MANUSCRITOS IV

Todo o oceano dentro de uma garrafa

O silêncio não era absoluto por minha causa.  Aquela hora, eu apenas ouvia os meus próprios passos pisando no calçamento de pedras seculares através das ruas sinuosas e estreitas. A pequena e agradável cidade que fica no sopé da montanha que abriga o mosteiro ainda adormecia. Eu tinha pego um trem noturno que fazia uma pequena parada naquela estação e seguia adiante. Eram poucos os moradores da região que faziam essa viagem, pois o trem passava na cidade antes de o sol nascer. Eu pensava na vida simples das pessoas que moravam ali. Uma rotina sem pressa, com a tranquilidade para fazer as coisas sem a opressão da correria típica das metrópoles. Viver com calma, cercado por pessoas que também viviam dessa maneira, com certeza seria uma possibilidade de conciliação comigo mesmo. Com certeza eu teria condições de me dedicar a outros projetos, tanto pessoais quanto profissionais, que há tempos eram adiados. Ali dava a sensação de que o tempo era tanto que transbordava pelas bordas do dia. Eu pensava sobre isso enquanto me dirigia à oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos livros de filosofia e dos vinhos tintos.

Eu não quis avisá-lo da minha chegada, seja pelo horário inoportuno, seja porque eu não me demoraria. Apenas esperaria a hora para pegar o transporte até o mosteiro, onde prosseguiria em mais um período de estudos. Como já eram famosos os inusitados horários de funcionamento da oficina, eu apostava na enorme possibilidade de encontrá-la aberta durante a madrugada. Ao ver a sua clássica bicicleta encostada no poste em frente, sorri para mim mesmo. Loureiro abriu um enorme sorriso quando me viu entrar no atelier. Deu-me um forte abraço, pediu para eu me sentar ao lado do antigo e pesado balcão de madeira, enquanto passaria um bule de café fresco para animar a conversa. Sem demora, comentei das maravilhas de uma vida simples em uma cidade pequena. O sapateiro colocou duas canecas fumegantes à nossa frente e disse: “Uma vida simples será sempre uma questão atual. Trata do antigo dilema entre o oceano e a garrafa.” Diante do meu olhar atônito, ele iniciou o raciocínio: “O perigo é confundirmos a simplicidade com o simplismo. Uma velha, porém, ainda eficaz, armadilha”.

Claro que eu nada entendi. Ele sorriu e iniciou a explicação: “Já reparou que a grande maioria das pessoas adia indefinidamente os mais importantes projetos das suas vidas?”. Falei que eu era uma dessas pessoas. Porém, me justifiquei. Era por causa dos diversos compromissos que me tomavam o tempo e a tranquilidade. Acrescentei que um dia, eu as realizaria. Loureiro sorriu: “Sim, todos temos as melhores desculpas para adiar as realizações que nos trariam as transformações necessárias a uma vida plena. Enquanto isto, vivemos o nosso tempo priorizando coisas de menor importância e, pior, reclamando da chatice e da falta de sentido da vida”.

Bebeu um gole de café e prosseguiu: “Enganamos a nós mesmos com as desculpas de que após os filhos se formarem na faculdade,depois que eu me aposentar, quando juntar um bom dinheiro na poupança, entre outros argumentos, colocaremos os nossos sonhos em prática. Mudar de cidade é apenas mais uma das desculpas”. Falei que eu precisava de uma vida simples, mais tranquila, para começar a escrever os livros que sempre quis. Na grande cidade onde eu morava, administrando uma agência de propaganda, com um monte de outras coisas para fazer, isso não era possível. Sem falar no fato de as grandes cidades, em geral, serem complicadas para se viver. O tempo furtado pelos longos deslocamentos, atrapalhados pela confusão dos inevitáveis engarrafamentos, além da intolerância, da indiferença e, em alguns casos, da violência urbana, eram alguns dos vários fatores impeditivos. Loureiro ponderou: “Sem dúvida, há enormes diferenças na qualidade de vida entre uma cidade e outra. Porém, achar que isto é determinante para colocar em prática projetos primordiais, com os quais sempre se sonhou, é fugir pela porta do simplismo ao invés de enfrentar a estrada da simplicidade”.

Discordei de imediato. Questionei sobre o que havia de errado em desejar morar em uma cidade pacata. “Absolutamente nada de errado”, respondeu. O sapateiro seguiu em suas ponderações: “Todavia, não acredite que a cidade em que irá morar será uma garantia de paz ou felicidade, por mais calmas e bem administradas que sejam. Não raro, vejo pessoas que vêm aqui para passar um final de semana ou períodos pequenos de férias. Ficam encantadas com a qualidade de vida. A tranquilidade, os bons restaurantes, os ateliers, o tempo que passa sem pressa, a sensação de que todos os moradores são conhecidos, de poderem fazer quase tudo a pé sem precisar de carro, entre outras coisas. Alguns acabam se mudando para cá. Ocorre que para vários deles, passadas as semanas iniciais, a vida pacata se torna um tédio insuportável. Sentem falta dos teatros, cinemas, livrarias, das lojas de grifes, dos produtos que consomem e que nem sempre são encontrados com facilidade em cidades menores. O fato de verem as mesmas caras todos os dias passa a incomodar, têm a sensação de que o tempo parece lento demais e até mesmo reclamam de terem que fazer tudo a pé, sem poderem ir de carro, pois as ruas são estreitas dificultando o estacionamento. Um inferno, adjetivam o pequeno lugar quando mudam de volta para as suas cidades de origem. É preciso entender a afinidade com a cidade que moramos ou que desejamos morar. O que serve para uns não é bom para todos. Contudo, o mais importante é perceber as desculpas que usamos para nos enganar e fugir de nós mesmos”.

“Entre as pessoas que se mudam para cá, o desejo mais comum é o simplismo de montar uma pousada em lugar aprazível, na ilusão bíblica, e inconsciente, de voltar ao Paraíso. Esquecem o fundamental: terão que conviver com outras pessoas. A vida exige isto como método educacional. Os novos e felizes donos de pousadas terão que tratar com os seus funcionários e as suas dificuldades; com os hospedes e todas as suas manias, chatices e reclamações. Acreditar que a vida em uma cidade agradável é garantia de tranquilidade não passa de um engodo pela superficialidade do olhar.” Riu, bebeu um gole de café e disparou: “A magia está dentro, nunca fora da gente”.

“Estamos condicionados a buscar equações secretas, como se fossem atalhos, para entender tanto o mundo visível quanto o invisível que nos permeia. Então, nos aprisionamos no raso de todas as coisas. Na ânsia de filtrar tudo e todos que nos cercam, de resumir em poucas palavras as situações da vida, de entender o mundo e o funcionamento do universo, teimamos em colocar, de uma única vez, todo o oceano dentro de uma garrafa”.

Deu de ombros antes de comentar com um sorriso maroto: “Não cabe”.

Falei que ainda não tinha entendido. Ele explicou: “Pensar que a cidade em que moramos será o fator determinante da paz ou da felicidade, é ficar na superfície da questão. A paz e a felicidade, assim como os demais estados de plenitude, como a dignidade, o amor e a liberdade, são conquistas internas que nada têm a ver com o local onde residimos. Claro que há lugares onde os perigos são enormes e sérias ameaças nos assolam, tornando a existência muito complicada. No entanto, mesmo nesses lugares, cuja sobrevivência é imponderável, encontramos pessoas plenas. De outro lado, vejo muitos indivíduos insatisfeitos morando em cidades apontadas em pesquisas como as melhores do planeta para se viver. A infelicidade, o mau humor e o pessimismo estarão em qualquer lugar, até mesmo no Paraíso, enquanto se olhar a existência pela ótica do simplismo. Em contrapartida, ao enfrentar a vida pelo viés da simplicidade recuperamos a alegria e a delicadeza”.

Pedi para ele explicar melhor. Loureiro foi generoso: “A simplicidade é a virtude-irmã da humildade; a virtude de viver sem máscaras nem ilusões; sem mecanismos de fuga ou proteção ao ego quanto à vaidade e ao orgulho. Uma virtude profunda porque desnuda o ser. Isto amplia as possibilidades de transformações reais do indivíduo, com um passo de cada vez. Por sua vez, o simplismo trata da necessidade que temos em consumir o mundo em um único gole. Desejamos todo o entendimento em dose única. Todos os livros resumidos em filmes de rápida duração. Alegamos não ter tempo para tanto e para muito. Pagamos fortunas pelo resumo de todas as coisas. Olhamos sem atenção para os outros; olhamos com pressa para nós mesmos. Reduzimos tudo e todos para que possam caber dentro de uma garrafa. Por nefasta consequência, acabamos por nos incluir na equação do mínimo possível. Ora, ao apequenar a vida somos levados ao avesso da expansão. Ao limitar a consciência, diminuímos as fronteiras do mundo. Ao abdicar do poder trazido pelo entendimento, reduzimos as possibilidades de transformação e a intensidade da luz. Tornamos menor algo que, por si só, é maior. A vida, o mundo, as pessoas e a si próprio. Perdemos o mel da vida por insistir no amargor da existência. Empobrecemos o universo; a parte e o todo. Falseamos a verdade. Ao contrário da simplicidade que amplia e concede leveza à jornada, o simplismo a torna pesada e limita o seu alcance”.

“Morar em um lugar agradável e seguro será sempre muito bom. No entanto, a pergunta é outra: será agradável para mim que eu more comigo? Sou uma pessoa de convivência segura, pacífica e confiável? São as questões inevitáveis, sem as quais não conseguirei avançar.” Bebeu mais um gole de café e disse: “Quando não cabe mais nenhuma gota na garrafa, o oceano se derrama em tempestade”.

Falei que não tinha entendido a última frase. O sapateiro ampliou o raciocínio: “Toda ação externa apenas nos conduzirá a quaisquer dos estados de plenitude se for complementar, ou como consequência, das transformações internas. É preciso entender o seu propósito de vida, a razão da sua existência. Viver sem pressa nem medo, como se cada dia fosse o primeiro a agigantar a sua alma. Do contrário, ouviremos somente desculpas, lamentos, frustrações e mágoas”.

“O indivíduo que muda de cidade como fator primordial para encontrar a felicidade tem uma ilusão parecida com o sujeito que se torna adepto de uma religião na crença de que, pelo mero fato de entrar na igreja, fará dele uma pessoa melhor ou que será garantia de um encontro com Deus. Qualquer fator externo será facilitador, nunca determinante. Do contrário é confundir fuga com evolução; simplismo com simplicidade. Encontram-se desculpas ao invés de buscar soluções. Tentar encontrar fora o que somente existe dentro é se encantar pelo brilho da existência ao invés de ir ao encontro da luz da vida”.

“No simplismo de entender e solucionar os problemas inerentes à existência, sem o indispensável mergulho à quintessência da alma, tudo se resumirá em aparências de pouca ou nenhuma consistência. Mudo de cidade, de emprego, de casamento, de amigos, o corte de cabelo e as roupas. Mudo de continente, o idioma e a rotina. Porém, nada mudará em mim”.

“Todavia, a jornada para a transformação interna, embora seja feita pelos trilhos da simplicidade, não é uma viagem fácil. Requer muito esforço e persistência; criatividade e disciplina”.

“Acreditar que se a culpa pela minha insatisfação está no mundo; logo, lá estará a solução, é o mais famoso dos enganos. Sem demora, me verei impotente para ajustar o mundo ao meu feitio. Embora não consiga resolver as questões que me abatem a alma, me perco na ilusão de que sei como tornar o mundo um bom lugar para se viver: todos irão se adaptar aos meus desejos. Diante do óbvio desastre, reclamo, me torno chato e triste. Às vezes, agressivo e, quase sempre, impaciente. Argumento que é impossível ter tolerância com a estupidez de tantas pessoas egoístas e mesquinhas. Logo chegarei à conclusão do inevitável fatalismo: o mundo é cruel e a vida não tem sentido. Sem tardar, um enorme vazio me envolverá. Aprisiono-me às dependências emocionais: não consigo viver sem aquilo ou aquela pessoa. Ainda no simplismo das soluções e, agora na absoluta negação do entendimento, recorro à fuga através das químicas que alteram a realidade, algumas permitidas, outras proibidas; todas, em verdade, não passam de limitadoras da realidade. Logo, da consciência. Surge a possibilidade de me tornar um terreno propício ao preconceito e ao maniqueísmo por teimar em separar o mal do bem através de raciocínios rasos. Todos que não se parecem comigo me incomodam. Esqueço que as diferenças pessoais existem para enriquecer a pobreza do intelecto, exercitar a nobreza do coração e justificar a amplitude do espírito.” Tornou a dar de de ombros e perguntou: “Mas quem está disposto a enfrentar a realidade do exato espelho?”.

Eu não disse palavra. Loureiro continuou a expor o seu raciocínio: “Em verdade, apenas consigo alterar a convivência que tenho com tudo e com todos à medida que modifico a relação que tenho comigo mesmo. O olhar no qual me permito, reflete o mundo que vejo e vivo. Trocar sombras por luz; um olhar diferente, de dentro para fora e não mais de fora para dentro, permite a visão de um mundo diferente. O entendimento do poder imaterial advindo do aperfeiçoamento das virtudes como norteador das escolhas, torna o mundo um bom lugar, uma oficina repleta de possibilidades para a criação e o desenvolvimento da personalidade. Toda a revolução consiste na transformação individual, que se propaga em ondas concêntricas à evolução planetária. A mudança de fora para dentro faz muito barulho, mas traz pouca música. A revolução da vida começa quando se adota a simplicidade como régua dos passos e compasso do coração. Viver sem máscaras nem subterfúgios para se chegar ao âmago do ser, templo sagrado da plenitude. Eis o resumo de todas as religiões e o endereço da melhor cidade. No ser está o melhor lugar para se viver. Do contrário, nenhum local será bom para morar”.

“Todo o resto são entendimentos simplistas para soluções superficiais, sem nenhuma eficiência por serem de curta duração. Será assim toda a vez que faltar o fundamental poder transformador no âmago do ser”.

Arqueou os lábios em leve sorriso e finalizou: “Somente, então, cessaremos com a teimosia de colocar, de uma única vez, todo o oceano dentro de uma garrafa. Ao invés disto, aos poucos, permitiremos que a água preencha o recipiente, ao mesmo tempo em que ampliará a capacidade do vasilhame de acordo com o conteúdo que o completa. A garrafa é expansível; o oceano, infinito. Um pouco mais do oceano na garrafa todos os dias, uma garrafa um pouco maior a cada dia. A garrafa nunca fica cheia; o oceano jamais se esgota”.

“O oceano pode se limitar às dimensões da garrafa ou a garrafa pode se ampliar até ter o tamanho do oceano”.

            “Assim é a sua consciência e o universo”.

Havia muito o que conversar, mas estava na hora de eu pegar carona com o caminhão que levava mantimentos ao mosteiro. Despedi-me com um abraço e sem palavras. Quando eu saí da oficina, o dia ainda não havia amanhecido. Tornei a andar sozinho pelas ruas estreitas e sinuosas da pequena cidade. No entanto, eu tinha a nítida sensação que não eram mais os meus passos os únicos a quebrar o silêncio absoluto da madrugada.

A minha alma pulava de alegria com a canção que me convidava para o grande baile da vida. Era uma música que tocava dentro de mim.

9 comments

Adélia Maria Milani outubro 2, 2018 at 6:34 pm

Gratidão! ♡ ☆ ♡

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Domingos Júnior outubro 3, 2018 at 12:54 pm

“A garrafa é expansível; o oceano, infinito. Um pouco mais do oceano na garrafa todos os dias, uma garrafa um pouco maior a cada dia. A garrafa nunca fica cheia; o oceano jamais se esgota.”

“Trocar sombras por luz; um olhar diferente, de dentro para fora e não mais de fora para dentro, permite a visão de um mundo diferente. O entendimento do poder imaterial advindo do aperfeiçoamento das virtudes como norteador das escolhas torna o mundo um bom lugar, uma oficina repleta de possibilidades para a criação e o desenvolvimento da personalidade.”

Obrigado por nos ajudar a expandir a “garrafa” um pouco mais no dia de hoje…

Magnífico!!!

Que a Força esteja com você 🙏

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Romário Sales outubro 3, 2018 at 3:53 pm

…A garrafa pode ter o tamanho do oceano ou o oceano se limitar as dimensões da garrafa;
Que possamos um pouco a cada dia nos transformar e aumentar a nossa capacidade de entendimento, tendo assim sempre espaço para mais sabedoria.
Obrigado pela maravilhosa narrativa Yoskhaz!

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Jéssica Perri outubro 5, 2018 at 1:30 am

Ser é o melhor lugar para se viver. Do contrário, nenhum local será bom para morar.”

O efeito dessas palavras são como mágica para minha alma. Grata

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Joane Faustino Araújo outubro 5, 2018 at 2:37 pm

Gratidão 💗🌹

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Adriana Dinoá outubro 7, 2018 at 8:28 am

Lindo..
Gratidão Yoskaz..

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Campos Márcia outubro 9, 2018 at 3:06 pm

Sempre magnífica mensagem!!
Grata!

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Joelma Papani novembro 4, 2018 at 5:37 pm

Eterna gratidão!

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Hildes Torres dezembro 12, 2018 at 10:11 pm

Que maravilha! Como sempre, palavras arrebatadoras! Obrigada Yoskhaz

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