MANUSCRITOS VII

A prova

O agradável aroma de café se misturava ao do couro no ateliê do Loureiro, o sapateiro amante dos vinhos e dos livros que costurava ideias com a mesma mestria com que confeccionava bolsas e sapatos. Depois de um sincero abraço de boas-vindas, sentamo-nos ao balcão diante de duas canecas fumegantes de café recém-coado. O dia ainda amanhecia. Comentei que achava linda e charmosa aquela pequena cidade. O meu encanto maior eram as suas ruas estreitas e sinuosas. Ele sorriu e pontuou: “Como algumas escolhas que realizamos em situações delicadas de nossa existência. Estreitas em razão das dificuldades; sinuosas porque, por vezes, temos de mudar a rota para nos manter no rumo”. Silenciei-me para que prosseguisse no raciocínio. Loureiro entendeu o meu pedido sem palavra e disse: “Há momentos que compreendemos que as estradas que percorremos sempre nos levam aos mesmos lugares. Precisamos ir além. Todos precisam. Então, a mudança se impõe. Quando a negamos, somos tomados pelo mofo dos dias. Há situações que, embora o caminho esteja correto, o que nos impede de avançar é a maneira que nos acostumamos a andar. Um jeito de se mover que pode ter sido útil até aqui, mas para seguir em frente será preciso encontrar um modo diferente de caminhar. Entender quais transformações são necessárias ficará sempre ao encargo do viajante. Há de haver lucidez. Senão, permanecerá estacionado na insistência das próprias incompreensões”.

Falei que o significado das palavras era muito importante para mim, pois me permitia um melhor uso dos conteúdos que possuem. Indaguei como o sapateiro interpretava conceitos como lucidez e insistência. Antes que me respondesse, fomos surpreendidos pela entrada de Teresa, uma das sobrinhas de Loureiro. Eu já a conhecia. Era uma mulher alta, com longos cabelos negros, uma postura e um tom de voz de quem desde cedo assumiu a autonomia sobre a própria vida, decidindo e se responsabilizando pelos seus atos e sentimentos. Contudo, naquela quase manhã tinha os olhos inchados de tanto chorar, além de apresentar olheiras de uma noite mal dormida. É difícil ser forte o tempo todo. Depois de acomodada ao nosso lado no balcão, e devidamente municiada de uma caneca com café, estava pronta para iniciar o necessário combate que a aguardava dentro dela. Teresa se casara muito jovem com Gustavo após terminarem a universidade. Logo no primeiro ano se tornou mãe de Cláudio, um lindo e travesso menino. Ocorre que, cinco anos depois, recebeu uma proposta que considerou irrecusável, tanto no aspecto financeiro como no profissional. Tanto receberia um salário bem maior como também teria a oportunidade de galgar importantes degraus em sua carreira. Não apenas sonhara com esse momento, mas se prepara para ele. Estava pronta e a hora havia chegado. Contudo, Gustavo se recusou a acompanhar. Gostava da pequena cidade que moravam, com uma rotina bem diferente da metrópole que passariam a viver. Ele tinha um pequeno negócio do qual não tinha intenção de se afastar. Diante do impasse, optaram por uma solução intermediária. Teresa aceitaria a proposta, enquanto Gustavo ficaria. Por ora, Cláudio, ainda em tenra idade, ficaria com o pai. Entenderam que até atingir a adolescência, quando seria interessante aprimorar os estudos em escolas mais capacitadas, residir em um lugar tranquilo teria um importante papel na formação da sua personalidade. A família se encontraria nos fins de semana, vez que a distância entre as cidades era de pouco mais de três horas em viagem de carro. De início, tudo funcionou a contento. Com o passar dos meses os encontros começaram a se espaçar. Os motivos, ou desculpas, eram vários. Reclamações e insatisfações, de parte a parte, espocavam. A família de Gustavo engrossava as críticas ao comportamento e escolhas de Teresa, escalando o nível do conflito. Como se não bastasse, alguns familiares de Teresa, com os quais o seu relacionamento nunca fora dos melhores, reforçavam o clima tenso e desfavorável a ela, julgando o que não lhes cabia julgar por falta de competência, atribuição ou direito. Um ano depois, Gustavo se envolveu afetivamente com uma moça, e pediu o divórcio. Disputaram a guarda do filho. Como Cláudio já morava com o pai, a decisão judicial foi que permanecesse com ele.

Sentindo-se isolada, Teresa sofreu muito, pois, embora residisse em outra cidade, até então tivera a liberdade para estar com o filho sempre que quisesse. Situação que restara limitada às datas determinadas em sentença. As brigas se intensificaram. Comentários depreciativos sobre o comportamento da mãe foram proferidos na frente do garoto ainda bastante imaturo. Segundo Teresa, o menino crescera com a opinião formada pelos adultos que o cercavam no dia a dia, o que acabara contaminando as suas memórias afetivas. Cláudio acreditava que fora abandonado pela mãe por ela ter preferido seguir com a carreira profissional ao invés de ficar em sua companhia. O que existia na aparência não representava, em essência, o sentimento de Teresa ao realizar a escolha à época. Fatos não são somente fatos; todos exigem contextos, circunstâncias e interpretações, pois nem sempre intenções e sentimentos emergem à superfície diante dos olhos de uma multidão incauta, ávida por julgar e condenar sob qualquer pretexto e oportunidade. O relacionamento de Teresa com toda a família de Gustavo, e parte da sua, se tornou ainda mais difícil. Ninguém se mostrou capaz de saber lidar com interesses conflitantes e nem sempre sensatos face as emoções tensas que eclodiam a cada momento. Todos se sentiram à vontade para opinar, mesmo sem serem convocados a isto. O menino cresceu ardendo nessa fogueira de insensibilidades. Teresa foi massacrada; e se viu isolada na luta para não perder o afeto do filho que tanto amava. Como era uma mulher determinada em seus propósitos e não estava disposta a renunciar ao amor como valor essencial à vida, prosseguiu na luta. Chegada a adolescência, quando acreditava que o filho seria capaz de reconstruir o olhar sobre o passado, nada mudou. Cláudio se recusou a morar com mãe e a frequentar escolas melhores como o planejado; optou em continuar com o pai, a quem considerava um herói por ter se dedicado à sua criação e educação. Outros dez anos se passaram de buscas infrutíferas e recorrentes desencontros. Cláudio se tornou um jovem adulto bonito, alegre, inteligente e comunicativo. Como na cidade que morava não havia universidade, não se graduou. Cláudio se sustentava da pensão que a mãe ainda enviava mensalmente, apesar de já desobrigada face a sua maioridade. Rotineiramente adiava os seus projetos profissionais. Todos os movimentos de Teresa para tornar mais próxima a sua relação com o filho esbarravam em um muro erguido pelo rapaz, como se um relacionamento mais profundo com a mãe fosse proibido. Ora, ele parecia amar a mãe; ora, a rejeitava sem motivo aparente. Nas poucas vezes em que estavam juntos, conversavam sobre vários assuntos, se entendiam bem e riam bastante; noutras, apesar dos convites e ofertas para estreitar a convivência, ele se recusava a dar o passo seguinte. Depois de acertar com Cláudio, Teresa conseguiu na empresa em que trabalhava um excelente emprego para o filho, ao menos para quem não possuía formação nem experiência profissional. Permitir-se novas experiências era uma oportunidade para o rapaz se conhecer melhor, aprimorar a sua personalidade, adquirir responsabilidade e autonomia, além da possibilidade de se aproximar e desfazer a imagem desfocada que sempre possuíra da mãe. A intimidade faz emergir a essência e, por isto, o amor aprecia e se aperfeiçoa no convívio. Apesar do combinado, o rapaz não apareceu para trabalhar no dia acertado. Nem deu qualquer satisfação. Confessou não mais saber o que fazer para melhorar a relação e se aproximar do filho. Talvez só restasse admitir que perdera a batalha. Definitivamente.

Loureiro franziu as sobrancelhas, como se quisesse avisar que aumentaria tom de seriedade da conversa, e avisou: “Só perde a batalha quem perde a si mesmo ao permitir que o desalinho dos acontecimentos apague a sua luz”. Teresa se confessou incapaz de enfrentar tantos inimigos na figura dos familiares que, por não simpatizarem com ela, alimentavam ideias e sentimentos insalubres no filho. A dificuldade aumentava no fato de Cláudio amar e admirar essas pessoas. Estava diante de uma luta inglória, declarou. O sapateiro a corrigiu: “Nisto reside o erro primordial que, se não for entendido e corrigido, impedirá a construção de um novo e diferente relacionamento com o seu filho”. Fez uma pausa para ressaltar as palavras que viriam e a lembrou: “A sua batalha não é contra qualquer outra pessoa, seja parente ou não; tampouco contra o seu filho, ainda que pese o comportamento arredio, confuso e pendular dele. Trata-se de você com você mesma. A luta é travada em seu âmago. Tão e somente”. Teresa se irritou como se não estivesse sendo compreendida e retorquiu argumentando o quanto todas essas pessoas atrapalhavam a sua relação com o filho. Loureiro deu de ombros e salpicou: “Ainda bem”. O olhos da sobrinha se arregalaram de indignação. O sapateiro se adiantou em explicar: “Quem acredita que cada obstáculo, sem importar o quão complicado seja, é uma batalha que se resume em vitórias quando convence os outros a ceder à sua vontade, ou de derrotas quando isso não acontece, ainda está distante de entender o teorema da vida. Ninguém vence ninguém. Cada um supera a si mesmo. Do contrário, jamais conhecerá qualquer vitória”. Teresa ponderou que se não houvesse tantas pessoas atrapalhando, tudo seria mais fácil. O tio sorriu e contra-argumentou: “A vida não quer que seja fácil. Trata-se de uma prova existencial e, como tal, é indispensável que seja difícil. Pois, do contrário jamais conseguirá aprimorar o olhar, conhecer outros pontos de vista, descobrir inusitadas possibilidades, encontrar novos caminhos interiores e conquistar mais um palmo de quem você pode se tornar. Nada mais se traduz em evolução. O amor não se resume em apenas amar. O amor tem graduações de amplitude e profundidade. A sabedoria maior consiste em aprender a amar mais e melhor. Ninguém conseguirá isso se não for sacudido, desafiado e instado a se movimentar em busca de impensadas equações internas para melhor se mover pelos dias.  Somente assim encontrará as passagens existenciais escondidas por entre os empecilhos dos relacionamentos e os obstáculos dos acontecimentos”. Tornou a fazer uma pausa e acrescentou: “Todas essas pessoas que aparentemente impedem o seu relacionamento com o Cláudio, embora não saibam nem seja essa a intenção delas, estão colaborando para que encontre os caminhos e as soluções que ainda desconhece dentro de si mesma. Depois, bastará se manifestar por intermédio de um novo e aprimorado jeito de ser e viver. A autêntica função delas não é bélica, porém, pedagógica. Elas são fundamentais ao seu mestrado. Agradeça!”.

Teresa balançou a cabeça como se não acreditasse no que ouvia e, não sem uma pequena dose de ironia, perguntou se deveria reverenciar essas pessoas por atrapalharem o seu convívio com o filho. Loureiro não se abalou com o sarcasmo e respondeu com calma e honestidade: “Exatamente”. Em seguida, esclareceu: “Sem a oposição delas você continuaria sendo a mesma pessoa, insistindo em hábitos e vícios comportamentais que não mais a ajudam a sair do lugar, perdendo a chance de se aperfeiçoar e evoluir. Ninguém muda a rota enquanto os ventos favorecem. Entenda a convocação feita pela vida para que você possa ir além de quem se tornou. Sim, agradeça por essa oportunidade, assim como pela responsabilidade oferecida: a vida entende que você está pronta para esse movimento angular, pois, do contrário, jamais a chamaria para realizar uma jornada sabendo de antemão que não a completaria. Aproveite!”.

A sobrinha lembrou a dificuldade decorrente do comportamento pendular do filho; ora se mostrava afetuoso, ora a refutava. Não sabia mais o que fazer, se é que depois de tantos esforços ainda cabia fazer algo. Por vezes, cogitava não mais insistir. Loureiro a corrigiu: “Não se trata de insistir, mas de persistir. A insistência é fruto da teimosia, uma inútil tentativa de prosseguir por um caminho sem saída. A persistência se caracteriza por jamais desistir diante das dificuldades, ainda que sejam enormes. Sós os tolos e insensatos desistem do amor. De diferentes maneiras e graus, o amor é o grande desafio da vida de todos nós. Aprender sobre o amor equivale a mudar o jeito de caminhar, um movimento que tem o poder de pavimentar estradas esburacadas.”. Fez uma pausa e acrescentou: “Lembre que quanto maior o problema, mais mérito há em o solucionar”. Olhou firme para os olhos de Teresa e disparou: “Somente os viajantes mais preparados estão em condições de enfrentar a travessia dos grandes abismos existenciais”. Fez uma pausa antes de repetir: “Agradeça e aproveite a oportunidade”.

            Loureiro continuou: “O comportamento pendular do Cláudio se deve ao conflito interno que vive. De um lado, o amor pela mãe; de outro, uma suposta dívida afetiva que acredita ter com pessoas que não simpatizam com você. Qualquer movimento para se aproximar é revertido repentinamente pelo inconsciente ao ouvir uma palavra ou presenciar um gesto capaz de disparar a armadilha emocional que o aprisiona. Acredite, ele é quem mais sofre com essa situação”. Teresa ouvia o tio com atenção. O sapateiro explicou: “Você está diante de um prova angular. Pouco a pouco, a vida nos prepara para momentos assim, nos capacitando com virtudes e olhares capazes de tornar possível a superação sobre quem éramos. Não temos nenhum controle sobre qualquer resultado que dependa da reação de outras pessoas, mas temos domínio absoluto sobre as nossas ações. Então, a genuína vitória não reside no resultado esperado, mas na ação virtuosa”. Aflita, a sobrinha retrucou que não fazia ideia de como agir. Loureiro a acalmou: “O caminho percorrido até agora já se mostrou ineficaz. Faz-se indispensável encontrar uma nova rota para se manter rumo ao encontro desejado. Um movimento que por você acreditar desconhecer, talvez procure nos livros, talvez busque pelos conselhos de pessoas mais experimentadas. Contudo, essa resposta não será disponibilizada por ninguém, tampouco a encontrará em lugar nenhum. A solução a aguarda dentro de si. A vida quer que aprenda a ouvir e a confiar na sua voz interna. Trata-se de um poder incomensurável e acessível, desde que consiga se despir dos condicionamentos que a viciaram a olhar somente em uma direção e a insistir no automatismo das reações desgastadas. Faz-se indispensável reconstruir os bons sentimentos a partir dos escombros emocionais e regenerar a capacidade de pensar se valendo de um intenso diálogo interior. Somente assim conseguirá reelaborar as experiências vividas com lentes e filtros nunca utilizados e, então, reinventar um novo jeito de se mover pela vida. Quem você é a trouxe até aqui, mas não a conduzirá adiante. Essa é a mensagem oculta em todos os abismos existenciais. A mudança se impõe. Os sinais são evidentes. Transmutar-se é erguer pontes intrínsecas que a levarão a lugares e tesouros desconhecidos. Todos dentro de você. Senão, continuará à margem da própria vida. É chegada a hora de conquistar mais alguns territórios interiores e conhecer melhor o poder da sua luz”.

Teresa disse que aquelas palavras eram muito bonitas, mas não a ajudavam a encontrar nenhuma solução. Loureiro parecia esperar por aquela reação e explicou: “O conhecimento serve como um mapa ao autodescobrimento para ajudar a encontrar o padrão comportamental que nos impede de fluir pelos dias com mais força e equilíbrio, de atravessar por entre os obstáculos com leveza e suavidade”. A sobrinha confessou que naquele momento precisava de ajuda. Perguntou se o tio poderia a auxiliar de modo mais objetivo. O sapateiro fez sim com a cabeça e a questionou: “O que mais a incomoda fora o fato de não conseguir estabilizar a relação com o Cláudio?”. Teresa respondeu que era fato de manter a mesada do filho, sendo ele maior de idade, sem estudar ou trabalhar. Loureiro disse que continuaria com algumas perguntas, mas que Teresa não respondesse sem antes pensar um pouco e que fosse a mais sincera possível: “Por que essa ajuda financeira a deixa desconfortável?”. A sobrinha disse que o incentivava a fugir da responsabilidade sobre a própria vida, adiando o seu processo de amadurecimento e autonomia, deixando um legado de leniência e dependência, dificultando que ele conhecesse o próprio valor e capacidade. O sapateiro prosseguiu na sequência lógica: “Por que continua a fazer algo que considera errado?”. Medo, confessou Teresa. Ela temia dar motivos para que todos os antagonistas a acusassem de abandonar o filho mais uma vez, de não se importar com ele, de dar as costas ao rapaz, entre outras maledicências semelhantes. Como eram pessoas que Cláudio costumava escutar, pois as admirava, receava perder definitivamente aquele que tanto amava. Sentia-se refém destas circunstâncias.

Loureiro seguiu com a bateria de perguntas: “É possível perder o que não se tem?”. A sobrinha abaixou a vista como quem admite que o modelo de relacionamento que mantinha com o filho era tão insatisfatório que não fazia sentido temer um eventual e quase insignificativo retrocesso. O sapateiro a fazia pensar: “Vale a pena renunciar a verdade diante das opiniões alheias, mormente quando essas vozes se mostram poluídas por emoções desequilibradas?”. Teresa fez menção em falar, mas as palavras se engasgaram na garganta e nada disse. Ela respirou fundo, abaixou a cabeça e começou a chorar. O tio se levantou e a abraçou carinhosamente por longos minutos. Transbordar em lágrimas é importante para deixar sair o peso da dor e abrir espaço para novos sentimentos e ideias. Mais calma, pediu para que continuassem a conversar. Estava sendo importante. Teresa começava a desconfiar que todas as respostas a aguardavam dentro dela. Apenas precisava de coragem e lucidez para as aceitar, admitiu. O tio disse sim com a cabeça e acrescentou: “A lucidez se inicia na clareza do olhar, se alicerça na aceitação serena da realidade desconfortável e se completa na firmeza de nunca renunciar a verdade mesmo quando diante das maiores dificuldades. Ainda que os custos emocionais a princípio sejam altos, existe a certeza de que se justificarão ao longo da viagem. A lucidez evidencia a essência didática da vida”.

Em seguida, prosseguiu: “Qual é a coisa certa a fazer?”. Teresa pensou por alguns instantes e disse que se continuasse agindo do mesmo modo apenas procrastinaria o problema, limitando ideias, envenenando sentimentos e arraigando comportamentos equivocados, aumentando a dificuldade com o passar do tempo, sem jamais resolver o problema. Aquele caminho sempre a levaria a um lugar desagradável. Enxugou a última lágrima e admitiu que precisava convidar o filho para uma conversa. Há muito pensava sobre o assunto. Encerraria a mesada em três meses. Definitivamente. Cláudio teria esse tempo para conseguir um emprego ou, se quisesse, estava disposta a montar um negócio com ele. Financiaria o empreendimento, enquanto ele se associaria ofertando a mão-de-obra. Seriam sócios. Deixaria que o rapaz escolhesse a atividade, algo que lhe desse prazer em fazer, enquanto se valeria da sua maior experiência para encaminhar o projeto. Queria colaborar com o crescimento do filho, estagnado havia anos, e o ajudar a se tornar autossuficiente em todos os aspectos da sua vida. O trabalho seria o início de um necessário processo de descobertas, encontros e conquistas internas do rapaz. Ainda mais, serviria como um jardim para que a relação entre mãe e filho pudesse gerar as flores que os aguardava em semente. Uma lágrima rebelde escapou trazendo à tona o genuíno sentimento do seu coração.

Loureiro a alertou: “Está faltando um importante movimento. Qual seria?”. Teresa pensou por algum tempo e falou não saber. O sapateiro retrucou: “Sim, você sabe”. A sobrinha refletiu por uns instantes e disse que possivelmente haveria críticas por parte dos parentes que não simpatizavam com ela; quando as emoções são densas, sempre é possível um olhar depreciativo mesmo diante da melhores atitudes. O tio fez um gesto de aprovação e acrescentou: “Há um importante detalhe. O Cláudio acredita ter uma dívida de gratidão por essas pessoas que ele tanto admira e ama, afinal, cuidaram dele quando você supostamente o abandonou. O comportamento pendular do meu sobrinho se deve ao fato de estar dividido entre as vozes do mundo que a descrevem como uma mãe relapsa e os olhos da alma que a mostram como uma mãe amorosa e interessada. Ele a ama, não tenho dúvida disto. Contudo, traz o sentimento de que ao fortalecer os laços contigo trairá todas as demais pessoas que sempre estiveram ao lado dele. Um sentimento deturpado por ideias tortuosas. Mostrar-se leal a essas pessoas traz a sensação de pertencimento a um grupo que lhe oferece uma falsa ideia de segurança. Em verdade, cada indivíduo só se sentirá integralmente seguro ao conquistar a si mesmo, que em resumo significa dominar as emoções, gerar os próprios pensamentos e se tornar donos das escolhas suas escolhas. Do contrário, seguirá como um joguete nas mãos dos interesses alheios, nem todos bem-intencionados”. Pigarreou e concluiu: “Ninguém deseja o nosso bem ao nos afastar daqueles que nos amam. Comportamentos assim carecem de afeto e honestidade. Contudo, jamais esqueça: a sua batalha não é contra ninguém. Tudo se resume em você consigo mesmo. Os movimentos internos corretos a libertarão dos comportamentos do mundo”. Bebeu um gole de café e acrescentou: “Nessa conversa que terá com o Cláudio, mostre a ele que se relacionar bem com a mãe não significa gesto de traição ao pai. Um amor não anula o outro. O rapaz está aprisionado à crueldade das próprias incompreensões, influenciado pelas emoções insalubres de algumas pessoas ao redor. Ele sofre muito. Embora cronologicamente seja adulto, ainda não possui amadurecimento para se mover com autonomia. Precisa ter as suas ações validadas pelos familiares; quando não acontece, recua por sentir-se inseguro. Não muito diferente, você também está presa ao comportamento dessas mesmas pessoas, como se a sua felicidade dependesse da autorização delas”.

Ficamos algum tempo sem dizer palavra. Segurando a caneca com as duas mãos, Teresa bebia o café em pequenos goles seguidos, absorta em seus pensamentos. Foi ela quem rompeu o silêncio e quis saber do tio o que fazer caso, ao apresentar as novas condições em seu relacionamento com o filho, o rapaz se revoltasse e nunca mais quisesse vê-la. Loureiro balançou a cabeça como quem diz que essa era perguntava que faltava e esclareceu: “Nunca é um tempo que não existe. Em algum momento a vida ordena os acontecimentos para que corações afastados voltem a estar juntos. Inexoravelmente. Sem dúvida, nada garante que o Cláudio irá reagir conforme você espera. Isto não é motivo para sentir medo. Embora você não tenha legitimidade para obrigar ninguém a mudar, tem pleno direito de modificar os padrões do seu relacionamento com quem quer que seja. Inclusive com o filho que tanto ama. Isto não é motivo para conflitos. O amor é pedagógico, pois aprendemos e ensinamos por seu intermédio. Não há mestre melhor. No amor há a hora do sim e o momento do não. Se amar é querer bem, não subsiste razão para renunciarmos à verdade e deixarmos a pessoa amada se prejudicar sem uma oferta honesta de ajuda ou permitir que o seu comportamento continue nos machucando. Faça a coisa certa, continue amando e siga em frente”. Teresa disse não saber se aquela era a hora correta para tomar essa atitude. Loureiro deu de ombros e pontuou: “Como dizia o alquimista de Atlanta, todos os dias são perfeitos para se fazer a coisa certa”. Esvaziou a caneca de café e concluiu: “Perdoe a todos e perdoe a si mesmo para que consiga oferecer o seu melhor, sem qualquer revanchismo ou sentimento que não seja o desejo de querer bem ao Cláudio, ainda que ele demore a compreender as suas boas intenções ou relute em se aproximar. Assim como todas as pessoas, ele se moverá ao tempo da própria consciência. Acredite em você, faça tanto os movimentos internos quanto externos que entender virtuosos e verdadeiros e fique em paz. A vida se encarregará de mexer as peças do tabuleiro das relações para que no momento oportuno todos os corações se encontrem e os caminhos se ajustem. Nada termina aqui ou ali, a vida oferece uma viagem singular conforme o merecimento e a necessidade de cada viajante”.

Teresa pediu mais café. Loureiro também. Enquanto eu fui preparar uma nova rodada, a ouvi admitindo que, embora não tivesse se dado conta, já sabia tudo aquilo que fora conversado. Era como se a verdade estivesse em uma gaveta junto a outras ideias, sentimentos, lembranças, desejos, medos e interesses que, quando misturados, gerava uma enorme bagunça e a fazia confundir uns com outros. O tio a ajudara a arrumar a gaveta. Assim era possível visualizar a verdade para a usar como equação nessa complicada prova proposta pela vida. Ao retornar com o bule de café fresco, pude notar o semblante corado e os olhos radiantes de Teresa, bem diferentes de quando entrara na oficina. Naquele momento tive a convicção de que, independentemente das escolhas do filho, da reação das pessoas ao redor e da enorme dificuldade da prova, Teresa estava próxima da aprovação. Dependia apenas de alguns poucos e simples movimentos que somente ela podia realizar. O prêmio era a paz consigo mesma. Sempre é assim com todos nós. Os problemas se alongam quando insistimos em usar equações desgastadas, em trilhar caminhos que sempre nos levam ao mesmo lugar. Nenhuma incapacidade se resume na impossibilidade de fazer o movimento certo, mas na ausência de lucidez, ou seja, na incompreensão a cerca do poder sobre a própria autonomia e as infinitas possibilidades de caminhar pela vida sem ficar aprisionado ao consentimento de ninguém. Ela agradeceu a conversa, deu um beijo estalado na bochecha do tio e se foi radiante como as pessoas que reconquistam o poder sobre a própria vida. Os seus pés pareciam nem tocar no chão.

8 comments

Ramon janeiro 5, 2024 at 12:59 am

Arigato

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Michelle janeiro 7, 2024 at 1:57 pm

Obrigada!

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CRISTINA BOVI MATSUOKA janeiro 8, 2024 at 1:04 am

Muito bom

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Rodrigo janeiro 8, 2024 at 7:44 am

Gratidão pela energia 🙏✨

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Douglas Dust janeiro 8, 2024 at 6:25 pm

Tomara que tenha dado certo essa conversa com o Claudio e que ambos trilhem o caminho do amor reciproco

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Renan janeiro 17, 2024 at 8:46 pm

Adorei os destaques em outra cor no texto. Muito obrigado. Excelente reflexão como sempre…

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Márcia Campos janeiro 19, 2024 at 11:14 pm

Gratidão sempre ❤️

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Maangoba janeiro 30, 2024 at 2:00 pm

obrigado pela partilha

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