovem, ainda em fase de transição, que demoraria algum tempo para se ajustar. Ninguém ficara chateado com o rapaz.

Havia alguns dias, o Velho o observava com atenção. Na tarde anterior, chamara Pedro à responsabilidade. Com a delicadeza típica da sua personalidade, lembrou ao jovem: “Nunca deixe de se encantar com as maravilhas da vida. Aproveite-as intensamente. Contudo, jamais se descuide dos seus compromissos, pois são eles que concedem a amplitude e a profundidade da existência. Dias sem compromisso tornam a vida rasa; as conquistas serão de superfície e efêmeras; as cores de todas as coisas ficarão logo desbotadas”.

Esse era o fato que, segundo o rapaz, teria ultrapassado o limite da sensatez, motivando a sua decisão. O jovem alegava que ninguém levava em conta o quanto ele oferecia a todos; ao não entregar o que fora solicitado, sofrera uma repreensão. A relação era injusta; dava muito e recebia muito pouco. Estava na hora de dar um basta ao que denominou como abuso. Intrometi-me na conversa. Sem negar o valor das habilidades que tanta facilidade oferecia aos monges, lembrei ao Pedro das aulas de Filosofia, dos ensinamentos sobre Metafísica, História, Psicanálise, entre muitos outros assuntos oferecidos no mosteiro. Caso se permitisse avaliar sem a interferência do desatino das emoções, talvez percebesse a riqueza que lhe havia sido entregue. O quanto ele se beneficiaria daquelas ferramentas se as soubesse usar para o bem viver. O jovem negou. Argumentou que todo aquele conhecimento estava disponível em livros. Não seria necessário sair de casa para ter acesso ao conteúdo desejado. Perdia tempo e dinheiro indo ao mosteiro. Pontuei para que não esquecesse de outro tesouro, aquele oriundo do convívio movido por interesses de transcendência; as conversas e debates que nos levam a uma camada não descortinada por intermédio da leitura; o olhar do outro sempre terá o poder de mostrar algo não percebido ou mesmo entendido em diferente profundidade. Pedro alegou se tratar de miudezas diante do quanto ele tinha oferecido. Falou, ainda, que a reprimenda por algo que não tivera tempo para fazer era um desmerecimento ao muito que havia entregado de valioso à Ordem. Acrescentou que era muito ingênuo quando ingressara na irmandade. Agora, já crescido e amadurecido, não mais permitiria que, segundo suas próprias palavras, continuassem a lhe vampirizar.  Havia ódio em seus olhos. Não o reconheci.

Os monges chegavam para o desjejum. Atônitos, perceberam a ambiência densa, mas nada entenderam. O jovem se levantou e foi embora se despedindo de todos com um mero aceno de cabeça. A sós com o Velho, comentei que estava surpreso. Era outro Pedro, bem diferente daquele que, assim como todos, eu me afeiçoara. O bom monge explicou: “Trata-se do mesmo jovem. Em distintos níveis e tamanhos, todos temos compartimentos que, a depender das influências que nos permitimos, se abrem, revelando o dragão, até então oculto, que virá nos devorar. São nesses momentos que perdemos o controle de quem somos para entregar ao desconhecido que nos habita. São as causas das quedas mais comuns”. Fez uma pausa para acrescentar: “O encanto do dragão está em nos convencer de um poder que não temos, em fazer acreditar que somos alguém que desejamos, mas ainda não nos tornamos. Orgulho, vaidade e cobiça são as armas que o dragão nos oferece; o mundo será indicado como o inimigo a ser vencido. Trata-se de uma luta perdida”.

Falei que estava chateado pela ingratidão do Pedro. Desde o seu ingresso na Ordem, logo após o falecimento do seu pai, um amado e respeitado monge da irmandade, ele fora acolhido com muito carinho e atenção por todos no mosteiro. O Velho franziu as sobrancelhas e disse com seriedade: “Penso que você deveria estudar o Tao Te Ching”. Eu quis saber a razão; naquela época, eu ainda não tinha sido apresentado ao Li Tzu, o mestre taoísta. Ele explicou: “Em um dos poemas, Lao Tsé ensina que o sábio faz a obra sem se apegar ao que construiu. O valor não está no aço e concreto de um prédio robusto e sólido; pois, a capacidade de sobreviver aos séculos não o livra da efemeridade. Por si só, será apenas um prédio, ainda que pese os requintes da arquitetura e a moderna engenharia. O eterno reside na capacidade de abrigar alguém durante as intempéries da existência; na verdade invisível vivida no espaço interior oferecido. Mesmo que a moradia não seja reconhecida por quem ali foi acolhido, pouco importa. A ingratidão não auxilia nenhuma das partes. Nunca lamente uma partida, o amor deixa um perfume que o tempo jamais apagará. No fim, a escuridão mostra a sua importância ao servir como impulso para quem despencou nos precipícios da existência retornar à luz; então, como na maioria das vezes acontece, a volta será definitiva. A sabedoria habita nos meandros das certezas sutis”.

Passado semanas, a Ordem foi notificada para se defender em uma ação judicial. Pedro cobrava pelos serviços de informática realizados. Alguns monges eram advogados talentosos, outros eram magistrados respeitados. Unânimes, garantiram que não haveria dificuldade para demonstrar a improcedência do pedido do rapaz. Um desatino, afirmaram. No entanto, o Velho declinou de esboçar qualquer defesa para contestar o pedido; solicitou que calculassem o preço médio de mercado do trabalho realizado. Esse valor foi proposto em juízo; a concordância de Pedro com a oferta encerrou a demanda. Com exceção do bom monge, que não se abalou com o acontecimento, todos no mosteiro se mostraram bastante chateados com o rapaz.

Tive a oportunidade de questionar ao Velho a razão daquela atitude. Ele tornou a citar o Tao Te Ching: “Em seu poema milenar, de rara sabedoria, Lao Tsé ensina que, entre outros aspectos, os indivíduos alcançam a maturidade da existência ao se guiarem por um senso apurado de justiça. As pessoas imaturas clamam por seus direitos; ainda precisam das leis para justificarem as suas escolhas”. Fez uma pausa antes de prosseguir: “No mais, enquanto durasse a ação judicial, e poderia demorar muito tempo, a sensação de animosidade permaneceria, como é comum a qualquer guerra em curso; as feridas continuariam abertas e, mais grave, se alastrariam por toda a alma. Ao encerrar o processo permitimos o início da cicatrização, pois o foco da doença foi debelado com o fim da disputa. É o início da cura”.

Comentei que os monges que trabalhavam nessa área afirmaram que não haveria maiores dificuldades para a Ordem sair vitoriosa no embate jurídico com Pedro. O Velho fez uma ressalva: “Sem dúvida, foram unânimes em dizer que as chances de sucesso seriam enormes. No entanto, não disseram que seria absoluta. Pontuaram que sob a ótica de uma vertente minoritária de juristas o pedido do jovem seria julgado procedente. Evidente que esse olhar, ainda que de verdade improvável, moveu o Pedro a nos enxergar como usurpadores. Se, sob qualquer aspecto, a lei estabelece algum direito a alguém, ainda que consideremos incabível ou injusto, devemos entregar o que nos foi pedido. Em outras palavras, Lao Tsé nos passa a mesma lição contida no Evangelho, ao ensinar que a César o que é de César; a Deus o que é de Deus. Uns se movem pelos valores do mundo; outros pelos do coração. Entender cada pedido é compreender as razões que os impulsiona”.

Antes que eu fizesse novas ponderações, ele se adiantou nas explicações: “O autêntico senso de justiça é uma virtude de difícil alcance. Ser justo é atitude rara no planeta, embora a grande maioria das pessoas se considere justa. Assim pensam ao pleitear direitos ou ao negar interesses que contrariem os seus. Em suma, na superfície do entendimento comum, a justiça se faz quando ganhamos; somos injustiçados todas as vezes que perdemos. Poucos conseguem, com o devido equilíbrio, a vontade livre e despido de ressentimentos e interesses menores, entregar algo ao simples aceno do direito alheio. Casos em que preferem o conflito; assim, esgarçam emoções, alongam sofrimentos, trazendo amarguras e dificuldades aos dias”. Franziu as sobrancelhas e disse: “Ao exaltar as conquistas do mundo perdemos a conexão com a essência da vida. Valorizamos o efêmero em detrimento ao eterno. Ainda que pese todo o movimento e esforço, os dias seguirão vazios. As conquistas concedidas pela lei não cabem na bagagem; o senso de justiça alcançado, sim; a paz e a dignidade construídas também”.

Argumentei que ele, o Velho, estava sendo bastante generoso. O bom monge me corrigiu: “Não, apenas me esforço para conquistar uma virtude que não possuo”. Em seguida concluiu: “Se Pedro entende que o auxílio que prestou no mosteiro tem um preço, devemos pagar. De outra face, o conteúdo inestimável que o entregamos, foi oferecido por amor. Então, ele nada nos deve. Sequer poderíamos considerar a possibilidade de uma troca. Eram distintos os sentimentos que nos impulsionaram”. Deu de ombros e finalizou: “Fizemos o que tinha que ser feito. Se prestar atenção, entenderá que nada perdemos”. Com as feições serenas, os olhos do bom monge reverberavam uma luz indescritível.

Passaram-se alguns pares de anos. Não mais ouvimos falar do jovem.

Assim que terminei a aula do Shiur – A jornada do autoconhecimento através dos textos sagrados, da qual era responsável, me dirigi ao refeitório para me reabastecer com uma caneca de café. No trajeto fui informado que Pedro estava ao portão. Como eu passara a ocupar um cargo na direção do mosteiro, avisei que somente os monges estavam autorizados a entrar. Visitas apenas com agendamento. Ao ouvir as ordens dadas, o Velho comentou: “As palavras duras do jovem ainda ecoam em seu coração”. Duras e injustas, corrigi. O antigo monge intercedeu: “Vamos recebê-lo. Ainda que pese a maneira como se retirou, não podemos esquecer de todas as facilidades e coisas boas que ele nos proporcionou”. Argumentei que tínhamos oferecido bem mais, sem que houvesse nenhum reconhecimento por parte dele. O bom monge indagou: “Qual a régua exata para fazer tal medida?”. O amor, respondi. O Velho me lembrou: “Na época, essa não era uma métrica disponível ao jovem. Não que inexistisse amor dentro dele, mas por não saber amar. Há que se ter compaixão. Do contrário, o melhor do que aprendemos será desperdiçado”.

Antes que pudesse responder, o Velho prosseguiu: “Assim como o medo, o ressentimento não é um bom conselheiro. Posso estar enganado, mas creio que o maior mal que o Pedro fez foi a si mesmo. Vamos escutá-lo, não por mera curiosidade ou pelo odioso prazer da vingança, mas por humildade e compaixão”. Em seguida, acrescentou: “Na selvageria da existência lidamos com as pessoas como se fossem, ora uma ameaça, ora um banquete; na maturidade da vida, olhamos a todos como autênticos mestres capazes de nos proporcionar indispensáveis lições”. Franziu as sobrancelhas e disse: “Isso define quem somos e onde estamos”.

Pedro foi encaminhado à sala de reunião. Estava abatido e entristecido. Ao ficar diante do Velho, o abraçou com força e chorou muito. O bom monge acolheu o jovem em seu ombro por demorados minutos. Depois, já sentados, o rapaz teve uma enorme dificuldade para falar. Ainda engasgado no próprio pranto, disse ter muita coisa para contar, mas não sabia por onde começar. Tentou algumas vezes; ao se dar conta que talvez não fosse a melhor maneira de narrar tudo o que lhe acontecera desde que deixara o mosteiro, recuava para tentar de outro jeito. Até que se declarou emocionado demais para conseguir traçar uma narrativa linear e coerente. As memórias pujantes atropelavam a clareza do raciocínio. Confessou que havia dentro de si um baú lotado e desarrumado de emoções e situações. O Velho foi em seu auxílio: “Se pudesse pegar uma única coisa no interior desse baú capaz de resumir a história em apenas uma palavra, qual seria?”. Arrependimento, respondeu Pedro sem qualquer hesitação.

Sonso, pensei. Deve ter dado tudo errado e agora retorna atrás de ajuda. Em seguida, o jovem definiu, também em uma única palavra, o motivo de ter voltado ao mosteiro. Perdão, havia honestidade no pedido. Foi quando me deparei com uma lágrima rebelde descendo pelo rosto enrugado do Velho; o coração do rapaz tinha sido tocado pela verdade, pelo amor e pela justiça. Naquele momento comecei a entender que a genuína justiça sempre traz importante um aspecto educativo. Na época, ninguém entendeu o Velho; os nossos olhos não possuíam o mesmo alcance. Eu enxergava apenas o momento, mas nada termina aqui e agora; a vida prossegue em seus inevitáveis efeitos. É preciso se libertar do tempo para compreender a verdade. O bom monge disse ao jovem: “Não há o que perdoar. O sincero arrependimento o liberta. Naquele instante, você fez da maneira que sabia; agora é fazer de um jeito diferente e melhor. Vejo uma enorme grandeza da sua parte. O pressuposto da humildade, a virtude primordial do Caminho, é o amor ao aprendizado, à evolução e à beleza através da simplicidade da vida”.

Sim, tinha dado tudo errado. Sim, Pedro precisava de ajuda. Isto não era necessariamente mal nem bom. Tudo dependeria de como iríamos reagir.

Mais à vontade, o rapaz contou o que conhecíamos e o que não sabíamos. Como já era órfão de mãe, o falecimento do pai trouxe uma triste sensação de desamparo. Foi acolhido pelos monges no mosteiro, fato fundamental para que reencontrasse orientação e sentido à vida. Entretanto, ao final do período de estudos, todos voltaram às suas casas, rotinas e projetos. Ele também teve de retornar aos seus afazeres; precisava e queria concluir a universidade, etapa fundamental na busca pelos seus sonhos. Em uma das matérias que cursou, conheceu Eva. Apaixonaram-se. A família da moça se encantou com o jeito amoroso e gentil de Pedro. O rapaz tornou a sentir a maravilhosa sensação de pertencer a uma família. Em poucos meses, estavam com o casamento marcado. Não havia dúvida de que foram moldados um para o outro. Foram dias de intensa paixão. O período de retornar ao mosteiro coincidiu com a oferta de um estágio que o pai da moça conseguira para Pedro, que declinou do convite para prosseguir em seus estudos esotéricos. Então, surge o conselho para o jovem pensar melhor, pois tal oportunidade não poderia restar desperdiçada em troca de conhecimentos que pouco, ou mesmo nada, acrescentariam à sua carreira profissional. A noiva também o queria por perto. Ao saberem que os monges se valiam dos seus talentos sobre um assunto ainda incipiente para a maioria das pessoas, surge o conceito da exploração indevida acrescida do desperdício de uma autêntica chance para dar um importante salto na sua carreira. Influenciado por essas ideias, Pedro se convence que já é quem ainda está longe de se tornar – são nestas horas que nos lançamos no precipício da existência, na crença das asas que não nasceram; assim, autorizamos o dragão a assumir o controle.  Mesmo assim, seguiu para o mosteiro. Contudo, não chegou lá por inteiro. O corpo viajou; a mente ficou. Os insistentes telefonemas de Eva o fez ver a realidade moldada à fôrma que impôs e aprisionou os seus pensamentos. Aquilo que acreditamos verdadeiro é a base da narrativa para o capítulo seguinte da nossa história. Ascenção ou queda, não há do que se surpreender. Em análise apurada, foi uma escolha.

Recebeu uma quantia considerável da Ordem como pagamento do acordo judicial. Casou-se. Viveu um período de extrema euforia, de viagens constantes e gastos intensos. O estágio não se revelou tão valioso quanto parecia. Ao se formar, as propostas de emprego não ofereceram um salário à altura da capacidade que acreditava ter. Os rendimentos se mostraram escassos para manter o estilo de vida da esposa. Vieram as dívidas e as brigas. O desequilíbrio que mostrara em seus últimos dias no mosteiro escalou tons. O jovem gentil e amoroso se tornou irritadiço. Ficou relapso no trabalho, deixando de cumprir prazos estabelecidos. Questionado, não se desculpou; reagiu com a mesma empáfia que mostrou aos monges. Era um profissional talentoso e diferenciado; a empresa tinha de levar em conta tudo de bom que ele já tinha realizado. Que esperassem. Foi demitido. O casamento implodiu. O divórcio trouxe uma sensação de alívio, mas também o fim de uma importante relação de apoio familiar. Eva logo iniciou um novo relacionamento, rompendo de vez o interesse dos pais da moça por qualquer assunto referente ao Pedro. Separado, desempregado e desamparado, se sentiu perdido e abandonado. Todas as teorias para conquistar o mundo de nada serviam para a sua sustentação mental e emocional naquele instante; os poucos conhecimentos adquiridos no mosteiro para conquistar a si mesmo começaram a mostrar alguma utilidade. Por causa destes ainda se mantinha de pé; em virtude deles sabia que podia recomeçar, desde que fosse buscar o equilíbrio e a força necessárias no âmago de si mesmo. Naquele momento, enfraquecido ao extremo, precisava de apoio e orientação para reiniciar a jornada de encontros, descobertas e conquistas intrínsecas. Para voltar ao mosteiro não mais poderia confundir arrogância com dignidade, nem humildade com humilhação; uma lição fundamental à vida.

Não que o casamento fosse algo ruim e destrutivo. Não era disto que Pedro falava. A família é um núcleo de convivência de extrema riqueza por se tratar da escola do amor primordial. O jovem se referia sobre qual voz deveria ouvir. Influências determinam rotas e, porquanto, definem destinos. Ou como me disse o Velho na época, abrem compartimentos ocultos dentro de nós. Alguns revelam o sábio desconhecido; a maioria acorda o dragão adormecido. Um nos eleva, o outro nos devora.

De início uma comporta foi escancarada; somente depois outra se abriu. O sábio veio depois do dragão. Contudo, não era indispensável que fosse assim. O sofrimento só se faz necessário quando faltam amor e sabedoria.

Por fim, Pedro pediu para que fosse aceito de volta às fileiras da Ordem Esotérica dos Monges da Montanha. Mesmo que lhe fosse proibido fazer qualquer pergunta nas aulas ou participar ativamente dos debates. Contentava-se apenas em ouvir e conviver com os monges. Intervi com o rigor que entendia cabível. Argumentei que, pelos princípios reguladores da irmandade, ninguém estaria banido em definitivo. Penas eternas são de injustiça infinita e contrárias à nobreza dos valores evolutivos. A solução seria fazer uma nova inscrição e aguardar o chamado. Salientei que fila de espera era enorme.

O Velho, que ouvia ao Pedro e a mim em absoluto silêncio e atenção, colocou sobre a escrivaninha a ficha de inscrição junto a uma caneta. Resignado, o jovem a preencheu sem dizer palavra. Em seguida, a entregou em minhas mãos. Embora tristes, os seus olhos mostravam compreensão quanto à decisão. Foi quando o Velho me perguntou quais eram os critérios de admissão na Ordem. Sem entender a razão da indagação, pois ele os conhecia tão bem como qualquer outro monge, respondi que havia dois. A ordem de espera era um deles. O outro, era o convite realizado a qualquer pessoa que entendíamos pronto ou em situação de colaborar com o ensinamento de todos no grupo, face um acontecimento diferenciado do qual já tivesse elaborado a experiência vivida. O Velho ponderou: “Creio que Pedro se enquadre com exatidão nessa última hipótese. Percebe-se com clareza as lições aprendidas e apreendidas por ele. Um rico aprendizado de extrema serventia para todos, pois o conhecimento por ele adquirido através da observação plena e atenciosa, pode auxiliar a muitos a afastar em definitivo a necessidade do sofrimento, se conseguirem identificar como, ora o sábio, ora o dragão, se manifesta em cada um de nós”.

Virou-se para o jovem e disse: “Seja bem-vindo de volta ao mosteiro”. Levantou-se abriu os braços para abraçar Pedro. Com os olhos mareados e a voz trêmula, o rapaz prometeu que não daria motivo para ninguém lamentar a oportunidade concedida naquele momento. O Velho falou para ele se dirigir à secretária, pegar a chave de um quarto vago, traçar um plano de estudos para aquele período e iniciar imediatamente. Sem remorso nem culpa. Mas na alegria da própria reconstrução.

Desconcertado. Esta palavra me definia naquele instante, embora não negasse a admiração pela sensatez e coragem do Velho exposta em decisão repleta de amor e sabedoria. Amor pela compaixão e perdão demonstrados em momento tão difícil, mas também de rara beleza. Sabedoria por reconhecer a humildade e a simplicidade do gesto de Pedro. O bom monge aproveitou o pão nosso de cada diapara se valer, de novo, da mais fina justiça, dentro dos ditames do Sermão da Montanha, o eixo central dos aprendizados no mosteiro.  Para muitos, seria a oportunidade propícia para abrir os compartimentos do dragão adormecido, se valendo do nefasto prazer contido na vingança, os arrastando às masmorras da existência; para outros, o momento de trazer à tona o sábio para assumir a cátedra dessa maravilhosa e mágica escola da vida. O dragão estará sempre à espreita, o sábio estará sempre à espera. Qual porta abrir será sempre uma simples escolha.

Eu não disse palavra. Depois que Pedro se retirou, como se adivinhasse os meus pensamentos, o Velho me explicou sem que houvesse a necessidade de qualquer pergunta: “A história dele não é diferente da minha nem da sua.  Pedro foi derrotado por si mesmo; pelas influências que se permitiu. Não existe outra modalidade de queda. Quando acontece, ergue-se à frente um muro opaco que nos faz crer não mais haver a luz da essência que genuinamente somos. Em realidade, apenas perdemos o acesso a essa poderosa e fundamental chama. Afastamo-nos de quem genuinamente somos”. Arqueou os lábios em doce sorriso e explicou: “O muro se ergue pelas sombras dominantes em nossas escolhas; então, a escuridão prevalece. Ficamos impossibilitados de prosseguir. Ao desconstruir o muro, refazemos a conexão; o fogo do aprendizado se firma definitivamente; ocorre mais uma transmutação. Tudo muda. Para olhos míopes, Pedro sofreu uma dura derrota; para outros, com a visão mais apurada, ele obteve a maior das vitórias ao iniciar o caminho de volta para casa, ao âmago do próprio ser, único lugar do universo onde poderá descobrir, encontrar e conquistar toda a sua beleza e grandeza. Então, terá acesso a todo equilíbrio e força. A sua luz se unirá à luz do mundo”.

Em seguida, apontou para o próprio peito e, embora falasse com a voz baixa e tranquila, fez uma saudação vigorosa: “Salve os campos de batalha! Sagrados sejam!”.

Em seguida, pediu licença e se foi, pois tinha que preparar algumas anotações para a palestra daquela noite no mosteiro. Observei-o caminhando com os seus passos lentos, porém firmes, iluminando a tudo e todos por onde passava.

 

7 comments

SCHWEITZER abril 18, 2022 at 7:56 pm

Uma estória linda sobre amor e compaixão. Espero q o Pedro encontre seu caminho. Todo mundo merece ser feliz. Me lembrou a estória do filho pródigo.

Amei.

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Karllus abril 22, 2022 at 1:15 pm

Bravo, bravíssimo !

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Tania abril 24, 2022 at 5:16 pm

Como sempre, ótimo texto. Para reflexão. A gente age muitas vezes assim, com o ego insuflado. Tentar o equilíbrio é essencial.

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Fernando abril 27, 2022 at 2:41 am

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem fim…

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Edson abril 30, 2022 at 12:13 am

Lindo. Com os olhos marejados, receba meu muito obrigado, Yoskhaz.

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Terumi abril 30, 2022 at 1:29 am

Gratidão 🙏

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Adilson maio 21, 2022 at 12:18 am

🙂🙏🏿

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