MANUSCRITOS VII

A alfaiataria do perdão e a elegância da alma

Essa história aconteceu há algum tempo. Eu aguardava a partida do ônibus rumo a pequena vila chinesa entranhada no início da subida ao Himalaia, quando fui surpreendido pela chegada do Heitor, um monge argentino, de Buenos Aires, que também integrava as fileiras da OEMM. Desde o dia que nos conhecemos no mosteiro, havia muitos anos, tínhamos ficado amigos. Dividíamos um olhar parecido sobre as coisas do mundo e a mesma paixão pelos livros. Quando acontecia de estarmos juntos em um período de estudos, costumávamos passar horas conversando. Inteligente e bem-humorado, eu adorava ouvir a opinião do Heitor sobre os mais diversos assuntos. Sem que nada tivéssemos combinado, por orientação do Velho, como carinhosamente chamávamos o decano da Ordem, ele também seguiria para aprender os mistérios do Tao Te Ching com Li Tzu, o mestre taoísta. Heitor era um autor bastante conhecido pelos diversos romances espiritualistas que publicava nos países de língua hispânica. Naquela época, eu nem pensava em escrever. Envolvido com a correria da agência de publicidade, me contentava ao ter alguns minutos para ler todas as noites antes de dormir. Ou nos finais de semana, quando os livros eram leais companheiros, sempre acompanhados por infindáveis canecas de café. Alegrei-me. Aquela viagem até a vila seria rápida, como parecem andar os relógios nos momentos agradáveis. Assim foi. Atualizamos as nossas vidas, conversamos um bocado e rimos demais. Ao me dar conta, o ônibus estacionava na praça, em frente a única estalagem do povoado. Nesse momento, Heitor comentou que, apesar de termos nos divertido no trajeto, tinha notado algo diferente em meu olhar. Uma preocupação, talvez. Ele era um homem sensível. Não à toa, tinha o dom de penetrar na alma dos leitores através da força das histórias que escrevia. Confessei que antes de embarcar, ainda no aeroporto do Galeão, eu tinha enviado uma mensagem pelo celular a um dos sócios da agência, o Ronaldo, responsável pelo setor comercial, perguntando sobre o resultado de uma importante reunião com um dos nossos clientes. Como precisavam da minha posição para a renovação do contrato, estranhei a ausência de resposta. Não tive dúvida que algo de grave acontecera, pois o silêncio era por demais estranho. Ponderei entre um desastre automobilístico e um infarto.

Heitor me olhava como se tentasse decodificar o que não estava contido nas minhas palavras. Ou os genuínos sentimentos que elas tentavam esconder. Ele me perguntou se o Ronaldo não era o sócio problemático, ao menos sob o meu ponto de vista. Pois, na opinião do diretor comercial da agência, o desequilibrado era eu. Tudo dependia de quem era o observador e o objeto. O monge argentino já tinha me explicado isso, mas esse exercício, além de desconfortável, é inútil quando ainda não estamos dispostos, ou mesmo prontos, para sair do lugar que estamos. Respondi que sim. Tínhamos um histórico de muitas brigas e sérios desentendimentos; as mágoas eram mútuas e profundas. Salientei, no entanto, que jamais deixaria o Ronaldo desamparado; fosse a sua família em caso de óbito, fosse o próprio sócio, se restasse incapacitado para o trabalho. Garanti que a agência continuaria a pagar os proventos e dividendos como se ele estivesse na ativa. Eu era um bom homem, pensei com orgulho. Heitor apenas me olhava.

A conversa foi interrompida. Em frente à estalagem, vimos um grupo de alpinistas chegando. Como a dona tinha um temperamento instável e atitudes imprevisíveis, nos adiantamos para garantir a reserva dos nossos quartos. Tudo resolvido, as malas devidamente guardadas, me propus a apresentar Li Tzu ao Heitor, que fazia a sua primeira incursão nos textos ancestrais legados por Lao Tsé. O portão da casa do mestre taoísta estava sempre aberto. Ainda no encantador jardim de bonsais, que havia no quintal à frente, já era possível sentir o delicioso perfume de incenso que vinha de dentro dos cômodos. Fomos recebidos com um sincero sorriso e um convite para um chá. Acomodados à mesa, Meia-noite, o gato negro que ali morava e dormia em cima da geladeira, logo se aboletou no colo de Heitor, como maneira de lhe dar boas-vindas. Rimos. Enquanto aguardávamos a ervas em infusão, Li Tzu quis saber se tínhamos feito uma boa viagem. Com a delicadeza que lhe era própria, mas sempre com extrema sinceridade, Heitor disse estar preocupado comigo. Notava em mim uma expectativa que, caso se concretizasse, poderia me prejudicar de modo que eu não imaginava. Surpreendi-me. Eu sabia que ele se referia ao sumiço do Ronaldo. Porém, não compreendia como aquilo poderia me prejudicar. Ao contrário, argumentei; era uma oportunidade maravilhosa que a vida me concedia para restabelecer as relações tão avariadas com o meu sócio. Agora, sob novas condições. Repeti ao mestre taoísta toda a ladainha. Resumi algumas das nossas brigas e narrei o seu súbito sumiço. Algo muito sério deveria ter acontecido. Ponderei entre um desastre ou enfermidade grave. Contudo, afirmei, jamais o abandonaria, ou a sua família, caso se confirmasse a impossibilidade de ele continuar a exercer as suas funções na agência. Com palavras não ditas, falara que aproveitaria a dificuldade na qual Ronaldo enfrentaria para mostrar a pessoa incrível, boa e espiritualizada que eu era. Notei uma rápida, porém significativa, troca de olhares entre os meus interlocutores. Eles nada disseram.

Li Tzu vertia o chá nas xícaras quando o meu celular apitou. Era uma mensagem do Ronaldo informando que a reunião transcorrera normalmente e o cliente tinha aceitado as condições para a renovação do contrato. No texto, ele pedia desculpas pela demora em responder, mas o telefone apresentara um defeito, sendo necessário uma troca do aparelho. Uma mera casualidade me levara a complexas e inexistentes suposições. Não ocorrera nenhum acidente ou doença. Sem que precisasse confessar, a minha frustação era evidente. Os planos de me tornar um super-herói na vida do Ronaldo, e assim resolver as nossas animosidades, tinham naufragado. 

Heitor perguntou como eu me sentia. Sem ter condições de decodificar as minhas emoções naquele momento, falei que sentia como se a alma tivesse esvaziado. Uma sensação esquisita. Ele ponderou: “Algo se esvaziou. Terá sido a alma?”. Falei que não tinha entendido. O monge argentino explicou: “A alma não ficaria melancólica, mas teria dado pulos de alegria ao saber que o Ronaldo está bem”. Estranhei o comentário. Afirmei que eu não desejava qualquer mal ao meu sócio. Eu estava sendo honesto. Heitor fez sim com a cabeça e explicou: “Ninguém disse isso”. Li Tzu acrescentou que conheciam o meu bom coração, mas havia um pequeno detalhe que fazia uma grande diferença: “Não existe atalho para o perdão. Trata-se de uma longa e difícil jornada de crescimento espiritual, realizada passo a passo. Não se chega ao destino sem atravessar cada um dos abismos do Caminho. Para atravessá-los se faz necessário, ora construir pontes, ora desenvolver as asas. Nenhuma dessas condições pode ser inventada. Embora seja primordial, a vontade é a virtude que o impulsionará por toda a viagem, mas por si só não basta. Como toda autêntica conquista, exige muita elaboração, ao se permitir novos entendimentos e inevitáveis transmutações, que se completará através de uma genuína mudança de postura, concretizada pelos movimentos que irá realizar no mundo”. Eu conhecia a teoria, mas não compreendia como se aplicava àquela situação. Insisti que as minhas intenções eram as melhores. 

O mestre taoísta explicou: “A virtude do perdão é parte fundamental na arte da construção de si mesmo. A obra na qual cada indivíduo precisa se erguer em força e equilíbrio. Do contrário, não alcançará uma existência plena em amor, felicidade, dignidade, liberdade e paz. No máximo, conseguirá o desfrute de alguns poucos momentos. No entanto, à medida que se começa a percorrer a estrada do perdão, os períodos de plenitude também se fazem cada vez mais constantes e intensos, até que preencham os dias por inteiro. Para consagrar o perdão, ou seja, para torná-lo sagrado em si, ou consigo, como um autêntico poder de luz e de cura, se faz necessário entender as sutilezas dessa valiosa virtude”. Fez uma pausa para ressaltar: “Lembre-se, as virtudes, como perfeitas conjunções de amor com sabedoria, exigem constantes escaladas de entendimento”. 

Interrompi para me defender. Argumentei que não tinha feito nada de errado. Caso as minhas suposições tivessem se confirmado, eu teria duas opções básicas. Acolher ou virar às costas para o Ronaldo. Abandonar aquele que me era desafeto em um momento de extrema dificuldade seria gesto de vingança vulgar, uma atitude que não fazia parte da minha paleta de cores. No acolhimento, eu construiria a ponte para atravessar o abismo que nos separava. Foi Heitor quem me mostrou o equívoco do raciocínio: “Sim, se tivesse acontecido, sem dúvida, seria uma atitude de muita nobreza da sua parte. Esta conversa não aconteceria, pois inexistiria qualquer engano. Porém, não aconteceu. A vida, em sua mestria, nem sempre de fácil compreensão, mostra que a sua lição é outra. Para se ter asas, se faz necessário que antes tenha construído a ponte”. Falei que continuava sem entender. 

Li Tzu esclareceu: “O problema reside nos seus desejos. Eles demonstram uma fraqueza intrínseca que, em verdade, furtam o poder que você gostaria de ter, mas ainda não conquistou. Não espere que a vida seja cúmplice desse comportamento. Ninguém tem permissão para sobrevoar um abismo antes de estar apto a atravessá-lo pelas pontes que ergueu”. Lamentei que a conversa mais parecesse um jogo de enigmas. Entretanto, sem me escusar a decifrá-los, argumentei a desnecessidade das asas para ultrapassar um obstáculo que já foi vencido com as próprias pernas, através da ponte construída pela vontade de acolher o Ronaldo. O mestre taoísta, com seu jeito doce, porém, firme, me desconcertou: “Por qual motivo você acredita já ter construído a ponte?”. A vontade de carregar o meu sócio nos braços, com todas as dificuldades e incompreensões que ele traz, respondi. Li Tzu me surpreendeu: “Este é um engano que, pelo conforto que proporciona, impede o crescimento das suas asas”. 

As palavras sumiram diante do redemoinho que fazia os meus pensamentos escaparem. Isto acontece todas as vezes que precisamos restar esvaziados para que se abra lugar às novas ideias. O mestre taoísta começou a me mostrar as nuances desconhecidas do perdão: “Ao tentar evitar o principal enfrentamento com que teria de lidar para desfazer as mágoas que existem entre os dois, ou seja, que cada um fosse capaz de se ver como objeto ao invés de somente se comportar apenas como observador, você desejou que a vida colocasse o Ronaldo em situação de inferioridade, na qual ele passaria a depender da sua boa vontade. Então, você se tornaria o herói generoso que mostra o bom coração ao malvado inimigo derrotado. Personagens imaturos de um filme tosco”. Fez uma pausa para ressaltar: “Não haveria superação, mas supremacia”. 

Heitor concluiu: “Faltaria beleza, sobraria opressão; nenhuma maturidade, apenas fragilidade”. Em seguida, finalizou: “Sem pontes, nada se asas”.

Calei-me. Havia ali uma verdade desconfortável que eu não conseguia entender. Ele me explicou: “Em regra, na construção de uma ponte, a obra se inicia em cada uma das extremidades para que terminem por se unir no meio do trajeto. Na prática ideal do perdão, movimentos simultâneos das partes envolvidas permitem a travessia de um lado para outro, superando o abismo de mágoas. São pontes existenciais que levam corações afastados por ressentimentos a se reencontrarem. Embora necessitem de pelo menos quatro mãos para que a obra chegue ao resultado ideal, não raro, quando há boa vontade e já se consegue desmanchar o orgulho e a mágoa através da humildade, da simplicidade e da compaixão, ao perceber o movimento de um dos lados, o outro lado se anima a iniciar a parte que lhe cabe na construção da ponte. O perdão se completa”. 

Fez uma pausa para acrescentar: “Claro que durante esse valiosíssimo empreendimento, repleto de amor e sabedoria, cada indivíduo se moverá com a exata desenvoltura alcançada pela sua alma. Isto determina o tempo da construção e a robustez dos pilares que suportarão a intensidade do tráfego para o futuro do relacionamento. Somente pequenas bicicletas ou enormes caminhões de carga repletos de afeto, compreensão e solidariedade. Cidades simbólicas que se firmaram como capitais do mundo em momentos distintos da História, como Veneza ou Nova Iorque, teriam sucumbido em isolamento sem as suas emblemáticas pontes. Não é diferente com as pessoas”. Depois, lembrou: “Mais do que aproximar um coração distante, a ponte do perdão é condição sem a qual nenhum viajante estará autorizado a prosseguir na jornada rumo à luz”.

Questionei o fato de algumas vezes, em outras relações, eu ter erguido a ponte pelo lado de cá e, apesar de ter completado metade do projeto, não houve qualquer movimento da parte de lá. Heitor sorriu, como se esperasse a pergunta, e esclareceu: “Ninguém pode ficar esperando a boa vontade ou a evolução alheia para seguir viagem. Quando acontece como você exemplificou, de todos os esforços terem sido feitos com sinceridade e despido de qualquer vaidade, na tentativa de que uma relação seja pacificada, o amor e a sabedoria aplicados o permitirão voar sobre o abismo do ressentimento. Não seria justo que uma pessoa não pudesse seguir em frente somente porque a outra não quer sair do lugar. Dependências significam atrasos; a liberdade é aspecto evolutivo”. 

Embora eu nada dissesse, naquele momento compreendi com perfeita clareza a razão pela qual não existe liberdade sem perdão. As emoções densas são celas existenciais de paredes apertadas. Heitor tornou a me alertar: “No entanto, sem pontes, nada de asas. Não se conquista o maisantes de esgotar o menos”. 

Eu precisava de silêncio e quietude para alcançar algumas das muitas zonas desconhecidas da consciência. Conseguir ouvir a voz sem palavra da alma. Chegar à essência para encontrar o equilíbrio sereno da força suave.

Li Tzu me encaminhou à sala de meditação. Disse para eu ficar pelo tempo que achasse necessário. As aulas somente se iniciariam no dia seguinte. Demorei um pouco para me desligar do entorno e da ansiedade. Tranquilizei o coração e a mente para que houvesse condições de a alma, sempre tão sutil, vir ao encontro do ego que, quando agitado, não a percebe próxima. Comecei por relembrar os conceitos que eu já sabia sobre o perdão. Depois, recordei cada uma das desavenças com Ronaldo. 

Agora aplique o seu conhecimento para costurar os desentendimentos, como um alfaiate coloca o molde do saber sobre o tecido da vida. Haverá partes desencaixadas. Aí está o segredo e o ouro. Estranhei aquelas palavras não ditas. No mais, alguma coisa naquela ideia me escapara. 

Na dificuldade do encontro, no qual cada um sairia de onde estava para chegar em um lugar desconhecido a ambos, exige doses elevadas de humildade, simplicidade e compaixão. No caso, seria bem mais fácil subjugar o Ronaldo ao meu orgulho e vaidade. Mais grave, desejei que a vida fizesse o serviço sujo por mim. Isso me fez imaginar o acidente ou a enfermidade súbita. Torná-lo meu dependente era obrigá-lo a me aceitar nas condições que eu imporia a ele. Não há nenhum amor, apenas dominação e humilhação. Isso não era uma ponte, tampouco me faria uma pessoa melhor; porquanto, nunca me permitiria conquistar as próprias asas. Envergonhei-me pela maneira rasa pela qual imaginei resolver aquela relação problemática. Senti-me mal.

Não se martirize nem se maltrate, não existe sabedoria em agir assim. Recomece de onde se perdeu no Caminho. Faça do erro um mestre. Assuma um compromisso com a verdade; estabeleça a profundidade com que você mergulhará dentro de si e defina a amplitude que se moverá pelo mundo. Essa responsabilidade é a intensidade da luz que levará consigo onde quer que vá.Faça diferente e melhor daqui em diante. Sigamos sem dor nem medo. Que o amor seja nossa estrela-guia!”. 

Embora estivesse só, eu não estava sozinho naquela sala. Não havia qualquer dúvida de onde vinham aquelas palavras sem voz. Era eu comigo mesmo. Tudo ficava mais simples, não necessariamente mais fácil. Para conhecer uma camada mais elevada do perdão era preciso vasculhar as profundezas desconhecidas de quem eu nunca fui. Para tanto, as virtudes basilares do Caminho se mostravam essenciais. Compaixão para entender amorosamente não apenas as dificuldades do Ronaldo, mas principalmente para conseguir lidar com as minhas próprias incompreensões. Humildade para colocar os valores da alma à frente do conforto desejado pelo ego ainda imaturo e, portanto, orgulhoso. Simplicidade, pela qual eu teria de me despir da vaidade, das máscaras e personagens criados para ocultar de mim quem eu verdadeiramente era. Usamos mil fantasias, uma para cada situação vivida. No trabalho, nos romances, na família, entre amigos e diante de estranhos. A mais imperceptível delas é a que vestimos para olhar no espelho. É também a mais cruel por ser aquela que mais nos afasta de quem verdadeiramente poderíamos ser, adiando por tempo indeterminado as inevitáveis transformações que temos de realizar. Enquanto acontece, a vida se esvai sem sentido pelos ralos dos dias.

Era preciso me libertar das falsas estruturas proporcionadas pelo orgulho e pela vaidade para enxergar tanto as faltas quanto os excessos cometidos, do contrário, jamais aprenderia o que eu não sabia. Aceitar as diferenças sem nenhum engano e culpa, mas com sinceridade e compaixão. Haveria erros e acertos de ambas as partes. Mais de um lado, menos de outro, de nada importava naquele momento. Valia o entendimento sem o qual faltaria conteúdo para a indispensável transmutação. Um novo molde para o mesmo alfaiate.Em mim comigo mesmo; embora fosse eu, seria possível me tornar outro. Esse é o movimento que nos faz encontrar os poderes ocultos da existência. Eis o segredo e o ouro.

Aceitei que muitas das confusões com o Ronaldo eram porque eu queria que minhas vontades e ideias prevalecessem, pois enganado pelo orgulho e pela vaidade, acreditava que dentro de uma agência de publicidade o setor de criação era mais importante do que a área comercial. Ledo engano. A falência do fígado faz o coração parar de pulsar. Porém, havia em mim doses incompreendidas de frustações originárias de uma infância complicada que eu tentava compensar nas minhas relações profissionais. Eu precisa me abraçar; eu necessitava do meu próprio perdão. De outro lado, Ronaldo também tinha as suas dificuldades e incompletudes. Muitas. Diferentes das minhas, nem por isso melhores ou piores, porém, relacionadas ao seu processo evolutivo. Existia entre nós mais semelhanças do que diferenças. Havia muitas dores incompreendidas. Assim como eu, ele precisava de compreensão, paciência e carinho. Éramos dignos de mútua compaixão. Ambos tínhamos um bom coração, porém, bastante bagunçado. O raciocínio acabava corrompido por toda essa desordem. Então, a semente dos conflitos encontrava solo fértil para germinar. Chorei muito. Chorei como quem se purifica e se perdoa. 

Consegui ver o Ronaldo com clareza a partir do momento que compreendia quem eu não era. O senti muito próximo de mim. Chorei ainda mais e, em silêncio, disse que o perdoava e pedi que fizesse o mesmo por mim. A honestidade do ato oculto me permitiu o gesto inicial para a construção da ponte. Eu sabia que depois teria de realizar outros movimentos, mais evidentes e perceptíveis por ele. Alegrei-me pela oportunidade gerada. Sorri. 

Veio-me à mente que talvez o Ronaldo não pensasse assim, talvez não quisesse uma aproximação além das formalidades profissionais. Era um direito dele. Não importava, eu continuaria a querer o seu bem; ele precisava estar bem. Naquele instante entendi que se eu quisesse crescer tinha de conseguir lidar com grandes dificuldades. Ainda bem que o Ronaldo estava são e salvo. Quanto mais saudável fisicamente ele estivesse, maiores seriam os empecilhos que ele poderia opor. Caso acontecesse, maior o conhecimento sobre as minhas próprias capacidades me seria proporcionado. Assim nascem as asas.

Ao aprender a lidar com ele, sem o machucar, mas também sem me ferir, eu conseguiria despertar toda a minha força e equilíbrio. Amai os vossos inimigos. O Ronaldo não estava ali para me atrapalhar, mas para impulsionar a minha evolução. E eu a dele. Ainda que ele não soubesse.

Eu tinha entendido o que fazer. Construir pontes para um dia conquistar asas. Muda-se a equação para alterar o resultado; eu sou a equação da minha vida. Eis a origem de todo o poder.

Fiquei ali por um tempo que não me dei conta. Quando retornei, o dia amanhecia. Encontrei Li Tzu na cozinha, recém-acordado, colocando ervas em infusão para o chá matinal. Ao me ver feliz, sorriu sem dizer palavra. Fez um gesto com o queixo para sentar-me à mesa. Não demorou, Heitor chegou da estalagem para se juntar a nós. O mestre taoísta nos serviu. Sem que precisassem perguntar, falei sobre as conclusões permitidas por tantas horas de reflexão. Ao final, comentei que nada havia de errado com as pessoas nem com a vida. Nunca há. Todos os conflitos têm origem nas incompreensões internas que projetamos nos outros; estar certo ou errado é uma questão relacionada ao ego imaturo, sem tanta importância à alma desperta. Esta era a estrada que me cabia percorrer naquele momento. Li Tzu disse sim com a cabeça e comentou: “Muitos menosprezam a importância do perdão para a liberdade e para a paz como movimento de evolução”. 

Em seguida, como se adivinhasse o diálogo intrínseco que tive comigo mesmo na noite anterior, ele concluiu: “A vida é como uma alfaiataria da qual não devemos desistir caso o tecido das relações pareça longo ou curto demais. Existe um desenho singular para cada peça, estilo ou confecção. Em verdade, nada sobra ou falta. Seja criativo. Modele, corte e costure com delicadeza e sensibilidade. Assim estabelecemos a leveza e a elegância da alma”.

5 comments

Fernando janeiro 19, 2022 at 1:10 pm

gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem fim…
(amei a analogia)

Reply
Rafaela Oliveira janeiro 20, 2022 at 1:01 pm

Eu vivi esse texto…Gratidão

Reply
Terumi janeiro 20, 2022 at 8:12 pm

Gratidão 🙏

Reply
Yuri janeiro 25, 2022 at 12:36 am

Perfeito

Reply
LMOON janeiro 26, 2022 at 4:33 pm

Grata por tamanha sabedoria confeccionada pela alma 🧡

Reply

Leave a Comment