MANUSCRITOS III

Além do fim do túnel

 

Ao lado de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos, buscávamos um restaurante que ainda servisse almoço no meio da tarde. Tinha chovido forte durante todo o dia. Aproveitamos a esteada para singrarmos as ruas estreitas e tortas da pequena e charmosa cidade localizada no sopé da montanha que acolhe o mosteiro. As pesadas nuvens deixavam o céu escuro e fizeram com que os lampiões se acendessem mais cedo do que de costume. Conversávamos de maneira alegre e vadia, como dois amigos que se sentem felizes pelo simples fato de estarem juntos, enquanto desviávamos das poças d’água formadas no calçamento contruído com pedras seculares. Ao entrarmos no restaurante nos deparamos com Carlo, um amigo em comum. Tomamos um susto. Nem de longe parecia aquele homem confiante, bonito e bem cuidado que estávamos acostumados a ver. Tínhamos nos encontrado há menos de um mês e ele aparentava estar muito bem. Naquele dia era o reverso da pessoa que conhecíamos. Carlo estava abatido, encurvado, sem viço, parecia um espectro de si mesmo.

Nos recebeu com a alegria possível ao seu coração naquele momento. Nos convidou para sentar à mesa com ele e o acompanhar em uma taça de tinto. Perguntei se ele almoçaria conosco e a resposta foi negativa. Há dias estava sem apetite. Acrescentou que a sua vida tinha virado ao avesso de uma hora para outra. Carlo tinha um bom emprego; trabalhava na sede de uma multinacional situada em uma metrópole não muito distante, a apenas uma hora de trem. Na semana anterior, ao chegar na empresa foi chamado por um diretor e informado que haveria uma reformulação nos quadros funcionais. Alguns cargos seriam extintos, entre os quais, o seu. Nem lhe foi permitido voltar à sua sala; os seus pertences pessoais já estavam acondicionados em uma caixa, sendo entregues naquele instante. A verba rescisória seria depositada em sua conta bancária no dia seguinte. Passados alguns dias, a sua esposa, com quem esteve casado por quase dez anos, comunicou o fim do matrimônio. Ela estava apaixonada por outra pessoa e, com a mala pronta, partiu em seguida.

Acrescentou que se sentia no fundo do poço. A vida estava escura e, pior, não havia qualquer sinal de que uma luz pudesse se acender. Imediatamente, tentei animá-lo com um conhecido discurso de superação, do tipo “agora é pegar o impulso no fundo para retornar à tona”. Ele se confessou sem forças para superar aquele momento e reconstruir a sua vida. Foi quando Loureiro nos surpreendeu ao afirmar: “Por enquanto, o melhor é continuar no fundo do poço. Não é hora de voltar”.

Olhei para o sapateiro com censura, como quem pede um pouco de misericórdia. Carlo se espantou e chegou a pensar se tratar de uma brincadeira, claramente inoportuna. Loureiro começou a construir o seu raciocínio: “O mundo somente se desmorona quando a alma está desequilibrada”.

“Se ele tomar impulso no fundo para voltar agora, retornará no mesmo estágio em que se encontrava, ou pior, alimentado por mágoas e desejos vingança ao transferir a terceiros a razão da sua queda”.

Interrompi para argumentar que a inércia, neste momento, poderia estimular os mesmos sentimentos sombrios ou engatilhar um processo de tristeza e depressão. O sapateiro sacudiu a cabeça e explicou: “O fundo do poço pode ser visto com sordidez por muitos, porém, com a devida atenção e calma, pode ser abraçado como um lugar de silêncio e quietude, propício para a reflexão e a meditação. A oportunidade perfeita para entender quais as escolhas equivocadas que o levaram até lá”.

Tornei a interromper para dizer que era um absurdo acreditar que alguém fosse ao fundo do poço por livre e espontânea vontade. Carlo me olhou como se eu falasse por ele. O sapateiro não perdeu a calma e foi pedagógico: “Esse é o perigo do Carlo retornar agora à tona. Provavelmente voltará do mesmo jeito, na ilusão de que foi empurrado pelos outros. As tempestades apenas existem para corrigir as rotas dos marinheiros que ainda não sabem navegar”.

“Antes da tempestade o mar fica encrespado, o vento anuncia a mudança do tempo e o céu, ao longe, sinaliza com nuvens pesadas. Cabe a cada um, capitão da própria nau, manter ou mudar de direção. Assim, os naufrágios encontram aqueles que insistem em não ler os sinais. Porém, nada resta de todo perdido, pois os naufrágios acabam por formar os melhores navegadores; a vida é uma escola formadora de grandes mestres”. Deu uma pausa e concluiu: “Desde que se esteja disposto a aprender com ela”.

“O fundo do poço é sempre uma escolha de quem caiu”.

“A aceitação dessa realidade é o primeiro passo para afastar eventuais ressentimentos e a vitimização que tanto retarda a evolução. Enquanto o indivíduo acreditar que o responsável pelo seu sofrimento é outra pessoa, não iniciará o processo de transformação, cura e libertação da prisão em que se colocou”.

“Todos têm as mesmas condições de alcançar a plenitude, traduzida pelas conquistas da felicidade, da paz, da liberdade e da dignidade pessoais. Entender a queda é aprender quais os movimentos foram equivocados e, daí em diante, passar a fazer diferente e melhor. É permitir o florescimento de virtudes ainda em semente no âmago do ser”. Olhou para Carlo com sincera compaixão e disse: “Você pode interpretar o fundo do poço como maldade alheia, conspiração infame do universo e ansiar em voltar à tona com aura de super-herói. Aliás, este é o desejo mais comum e infantil, sempre movido por orgulho e vaidade em sonhos de vinganças vis e de poder efêmeros e inconsistentes”.

Esperou o garçom abrir a garrafa e encher as taças. Bebeu um gole e prosseguiu: “No entanto, pode, no fundo do poço, começar a construir um túnel. Nunca como fuga da realidade, mas em busca de uma nova realidade, com possibilidades nunca antes imaginadas. Voltar à tona, no mesmo lugar, reconstruir a vida sobre os mesmos alicerces, o mesmo padrão antigo de ser e viver, é perpetuar a estagnação através de outra roupagem. É preciso conhecer as possibilidades que estão além do fim do túnel para que haja transformação efetiva e verdadeira. Caso contrário, viveremos a maldição de Sísifo, o mito grego, que empurra todos os dias uma grande pedra para o alto de uma montanha, da mesma maneira, que quando próxima ao cume, teima em rolar para baixo, em constante repetição, fadado ao insucesso. O fim do poço tem que ser o início do túnel a permitir alcançar a luz desconhecida, de um jeito diverso do anterior, com verdadeiro avanço íntimo”.

“É hora da humildade e da determinação, duas preciosas virtudes. O fundo do poço, em razão do silêncio e da quietude, é o lugar ideal para ficar frente a frente consigo mesmo, em perfeito espelho, sem a distorção das máscaras que criamos para aceitação social, longe dos personagens que inventamos para sustentar as sombras do orgulho e da vaidade, sem a fuga da responsabilidade pela própria felicidade, sem as distrações rasas que têm apenas o intuito de adiar esse importante encontro marcado: saber quem somos de verdade, gatilho das grandes transformações”.

“O indivíduo que sabe realmente quem é traz para si todo o poder da vida, se torna capaz de superar as mais duras dificuldades; em contrapartida, aquele que se desconhece será sempre uma pessoa frágil, necessitada de artifícios aparentes de ilusão, vulnerável às menores decepções. O autoconhecimento permite entender a sua capacidade e as virtudes que já possui para fazer um bom uso delas. Reconhece, também, as imperfeições ainda existentes e as virtudes que faltam germinar, instrumentos imprescindíveis à evolução. Humildade e determinação são os ventos impulsionadores dessa travessia, da busca pelo tesouro escondido a espera de ser revelado em prol de si mesmo e para o mundo. Se soubermos fazer a leitura correta do mapa da vida, perceberemos que o fundo do poço é a permissão amorosa para o início de uma viagem a um maravilhoso mundo desconhecido, tão longe e tão perto. O próprio coração; a essência do ser e a semente sagrada do universo”.

Reclamei, entre irritado e incrédulo, com a dureza de Loureiro para com o nosso amigo. Carlo concordou comigo e disse que não merecia aquele tratamento por parte do sapateiro, se levantou e saiu. O artesão manteve o semblante sereno e, diante do meu olhar inquiridor, deu de ombros e disse: “Sei que fui duro com ele, mas fiz o que penso ser melhor. Sem transformação não há avanço. A verdade pode ser um açoite que fere; então, dói. Ou o bálsamo que cura; então, liberta. Depende do sentimento de quem a profere; movimentei-me por amor”.

Passaram-se vários meses sem que tivéssemos qualquer notícia de Carlo. Certo dia, estávamos almoçando no mesmo restaurante quando fomos surpreendidos pela sua chegada. Ele estava muito diferente do homem que era nos dois momentos anteriores da sua vida. Nem era o arrumado executivo da multinacional nem o homem alquebrado no fundo do poço. Tinha uma elegância informal e estava mais bonito do que sempre. Usava uma barba bem aparada, calça jeans acompanhada de uma bela camisa, um par de tênis e, mais importante, um sorriso indescritível no rosto. Abriu os braços quando nos viu e pediu para sentar à mesa conosco. Comentei da boa coincidência de nos encontrarmos no mesmo restaurante. Ele explicou que não havia nenhum acaso nisso. O dono era um velho conhecido que, a pedido seu, avisou que estávamos lá. Era importante que fosse no mesmo lugar, pois aquele encontro havia sido angular em sua vida.

Precisava agradecer ao sapateiro por suas palavras firmes. Com lágrimas nos olhos, confessou que na época recebeu de outras pessoas, todas bem-intencionadas, palavras por demais açucaradas, porém, estéreis. Reconhecia que o discurso de vítima estava lhe estimulando à fraqueza, a tristeza e, por consequência, a estagnação. A firmeza da retórica do artesão o acordou do sono sombrio da acomodação e do desvio de responsabilidade. Se a vida era sua, logo, cabia a ele escrever a própria história, dentro das possibilidades possíveis de superação a serem alcançadas com o devido esforço. Sem culpa, pois agiu com o nível de consciência que possuía na época, mas com o compromisso pessoal de fazer diferente e melhor dali em diante. Somente assim foi possível assumir o protagonismo da própria vida. Entrar para a vida adulta não era apenas arrumar um emprego e casar, mas atingir a maturidade.  Falou que no início foi muito difícil, mas depois percebeu que o abandono que sentia, na verdade, era a fantástica chance de assumir o controle da própria vida, sempre postergado pelo fato de culpar os outros pelos seus insucessos e decepções. Aceitou que era a hora de ser sincero consigo ou não sairia da infância da existência. Acrescentou que a vitimização é cômoda, mas acovarda o indivíduo e impede o seu crescimento. A maturidade se traduz em aceitar a responsabilidade pelas suas escolhas, aprender com elas e seguir adiante, a cada dia, com um jeito diferente e melhor de ser.

Em seguida, confessou que, pelo fato de trabalhar há muitos anos naquela multinacional, criara um mecanismo que distribuía aos outros funcionários muitas de suas funções, até que, por isto, se tornou dispensável. Na verdade, inconscientemente, ele é quem tinha provocado a sua demissão por mostrar a própria desnecessidade do cargo que ocupava. O contrário provavelmente aconteceria se tivesse ido além, ao se fazer essencial. Disse que também se acomodara em relação ao casamento. Em algum momento desistira de manter acesa a chama do afeto que o unira à esposa, sendo natural que ela acabasse se desinteressando pela relação e surgisse uma lacuna a ser ocupada. Para ser sincero, em ambos os casos, eram ciclos que ele já poderia ter encerrado de maneira mais honesta, seja consigo, seja com os outros. No fundo, a dor que sentiu era apenas fruto do orgulho ao ser dispensado, seja pela esposa, seja pela empresa. No momento que se mostrou disposto a trabalhar isto em si mesmo, entendeu que aquilo que acreditava ser o fundo do poço, era o princípio do túnel que lhe permitiu uma busca, então, impensada. Ao invés de retornar à tona, como era a vontade inicial, descobriu um novo lugar, onde havia muito mais luz. Contou que nesse processo, à medida em que se conhecia, se transformava e tudo ao redor também mudava. Os interesses, as vontades e as escolhas ficaram diferentes. O que antes era primordial, passou a não fazer qualquer sentido. Revelou que como sempre fora apaixonado por motocicletas, tinha aberto uma pequena oficina na garagem da sua casa. Lá conhecera uma moça, também amante dos motores, com quem começou a sair. O namoro e o negócio estavam engatinhando, o dinheiro ainda era curto e limitado, mas os passeios que fazia de motocicleta com a namorada nos fins de semana eram longos e deliciosos. Confessou que nunca se sentira tão livre e leve. Vivia cada vez mais em sintonia com a sua essência e isto o fazia feliz. Ao contrário de antes, agora, todos os dias, acordava bastante animado com a vida. Se tudo desse errado, tinha aprendido as possibilidades ilimitadas de sobreviver, tinha entendido a força incomensurável que trazia dentro de si e, agora, sabia que poderia recomeçar tantas vezes quantas fossem necessárias. O fundo do poço tinha sido uma bênção.

Carlo chamou o garçom. Pediu o cardápio, iria almoçar conosco. Estava com fome. Fome de viver, acrescentou. Rimos. Aproveitou para agradecer ao artesão pela conversa do outro dia. Disse que tinha a sensação de que os argumentos usados pelo sapateiro, de alguma maneira, já rondavam pela sua vizinhança. Faltava abrir as cortinas para que ele pudesse vê-los com clareza e os convidar para entrar. Loureiro concordou: “Sim, é como se eles estivessem adormecidos e o nosso papo apenas os despertou, pois do contrário, ainda seriam refutados pelo tempo necessário para amadurecerem no inconsciente até serem levados ao consciente. Assim expandimos o nosso nível de percepção e mudamos a própria vida”.

Carlo acrescentou que aquilo que parecia um triste fim, agora se mostrava como o início de uma bonita jornada. Loureiro sorriu e finalizou: “Embora não seja uma regra, por vezes, no fundo do poço, a depender do comportamento de quem caiu, se abre um túnel que permite ir além. Ir além de si mesmo. É quando se abre o primeiro portal do Caminho. O indigente se transforma em andarilho. Então, tudo se transforma. Para sempre”.

 

8 comments

Joelma Papani junho 30, 2017 at 10:40 am

É fascinante assumirmos o comando das nossas vidas através do auto-conhecimento, não reportando a terceiros as responsabilidades de nossos atos, gestos e palavras! Simples assim!

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Dalmir Pinto junho 30, 2017 at 11:18 am

Maravilhoso, já estamos passando adiante, para pessoas que detém em seu coração as amarguras deste momento.

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Angélica Pellegrino junho 30, 2017 at 11:25 am

Mais um texto perfeito, pois que veio de encontro às necessidades de minha alma. Subo mais um pouquinho, rumo a minha maturidade.
Gratidão.

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Daisy Carvalho junho 30, 2017 at 2:39 pm

Excelente! Certa vez uma mulher descendente de índios falou algo parecido com esse seu brilhante pensamento. Disse ela que não devíamos ter medo do fundo do poço, que isso era melhor que ficar no meio do caminho. ” As tempestades apenas existem para corrigir as rotas dos marinheiros que ainda não sabem navegar”. Parabéns!

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Claudia Pires junho 30, 2017 at 3:59 pm

Adorei. Já estive num poço e acordei. Obgdo foi muito importante entender isso.😊

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Metamorfose Ambulante junho 30, 2017 at 5:26 pm

caminhar com passos distintos

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Anna junho 30, 2017 at 5:57 pm

Do fundo do poço, lágrimas.

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Brunão julho 2, 2017 at 7:50 pm

“As tempestades apenas existem para corrigir as rotas dos marinheiros que ainda não sabem navegar.”

Gostei do conceito de “infância da existência”

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