CARAVANA

O vigésimo-sétimo dia da travessia – o veneno do deserto

O falcão ficou um logo tempo planando em círculos, como se apenas flanasse despreocupadamente pelo deserto.  De repente, recolheu as asas para mergulhar vertiginosamente até a areia em ataque fulminante. Trouxe uma serpente em suas garras. Por descuido, um pouco antes de pousar, o réptil lhe escapou. Em frações de segundo, movida por instinto de sobrevivência, a cobra se escondeu dentro de uma pequena toca entre as pedras. Com o falcão pousado na grossa luva de couro que usava no braço esquerdo, o caravaneiro se retirou. Um pouco afastado, com uma caneca de café fresco à mão, eu observava o caravaneiro e o falcão. Acompanhar o adestramento matinal do falcão tinha se tornado parte da minha rotina diária. Em seguida, fiz a minha prece rogando por luz e proteção. O acampamento estava sendo desmontado e logo seguiríamos para mais um dia de travessia. Guardei as minhas coisas, ajeitei o alforje sobre o camelo. Para a minha surpresa, quem tornou a alinhar ao meu lado para a marcha foi a Ingrid, a bonita astrônoma. Animado, puxei conversa. Tive o cuidado de, naquele dia, não polemizar com ela para não acabarmos em discussão como ocorrera outras vezes. Ela era apaixonada por mecânica quântica e quanto à sua aplicabilidade tanto na astronomia como na construção da realidade. Dizia que o nosso cotidiano tem mais em comum com as estrelas do que a nossa tosca filosofia era capaz de imaginar. Agradável e inteligente em seus modos e argumentos, embora eu discordasse de vários deles, ela fez com que a manhã transcorresse mais rápida do que eu desejava. Quando me dei conta, já estávamos no meio do dia, hora que costumávamos parar para um breve descanso e uma refeição ligeira. Desmontamos dos camelos, estendemos um pequeno tapete para sentar e me ofereci para buscar algumas tâmaras com os encarregados da caravana. Ela aceitou com um sorriso. Eu tinha dado poucos passos quando ouvi um grito. Eu sabia que era a voz da Ingrid. Virei-me rapidamente e, ao mesmo tempo que vi a sua expressão de dor, observei uma serpente fugir com impressionante agilidade pelas areias após morder a astrônoma.

Desorientado e aflito, gritei por socorro. Logo várias pessoas se aproximaram. Nervosos, todos falavam ao mesmo tempo. Sem demora, um dos encarregados pela segurança matou a cobra e confirmou o que todos temiam. Era venenosa. Troquei um olhar de medo com a Ingrid. Desejei do fundo do coração que tivesse soro antiofídico na caravana. Pensei que a organização teria o zelo de trazer alguns remédios para situações previsíveis como essa. Claro que teria. Não tinha.

Esbravejei diante da falta de cuidado. Os acusei duramente por negligência. Foi quando o caravaneiro se aproximou. Ele trazia em si uma estranha tranquilidade. Repeti as acusações de maneira ainda mais veemente quando senti que ele não compartilhava do meu nervosismo. Ele me ouviu sem se alterar. Ao perceber que eu não cessaria de reclamar, me interrompeu. O tom de voz dele mesclava firmeza e serenidade: “Tudo que a moça não precisa agora é que percamos o controle da situação”. Falei que não podíamos perder aquilo que não tínhamos; a situação já estava fora de controle e a culpa era dele. Se fossem um pouco mais previdentes teriam o soro na caravana. O caravaneiro se manteve impassível diante das duras palavras proferidas. Em seguida, me corrigiu: “Não tenho como controlar os acontecimentos ao meu redor. É impossível para mim prever e dominar todas as situações externas que podem influenciar a minha vida. No entanto, posso controlar o universo de emoções que me habitam. Tenho como oferecer uma boa razão para acalmar cada paixão que me assola. As tempestades do mundo estão fora do meu domínio; as da alma apenas acontecem com a minha permissão.”

Antes que eu retrucasse, Ingrid me tocou no braço. Em seguida disse que não era hora do medo, mas da esperança. Ofereceu-me um sorriso para alegrar o meu coração. Abaixei os olhos. Ele tinha razão; ela também. Tudo o que não precisávamos naquele momento era do meu destempero. Eu precisava me orientar pelas virtudes ao invés de seguir o impulso das minhas emoções. Em silêncio, lamentei comigo mesmo de não ter tido um comportamento melhor. Eu estudava com o intuito de aplicar o conhecimento adquirido em momentos cruciais como aquele, porém, mais uma vez, deixava escapar a oportunidade. Calei-me.

O caravaneiro pediu para trazerem a serpente. Na frente de todos, abriu o ventre do animal com o seu punhal. Extraiu um líquido viscoso, vertendo-o para uma taça. Depois solicitou que colocassem uma determinada mistura de ervas em infusão. Tudo aquilo era desconhecido para mim. Enquanto aguardávamos, vi a Ingrid quase desfalecer e tentei animá-la. Ela começava a arder em febre. Quando chegaram com o chá, ele misturou ao líquido retirado da cobra. Mexeu com o punhal. Em seguida entregou para a astrônoma beber. Ela não hesitou. Fez uma careta revelando o gosto amargo do elixir.

O caravaneiro orientou aos encarregados que fizessem uma maca para ser transportada entre dois camelos emparelhados. Não queria que Ingrid fizesse nenhum esforço. Mandou que a envolvessem com vários cobertores. Era importante, não só pela febre, mas que ela transpirasse bastante, na esperança que o organismo dela, estimulado pelo elixir, expelisse o veneno pelos poros. Esperei que ele saísse e fui ao seu encalço. Eu queria saber se ela ficaria bem. O caravaneiro foi sincero: “Não sei.” Insisti em saber quais as chances de ela sobreviver. Mais uma vez a honestidade imperou: “Pequenas. Muito pequenas. Aquele tipo de serpente possui um veneno muito agressivo.” Eu não estava pronto para ouvir aquilo. As palavras têm o poder de enfeitiçar, tanto para o bem quanto para o mal. De imediato as emoções se avantajaram e por pouco não tornaram a me aprisionar mentalmente. Tive que fazer um esforço enorme para impedir que elas me dominassem mais uma vez. Embora soubesse que naquele momento seria inútil insistir, não consegui deixar de ponderar que seria prudente que a caravana trouxesse, nas próximas viagens, algumas doses de soro antiofídico devido a grande quantidade de cobras que existem no deserto. Eu queria deixar registrado a minha insatisfação com o que considerava uma falha grave de planejamento. O caravaneiro, talvez por sentir o meu sofrimento, me olhou com profunda compaixão. Havia misericórdia em seus olhos. Ele explicou: “Não foi por esquecimento. A razão é outra e bem simples. O soro precisa estar refrigerado para não estragar. Seria difícil transportar uma geladeira na caravana; impossível mantê-la ligada. Este é o motivo.” Ele tinha razão. Calei-me. O caravaneiro aconselhou: “Mesmo que tivesse ocorrido um erro, não é hora de desperdiçarmos energia, tempo e tranquilidade com o que não foi feito. O momento é de concentrar esforços naquilo que podemos fazer; nas soluções possíveis.” Ele concluiu: “Fizemos tudo o que sabíamos. Agora temos que formar uma corrente de pensamentos bons em torno da moça. Oferecer o nosso coração para que, unidos, sirvam de alicerces para ponte pela qual os bons espíritos do deserto irão transitar. Quanto maior o amor, mais carga a ponte conseguem suportar.” E me deixou um aviso: “Uma boa ponte tem o tráfego interrompido quando um dos seus pilares se mostra frágil. É como cortar o fio condutor para interromper a passagem da eletricidade. Quem não se achar firme o suficiente para manter o fluxo energético entre as dimensões que se afaste neste momento. É também um jeito de ajudar.” E saiu.

A caravana retomou a marcha. Preocupado, alinhei o meu camelo logo atrás dos camelos que transportavam a Ingrid na maca. As palavras do caravaneiro não me saiam da cabeça; eu tinha alguma dificuldade de alcançar a extensão delas. Ideias e emoções duelavam dentro de mim. Ao mesmo tempo em que eu desejava a cura da astrônoma, eu tinha dificuldade em acreditar que aconteceria. As condições eram muito precárias. Foi quando fui surpreendido por uma voz: “O que determina se o andarilho prosseguirá na jornada não são as intempéries da estrada, mas o poder que ele traz consigo. As batalhas de um guerreiro não se definem na sua destreza com a espada, as vitórias nascem na mente. Para vencer não se pode temer a derrota; para se viver, ao menos com a intensidade que a vida merece, não se pode temer a morte. A vida se molda na consciência.” Era a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli. Ela emparelhou o seu vigoroso cavalo negro ao lado do meu camelo sem que eu percebesse.

Brinquei que ela tinha de parar de ler os meus pensamentos. A mulher sorriu e prosseguiu: “Não basta entender, é preciso aceitar; na existência temos o indispensável exercício com a verdade. A verdade se constrói na amplitude da consciência. Ambas são traços de uma mesma régua.”

Eu disse que não tinha entendido. Ela começou a explicar: “Somos bem mais do que os nossos corpos físicos. Somente ao aceitar esta realidade nos será possível viver de acordo com outro nível de percepção. Fora disto, todo o resto é ilusão e cotidiano. Conhecimento, quando aliado à prática, permitem ir, desde que de maneira amorosa, além dos cinco sentidos básicos. É quando deixamos a infância das sensações para conhecer as infinitas possibilidades de outra realidade. Bem menos física, bem mais poderosa.”

“Toda cura tem origem na consciência. Por sua vez, posso ter o inconsciente como aliado ou inimigo, a depender de como será utilizado. O mesmo martelo que utilizo na construção também posso usar na demolição.” Interrompi para falar que o discurso continuava complicado. Pedi para ela explicar melhor. A mulher de olhos azuis teve paciência: “O inconsciente, movido por memórias ancestrais, aprisionado por condicionamentos culturais, responde por nós mais do que costumamos nos dar conta; ele é responsável pelo automatismo de quase todas as reações que temos. Isto faz com que também sirva de limitador às novas possibilidades. O inconsciente, enquanto selvagem e dominador, impede o consciente de se expandir e conhecer todo o seu infinito poder. Educar o inconsciente é primordial para a liberdade da consciência. A amplitude do olhar leva à transformação do ser. A realidade ao seu redor se modifica à medida que você a entende de maneira diferente.”

“Era sobre isso que o caravaneiro falava contigo. A consciência, embora perceptível no corpo físico, está também fora dele. Este é o indício inicial para conhecer novas capacidades ao permitir a interação entre planos de existência. Se a parte mais importante do ser está além do corpo, algumas outras funções vitais também podem ser alteradas fora da esfera física. Claro que vários fatores, como o carma, por exemplo, afetam o resultado pretendido. Pois evolução está intrinsicamente ligada ao aprendizado. Contudo, não veja o carma como um bloqueador, mas como um estimulante. O aprendizado irá movimentar o incomensurável poder que, por ora, está fora de uso, proporcionando uma vida mais plena em liberdade, dignidade, paz, felicidade e amor. Se carma é uma lição ainda não aprendida, ele, em verdade, é um aliado à evolução. É do veneno que se extrai o antídoto para a cura.”

“Para tanto, não se veja como um corpo, mas como um espírito. Não se acredite uma mera matéria andante, porém, uma sofisticada energia pulsante. Está é a diferença entre o estar e o ser; entre o meu e o eu; entre a estética e a ética; entre o finito e o infinito. Você é um espírito que neste momento precisa de um corpo físico para as suas devidas lições evolutivas, principalmente as de ordem emocionais; para entender melhor sobre a força mais poderosa do universo, o amor. Em geral, os espíritos que necessitam de um corpo físico ainda sabem muito pouco sobre o amor. Embora acreditem conhecer tudo sobre o assunto, quase todos são desequilibrados amorosamente. Todos os carmas, direta ou indiretamente, falam sobre o amor. Com forte influência dos sentimentos, somos cada um dos nossos pensamentos. A harmonia daqueles são imprescindíveis ao equilíbrio e à evolução destes. Assim moldamos a realidade através da consciência. Nem mais nem menos.”

“Ideias alicerçadas em sentimentos que se materializam em escolhas. Uma após outra, as escolhas desenham quem sou a cada momento. Emoções equilibradas ajudam a aperfeiçoar as escolhas ao buscar inspiração nas boas virtudes. O exercício das virtudes me aproxima da luz; não há outro Caminho. Aos poucos, a plenitude se instala no ser, mantendo-o além das tempestades mundanas. Assim temos uma vida diferente e melhor daquela na qual fomos educados por padrões que privilegiam o plano material em detrimento às conquistas invisíveis. É a diferença entre as grades e as asas; entre o veneno e o antídoto.”

“A cada fração de segundo emitimos vibrações de acordo com o pensar daquele instante. Os pensamentos formam ondas que navegam pelo espaço gerando efeitos. Luz e sombras se alimentam deles. Cada onda tem uma frequência própria: ondas longas quando as vibrações são densas; ondas curtas nas mais sutis. Isto determina a qualidade da nossa energia; define quem somos e as forças com as quais estamos em sintonia. Estabelece o poder que temos a cada momento da existência.”

“As ondas longas formam abismos nas rotas do universo; as curtas funcionam como pontes. Assim determinamos aonde podemos ir; se estamos aprisionados ou se somos capazes de prosseguir. Quem define o alcance da jornada é você; o seu olhar e o seu pensar. A sua consciência. As vibrações sutis, por serem de ondas menores, possuem uma maior capacidade de penetração. Logo, de transformação. Esta é a força do bem. Quanto mais leve o pensamento, maior o poder da luz em você e ao seu dispor.”

“O que concede leveza ao pensamento é a esperança na vida, é a fé em si mesmo. A generosidade, a delicadeza e a paciência que tenho comigo e com todos. A humildade em ser e a compaixão em sentir. A simplicidade no viver. A alegria por perceber cada momento pulsando em minhas veias. A sinceridade da palavra e a pureza de intenções que pavimentam todas as relações. O amor que floresce em meu coração e eu compartilho com o mundo. Assim alcançamos as estrelas.”

“Quando você se envolve com os desejos passionais, com a ignorância, com o orgulho, a vaidade, o egoísmo, o ciúme, a intriga, a inveja, a ganância, a vingança, a vitimização, com as conquistas meramente materiais, acaba por criar dependências e relações dominadoras de desejo e poder. O medo de não conseguir o desejo e, em seguida, o medo de perdê-lo. Ao final, resta um imenso poder sobre a ilusão.”

“Tudo que você tiver medo de perder não vale a pena conquistar.”

“As verdadeiras e preciosas conquistas não podem ser roubadas; não se desmancham no ar nem se deterioram pelo tempo. Este entendimento amplia a capacidade do seu consciente em agir além da realidade física por oferecer as pontes para atravessar os abismos dos poderes mundanos que, em verdade, não passam de realidade aparente. A realidade consciencial se vive concomitante ao mundo, mais está além do mundo. O mel da vida acontece na essência do ser quando no exercício das virtudes. Este é o poder da vida. A luz.”

“O mais curioso é que quando você se autobloqueia porque, em razão de condicionamentos obsoletos, tem foco exclusivamente na aparência, em uma convivência de superfície, apenas perceptível aos cinco sentidos básicos, abre mão de usar o poder consciencial para a alteração da realidade. Perde os ganhos verdadeiros e profundos. Cercado de abismos e nenhuma ponte, resta impossibilitado de seguir a viagem pela negação das possibilidades a que se impôs.”

A mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli foi mais longe: “Trazendo essa retórica para a situação da Ingrid, o caravaneiro tentou explicar que é justamente o medo e a desesperança que impedem você de ajudar a astrônoma.” Contestei de imediato. Era um absurdo pensar que a Ingrid morreria por minha causa. A mulher de olhos azuis sacudiu a cabeça: “Não foi isso que eu falei. Apenas disse que na atual esfera de vibração em que você se encontra em nada irá auxiliar na melhora do estado de saúde dela. O caravaneiro tentou explicar, entre outras coisas, que o seu medo e a ignorância quanto ao próprio poder podem romper o elo da corrente. A corrente de luz que tentamos envolver em torno da Ingrid na expectativa de potencializar a sua cura.”

Tornei a discordar. Argumentei que o medo era natural. A Ingrid corria sério risco e eu temia por sua vida. A mulher foi didática: “Sim, o medo é natural. Mas o que fazer com ele, o medo, é uma escolha. Você pode permitir que ele domine os seus pensamentos, bloqueando os movimentos da esperança e da fé ao se depararem com abismos astrais que você mesmo criou. De outro lado, tem a possibilidade de mostrar para o medo que a vida é um ato de coragem, por indispensável aos desafios inerentes à existência e ao aprendizado. Isto, por sua vez, inicia o processo de mudança. A coragem encorpa a esperança por acreditar nas infinitas oportunidades da vida. Ela sabe que sempre, de um jeito ou outro, haverá uma nova chance. Nem mesmo a morte esgota as possibilidades; apenas as transforma.”

“Não perca a oportunidade de agigantar a fé surgida a cada dificuldade. A fé, embora muito falada, é a virtude mais desconhecida entre nós; também uma das mais poderosas. A fé, ao contrário do que muitos imaginam, não se trata de uma crença ou de somente acreditar em Deus, na Luz ou no Universo. Este é apenas o degrau raso da fé. A fé atinge a sua maior potencialidade quando percebo que ela, assim como o amor e as demais virtudes, é parte do sagrado que me habita. No entanto, a fé é bem mais do que a esperança e a firmeza, embora delas se fortaleçam e lhes sejam essenciais. A fé se caracteriza pelo poder que cada indivíduo tem de mover a força incomensurável que traz dentro de si em favor de si mesmo e do mundo; o verdadeiro poder da luz. Isto faz com que você passe a acreditar em si mesmo e no poder infinito de transformação que possui. Acreditar em si mesmo, desde que com o mais puro amor, equivale a acreditar em Deus.”

Diante do meu espanto, me olhou profundamente e murmurou como quem conta um segredo: “Sim, você pode.”

Falei que mesmo com toda fé existente eu não poderia impedir a morte. A mulher de olhos azuis concordou: “Claro que não. E é bom que não possamos, pois seria um ato de profundo egoísmo.” Discordei; ela explicou: “A morte é um ato de amor. Um bonito e sábio gesto de amor da Vida em relação à vida. Desde, é claro, que se entenda todo o amor que há na vida.”

“Ela, a morte, encerra um ciclo de aprendizado para proporcionar o início de outro, em diferentes condições de existência. A morte não toma nada de ninguém, salvo dos que insistem em seus sentimentos de egoísmo e dominação. Assim, além de um gesto de amor, se torna também um ato de sabedoria e justiça.”

“A morte apenas altera a programação da vida, oferece uma nova chance de evolução com diferentes ferramentas.” Tornou a falar como quem conta um segredo: “A morte também faz parte do processo de cura e de encantamento pela vida. A morte é uma benção. Sempre será, ainda que tenhamos dificuldade para compreender.”

“Quando entendo que a minha morte não é inimiga da minha vida, mas uma aliada, torno-me um guerreiro sem medo. Invencível pelo poder que assumo.”

Ponderei que, se aquelas palavras fossem verdadeiras, de nada serviria mentalizar ou rezar pela cura de Ingrid. A morte é inexorável e tem a sabedoria de estabelecer a hora da partida. A mulher concordou, em parte: “Na grande maioria das vezes é impossível. Entretanto, em algumas poucas ocasiões é permitido um adiamento como exercício à espiritualidade das pessoas envolvidas. A morte é um dos nossos melhores mestres, desde que se ame e entenda a vida. Caso contrário, continuará sendo um problema e, pior, um instrumento de ameaça disponível para aqueles que se deixam manobrar pelas sombras.”

Eu tinha uma série de perguntas a fazer a ela, quando veio a ordem para pararmos. Estávamos no final da tarde. Iríamos acampar ali naquela noite. A mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli tocou com o calcanhar no dorso do vigoroso cavalo negro, movimentou as suas rédeas e logo sumiu do meu alcance. Aquela conversa tinha oferecido uma nova ótica, mas que necessitava, como tudo mais na vida, do devido amadurecimento; outras questões ainda restaram sem explicação para mim. Como tudo mais na vida, um passo de cada vez.

A Ingrid foi acomodada em uma tenda com todo o cuidado. Fui autorizado a ficar ao lado dela, que, de olhos cerrados, parecia em sono profundo. Em vigília, sem nenhuma fome, recusei o jantar. Mas tarde, quando o burburinho do acampamento silenciou, vieram à tenda o caravaneiro, a mulher de olhos azuis, o bom homem do chá e a sábia anciã com quem eu tinha enfrentado uma tempestade de areia há dias. Sentados, formaram um círculo em torno da astrônoma deitada sobre tapetes e almofadas. Perguntaram se eu me sentia apto a participar. Eu sabia que não podia ser o elo fraco da corrente. Portanto, tinha que estar disposto a me entregar por inteiro àquele momento; tinha que oferecer todo o meu amor. Anui com um movimento de cabeça. O caravaneiro entoou uma sentida oração em forma de canção. Os demais o acompanharam. Como era desconhecida para mim, apenas me deixei envolver pela agradável vibração que a música ancorou naquele instante na tenda. Todos estenderam as suas mãos acima do corpo da astrônoma. Acompanhei o movimento. Tive a estranha sensação que das minhas mãos pulsavam ondas que eu nunca sentira. Em parte, originavam em mim; em parte, vinham através de mim. Apesar da situação difícil da Ingrid, havia beleza e leveza inegáveis naquela tenda. Não sei precisar o tempo que durou aquele cerimonial simples e poderoso. Como a fé, igual ao amor.

Ao final, o caravaneiro sussurrou: “Que os bons espíritos do deserto permitam que aconteça, não os nossos desejos, mas o que for melhor para a Ingrid.” Dei-me conta, naquele instante, que, em verdade, nem sempre os melhores desejos, ainda que puros e sinceros, representam as melhores escolhas. Aos poucos, um a um, todos deram um beijo suave no rosto da astrônoma e se retiraram em silêncio.

A sós com a Ingrid na tenda, pensei na frase dita pelo caravaneiro antes de sair: “Que aconteça o melhor…” Havia sabedoria, amor e justiça naquelas palavras. Quantas vezes não nos enganamos quanto ao melhor? Como os nossos desejos são egoístas; os medos montam armadilhas traiçoeiras. A visão de curto alcance nos traz um sofrimento desnecessário por não entender o que existe além da curva, onde os meus olhos ainda não podem alcançar. Não tinha como saber o que aguardava por Ingrid na próxima estação. Era pretensioso da minha parte acreditar que eu sabia o que era melhor para ela, quando muitas vezes nem sou capaz de saber o que é melhor para mim. Sim, a morte é parte importante do ciclo da vida por permitir a sua renovação em outros níveis e planos de existência. Amar a vida consiste em entender a grandeza e a sabedoria da morte; estar em paz com a morte nos permite viver os dias com intensidade, coragem e amor.

Lembrei que do veneno da cobra se extrai a essência do remédio que salva do próprio veneno; a doença ensina tudo sobre a cura. A coragem nasce na forja do medo; a fé se origina do desamparo. As sombras, no fundo, se tornam a semente da luz. A morte não é um mal, tampouco deve ser temida; ela não é um veneno. A morte não mata nem é um fim. A morte é a cura pela renovação, desde que haja respeito e amor pelo ciclo vida. A morte me fala sobre o valor da vida. Portanto, jamais devemos chamar ou desejar pela morte em respeito à vida. Porém, aceitá-la na sabedoria da própria hora, como um mestre que encerra uma aula. O meu coração serenou de maneira absoluta; as ideias ficaram claras como eu nunca as tinha percebido. Senti uma paz desconhecida. Passei as costas da mão com carinho no rosto de Ingrid e lhe desejei o melhor, de modo sincero, ainda que fosse distante do meu desejo.

Tive a firme sensação de que, independente do que viesse acontecer, nada me abalaria. A vida evolui em ciclos de aprendizado, transmutações, compartilhamentos e infinitas viagens. Senti-me digno, livre e em paz. Em comunhão comigo mesmo como forma de estar comunhão com a perfeição da vida. Uma estranha leveza pareceu capaz de me sustentar no ar. Quando a morte não mais assusta; a vida floresce em impensável beleza. O veneno da morte me oferecera o antídoto para a morte. Tinha me ensinado uma, apenas uma, das infinitas possibilidades de cura através da vida.

Então, quando eu não mais esperava, o inesperado aconteceu. A astrônoma abriu os olhos e balbuciou por um pouco de água. Quando voltei com o cantil, Ingrid sorriu para mim.  Era um sorriso lindo e repleto de vida. A febre cessou. Os seus olhos brilhavam. Naquele instante não tive nenhuma dúvida de que a viagem dela ainda prosseguiria pelas areias do deserto. Naquela caravana. Ao meu lado.

 

 

 

29 comments

Tiago Ferreira julho 12, 2018 at 12:53 pm

Estava sumido Yoskhaz?! Gratidão, ótimo texto pra refletir, como smp com muito amor e sabedoria.

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Joane Faustino Araújo julho 12, 2018 at 1:02 pm

Gratidão 💗🌹
Estava com muita saudade ja

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Hugo julho 12, 2018 at 1:18 pm

Como sempre as palavras certas na hora certa. Muito obrigado

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Vanilda Teixeira julho 12, 2018 at 1:21 pm

É sempre uma alegria beber de tuas palavras. Minha alma agradece.
Avante Sempre! Gratidão!

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JOSE VANDSON MARCELINO julho 12, 2018 at 8:25 pm

Gratidão, seus textos são sementes, a Luz fruto.

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Nazaré Dimaria julho 12, 2018 at 9:26 pm

Obrigada!

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Elma julho 12, 2018 at 9:35 pm

Lindo… maravilhoso…como sempre são seus textos…gratidão!!!!

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Adélia Maria Milani julho 12, 2018 at 10:09 pm

Gratidão! ♡ ☆ ♡ ☆

Sem palavras

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Adélia Maria Milani julho 12, 2018 at 10:13 pm

Gratidão! ♡ ☆ ♡

Que bom usufruir dessa fonte sabedoria novamente!

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Luany Cristina julho 12, 2018 at 11:19 pm

Nossa, Yoskhaz. Já estava preocupada com o seu sumiço. Obrigada por nos presentear com mais uma dádiva!! Nem li ainda, mas já me sinto abençoada.

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Karen julho 13, 2018 at 12:05 am

Gratidão. Lindoo!!!

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Gustavo Bueno Peregrino do Universo! julho 13, 2018 at 10:17 am

Gratidão pela Luz nas palavras!
Como diz um mestre que conheci a pouco tempo ” Medo de nada. Só Amor!” Namastê Yoskhaz!

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Irineu Cardoso julho 13, 2018 at 3:31 pm

ESTOU NO DESERTO…

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Romário Sales julho 14, 2018 at 2:11 am

Que grande retorno…
Há uma narrativa tua que diz:
Só há saudade onde existe amor.
Bom, usar o seu bem mais precioso(seu tempo) para nos agraciar com textos tão cheios de ensinamentos é certamente uma forma de amor sincera ao próximo.
Obrigado!

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Helvia Dayrell julho 14, 2018 at 9:37 pm

Lindo!!! Gratidão! ❣🤗👏👏 Otima reflexão Yoskraz! Obrigada!

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Elvis julho 14, 2018 at 11:53 pm

Que aconteça o melhor…” . Como os nossos desejos são egoístas . A visão de curto alcance nos traz um sofrimento desnecessário por não entender o que existe além da curva, onde os meus olhos ainda não podem alcançar. Obrigado mestre por mais esta lição. Espero que e creio que você esteja bem. Sentimos falta dos ensinamentos que nos inspiram a cada semana. Aproveitei o tempo da ausência da sua presença para reler alguns textos e lhe agradeço por mais esta oportunidade. Que o senhor do universo te abençoe e ilumine sempre. Muito , Muito obrigado Yoskhaz, por mais este maravilhoso ensinamento.

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Ju julho 16, 2018 at 1:28 am

Que prazerosa é a leitura a cada novo texto. Um aprendizado a cada palavra., a cada frase uma nova senha… Agradeço ao Universo a cada encontro com palavras, elas são bálsamo.

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Rita Soares julho 16, 2018 at 9:54 am

Uau!!!… Que tenhamos apreendido essa sapiência toda porque só aprender não basta… Eternos seres em evolução… Que cada um consiga, dentro de suas possibilidades e merecimento, colocar em si todo esse aprendizado… Gratidão…

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Bonifácio julho 17, 2018 at 3:59 pm

Desde as minhas primeiras leituras dos seus belos textos… Eu suspeitava que fariam parte de um contexto sobre o (Consolador prometido.) Hoje eu acredito. GRATIDÃO.

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Claudia Pires julho 18, 2018 at 11:59 am

Linda percepção da morte. Obrigada sempre!

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Terumi julho 18, 2018 at 11:07 pm

Todos os dias eu leio seus ensinamentos, são de extrema ajuda! Gratidão!!!

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Vidyapriya agosto 2, 2018 at 5:27 pm

Simplesmente d+, fazem nove anos que minha única filha com 21 anos desencarnou e desde sua partida sempre fiquei com o coração transbordando de gratidão por ter tido a Infinita oportunidade de ter sido mãe neste momento cósmico. Portanto as palavras da linda mulher de olhos cor de lápis lazuli eu as vivi em meu coração e a cada dia desde sua passagem. Gratidão Infinita 💜💟

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Hildes Torres agosto 28, 2018 at 8:50 pm

Como sempre, arrancando lágrimas de gratidão, esperança e fé do meu coração….Yoshkaz obrigada!

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Christiano abril 28, 2020 at 2:12 pm

“Tudo que você tiver medo de perder não vale a pena conquistar.”

Caso existam verdades absolutas, penso que a frase acima retrata uma delas.

Bem aventurados os homens de boa fé!

Vos sois um deles , neste mar de desesperança,
fiel timoneiro a navegar por aguas caudalosas!

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Lindaura de Araújo maio 26, 2020 at 8:51 am

O pensamento tem vida e a calma é o antídoto para a cura de qualquer doença física e mental. Exercício cada vez mais intenso e sempre.

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Alba maio 28, 2020 at 10:33 pm

A aceitação da morte!

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Elisete Falleiros agosto 20, 2020 at 9:54 pm

A cada parágrafo um balsamo para nossa alma, nossa vida. Temos muito q aprender, e compreender principalmente sobre nossos desejos.
Gratidão.

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Maria Martins outubro 18, 2020 at 10:36 am

Gratidão imensa por tanto ensinamentos 🙌🏽🙌🏽🙏🏾

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Maria Georgins Gomes Dutra Ferreira maio 8, 2021 at 10:28 am

Quanto ensinamento para minha vida ❤️💙 esperança de atravessar a caminhada por mais difícil que seja Fé 🙏❤️💙

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