MANUSCRITOS VII

Essas asas não são suas

O vai e vem da cadeira de balanço compassava a fala da voz rouca e pausada de Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de semear a filosofia ancestral do seu povo através de histórias e cantigas. Na varanda da sua casa, conversávamos sobre assuntos variados ao final da tarde, quando surgiu no céu uma esplendorosa lua cheia, daquelas que se imortalizam nas lentes fotográficas e nos arquivos afetivos da memória. Impossível não se encantar. Comentei que, embora o calendário nos garantisse uma lua cheia naquela noite, o espetáculo de magia e beleza sempre nos surpreendia. Fotos são como teorias, embora não se possa negar o valor que possuem, nenhuma delas, por mais bem elaborada que seja, pode suprir os ensinamentos obtidos através das experiências oferecidas pela vida; imagens e palavras costumam se perder, e até mesmo nos confundir, no complexo universo das ideias que povoam a mente; são os acontecimentos vividos que esculpem as transformações na alma. Nem mil fotos de Paris, ou o livro mais bem escrito sobre essa bela cidade, substituirão a experiência de passear por suas ruas, disse certa vez um escritor. Nenhuma teoria será mais útil do que uma viagem de descobertas e encontros realizadas pelo próprio indivíduo ao âmago que o identifica, nos ensinou um antigo filósofo. Canção Estrela sorriu em anuência ao raciocínio; o olhar vagou como se uma recordação o levasse por estradas distanciadas pelo tempo. Em seguida, com a tranquilidade que lhe era peculiar, começou a preencher com fumo o fornilho de pedra vermelha do seu indefectível cachimbo, e disse: “A voz da mente não é a mesma da alma. A mente é uma aldeia habitada por uma enorme diversidade de vozes tanto das sombras quanto da luz. A voz da alma traz a sabedoria ancestral da origem do mundo; por isto é pura. Todos a possuem. Contudo, bem poucos sabem diferenciar uma da outra. Quando a conseguem ouvir, a verdade se torna cristalina; do contrário, seguirão com olhar embaçado e, não raro, deturpado. Sem a nitidez necessária para distinguir o bem do mal, realizarão escolhas erradas na convicção de que fazem a coisa certa”.

Em seguida, me surpreendeu: “A lua protagoniza uma das lendas mais antigas da humanidade, anterior ao mito do fogo”. Interrompi para dizer que a astrologia sempre usou a lua para fazer leituras sobre emoções e sentimentos. O xamã ratificou: “Não sem motivo; assim como a lua, refletimos a intensidade de luz que já conseguimos irradiar. Os mais variados acontecimentos, comuns aos dias de todas as pessoas, geram emoções e enraízam sentimentos na exata medida da luz que reverberamos; a mesma situação, a depender de quem a experencia, será causa de irritação e tristeza caso o sol intrínseco esteja encoberto; ou serenidade e alegria se houver claridade suficiente para compreender o lado bom de todas as coisas”.  

“Sentimentos sutis libertam as ideias para se expandirem muito além das caixas dos condicionamentos, sofrimentos e medos. De outra face, as emoções amargas embotam a razão; a verdade se apequena, as virtudes enfraquecem. A paixão esmaga o amor”. Indaguei sobre qual seria a diferença entre amor e paixão. Canção Estrelada acendeu o cachimbo, baforou alguma vezes, e explicou: “O amor traz a alegria da disponibilidade; a paixão instiga o vício pela saciedade. O amor se completa a cada gesto; a paixão segue incompleta após cada ato. Enquanto amor expande o indivíduo e a vida, a paixão os suga e esgota”. Pareceu se distrair por instantes com a dança da fumaça diante dos olhos e retornou a conversa: “Quando movidas por bons sentimentos, as ideias impulsionam o indivíduo para voarem em suas próprias asas; quando nutridas por emoções densas, a razão o encaixota nos limites de uma verdade que se amiúda. Então, devaneios se confundem com sonhos, o desvario se acredita genial. Diferente não faz a lua que se exibe garbosa, esquecendo, no entanto, que o seu brilho é de aluguel”.

Concordei com o que me parecia óbvio. Sim, a luz da lua é emprestada pelo sol que, ao se afastar, ou melhor, ao ter a Terra como obstáculo, deixa o satélite em absoluta escuridão. Canção Estrelada olhou para o céu e esclareceu: “Esse entendimento é um dos fatores a identificar o quanto de ilusão e realidade vivemos a cada momento. Isso nos fala muito sobre paixão e amor. As paixões, como gosto de denominar as emoções desprovidas de virtudes – as mil faces do amor-sabedoria – que na ausência, afastamento, desinteresse ou negação do objeto ou da pessoa desejada, desaba em abandono. Os indivíduos movidos pelas paixões têm a necessidade de buscar a luz fora de si na tentativa desesperada de escapar da escuridão interna que os atormenta; a sensação de descontentamento e desagrado é permanente. Ainda não conseguem dialogar com a alma, o sol interno que, por possuir luz própria, os liberta de qualquer dependência emocional. Não há escuridão que o amedronte; nada nem ninguém pode impedi-lo de seguir radiante. Sendo uma legítima fonte de alegrias para si mesmo, ilumina ao redor sem apresentar boletos, exigir recompensa, fazer barulho ou propaganda. Tampouco se importa que a lua se exiba vaidosa. No teatro dos dias, eufórica, a plateia a aplaude de pé sem lembrar que o espetáculo jamais aconteceria sem o seu autêntico protagonista: alguém que nunca se faz presente nos palcos da noite. No show da lua, literalmente, o sol é a estrela oculta. Sem jamais se entristecer ou aborrecer com isso, por conhecer o próprio valor, não cobra qualquer reconhecimento; o sol é o signo do amor”. Olhou para mim, como para escalar alguns tons de seriedade, e disse: “Algumas vezes, como a lua cheia, nos apresentamos garbosos sem darmos conta que apenas refletimos uma luz que não é nossa. Quando o sol se afasta, despencamos na escuridão. Atônitos, muitos demoram a entender a razão simples da própria queda. Nada sabem sobre o amor e a paixão”.

As surpresas da noite estavam longe de terminar. Koda, um jovem adulto com cerca de trinta anos de idade, morador de Sedona, com as mesmas linhas ancestrais de Canção Estrelada, surgiu no portão. O xamã fez sinal para que ele se aproximasse; tinha o visto crescer. Se tornara um homem gentil e educado; embora não morasse em Sedona havia anos, possuía muitos amigos na cidade. Naquele dia, o seu olhar estava triste. Desorientado seria a definição mais precisa. Ele se sentou; disse que precisava conversar. Não entendia a razão de as coisas terem dado errado quando fez tudo certo. Sentia-se incapaz de compreender as sequências dos fatos recentes; olhava-os em retrospectiva sem entender o momento, ou ponto, em que tudo começara a ruir.

Desde adolescente, Koda sonhara em ser mecânico de automóveis. Não se tratava de consertar carros, mas fazer com que se tornassem únicos. Queria se tornar proprietário de uma dessas oficinas que usam automóveis antigos como base, realizando várias modificações, desde inserir tecnologia de ponta, dos componentes eletrônicos ao motor, até a personalização da pintura. Por fora, antigo; por dentro moderno. O resultado é um carro incrível e sem outro igual. Era um nicho de mercado crescente e promissor. Lia todas as publicações sobre o assunto; fizera um curso em Las Vegas, onde funcionavam as oficinas mais prestigiadas desse ramo de negócios; era um apaixonado pela ideia. Queria não apenas ter a sua pequena fábrica, mas desejava torná-la a mais famosa de todas.  Como as condições econômicas não permitiam, trabalhava como mecânico em uma oficina comum em Phoenix, a cerca de duas horas de Sedona.

Certo dia, após conseguir consertar um carro cujo defeito ninguém conseguira descobrir, foi procurado por Bill, o dono do veículo. Muito satisfeito, Bill o convidou para juntos assistirem a um concorrido jogo de basquete que aconteceria em Phoenix pelas finais do campeonato. O filho de Bill, que o acompanharia ao estádio, tivera de viajar a trabalho. Koda aceitou. A sintonia entre os dois foi imediata. Conversaram muito naquela noite; o mecânico falou sobre o seu sonho. Ao final, Koda o convidou para ser seu sócio; gostaria que Bill fosse não apenas o sócio investidor, mas que usasse a sua experiência administrativa para gerir o negócio, ficando com o jovem a responsabilidade de cuidar da parte operacional da fábrica de automóveis de arte, como ele gostava de se referir aos carros que transformaria.  Bill, com quase o dobro da idade de Koda, tinha uma carreira bem-sucedida como diretor de uma empresa de tecnologia do Vale do Silício; explicou que não poderia nem tinha vontade de sair do emprego. Koda disse entender sobre montar e desmontar carros, nada sabia sobre gerenciar um negócio. Não importava que o executivo morasse longe e não pudesse estar presente na oficina. Fariam reuniões semanais por vídeo, quando as diretrizes seriam encaminhadas e acompanhadas. Sustentou que a experiência de Bill seria fundamental à manutenção e crescimento do negócio. Do dia a dia da fábrica, Koda cuidaria. Bill tinha algumas economias; simpatizara com o rapaz; sempre trabalhara em corporações sólidas e bem estruturadas; era animador o desafio de construir uma empresa a partir do zero.

A pedido de Bill, Koda fizera um planejamento de custos, listando todos os itens que precisariam para a montagem da oficina. Foram seis meses até que a pequena fábrica ficasse pronta. Ao final, foi gasto o dobro do orçamento previsto. Com gentileza, como era o seu feitio, Bill chamou a atenção do rapaz para que isso não voltasse a acontecer. Como tinham a pretensão de que a empresa tivesse um crescimento contínuo, novos investimentos seriam necessários mais adiantes. Erros assim costumam ser determinantes para o futuro de um negócio. Contudo, o executivo não ficara zangado, atribuíra o erro à inexperiência do rapaz e acreditava que serviria de aprendizado. De início, os negócios se mostraram promissores, com um volume de contratos maior do que o previsto para os primeiros meses. Era preciso estruturar o crescimento. Nas reuniões semanais realizadas por videoconferência, o passo a passo da estratégia era fornecido. O mecânico seguiu à risca todas as orientações gerenciais de Bill. A pequena empresa não possuía dívidas; a oficina prosperava. O jovem se sentia seguro; porém, descontente.

Após algum tempo, Bill notou mudanças no comportamento de Koda. Várias máquinas adquiridas não mais foram usadas. Ao invés de fazer o serviço com elas, o mecânico os terceirizava em outras oficinas. Além do desperdício do investimento realizado, as margens de lucros restaram bastante reduzidas. O mais grave, os carro eram entregues sem a qualidade que prometera para fazer da empresa uma das mais conceituadas do mercado. Quando questionado, alegou que precisava de mais tempo para os seus afazeres pessoais. Irritado, o mecânico disse que o trabalho duro restara para ele, cabendo ao executivo a confortável tarefa de dar ordens. Bill disse que não era assim, na origem da sociedade tinham combinado que um entraria com o dinheiro enquanto o outro ofereceria o trabalho. No mais, a experiência do executivo seria usada como ferramenta gerencial a pedido do próprio mecânico. Cuidar do setor administrativo tinha sido a única exigência feita por Bill para investir na montagem da fábrica. Portanto, nada havia de errado quanto a isso; esse era acordo primordial.

Bill resolveu fazer uma visita à fábrica. Ficou muito chateado; nenhuma das diretrizes traçadas eram mais seguidas por Koda, que passou a decidir à revelia das orientações do sócio. Como se não bastasse, adquiriu uma máquina caríssima que a oficina só teria condições de usar bem mais à frente, quando a produção fosse bem maior. As prestações vindouras poderiam comprometer o equilíbrio econômico, até então estável, da empresa. Embora as escolhas do rapaz se mostrassem claramente equivocadas, ele não se importava com os próprios erros, como se desejasse um confronto com o sócio. Disse que era ele quem entendia de carros e oficina; portanto, cabia a ele todas as decisões, inclusive as administrativas, em desalinho ao combinado na formação da empresa. Uma face desconhecida da personalidade do mecânico se revelava. Discutiram. Em seguida, ao invés de ajustar a rota para manter o rumo, Koda disse não ter mais interesse em ter um sócio. Não queria ninguém interferindo em seus sonhos. Afirmou que compraria a parte de Bill na sociedade. As cotas foram transferidas imediatamente; decepcionado com as atitudes do rapaz, Bill apenas queria se desvincular daquela teia de equívocos o mais rápido possível. Não exigiu nenhum documento como garantia da dívida; a dignidade do mecânico seria o fator determinante para que o pagamento fosse honrado. Koda assumiu o compromisso de restituir o dinheiro investido pelo ex-sócio no prazo máximo de um ano. Não que depois dos acontecimentos o executivo ainda confiasse no rapaz; mas sabia que nem todo combate enobrece.

Aconselhado por amigos, o jovem fizera uma projeção financeira. Calculara que antes do prazo restituiria o valor devido. Estava exultante; como único proprietário da fábrica, sem as interferências de Bill, teria condições de fazer voos cada vez mais altos. Bradava sobre o enorme poder das suas asas. Estava diante do momento angular da sua existência. Não tinha como dar errado.

A matemática da vida tem equações inusitadas. Como havia muitos contratos em vigência, de início, o dinheiro continuou entrando; então, pôde pagar as contas e honrar algumas parcelas da dívida com ex-sócio. Contudo, a sucessão de equívocos gerenciais fez com que, sem demora, começasse a operar com dificuldades financeiras. A primeira escolha foi parar de honrar o compromisso mensal assumido com Bill. Como maneira de reduzir a saída de capital, parou de terceirizar alguns setores do serviço. Apesar de conhecer muito sobre o processo de transformação de veículos, não possuía a prática; sabia a teoria, carecia da experiência.  Isto se evidenciava a cada automóvel entregue. A queda da qualidade foi causa e consequência. Os contratos começaram a rarear. Os colegas que o incentivaram com palavras e projeções para que abdicasse do sócio, não o socorreram com as dívidas crescentes. Teve de recorrer a empréstimos bancários para manter a empresa aberta. Embora não possuíssem uma única cota da empresa, na prática, os bancos se tornaram sócios majoritários de Koda, pois os juros eram maiores do que a sua retirada mensal para gastos pessoais. Ao final do prazo estipulado, não quitara a dívida com Bill conforme prometera; dever aos bancos era mais perigoso.

Enfim, admitiu não entender o motivo de a vida ter sido tão injusta. Canção Estrelada repousou o cachimbo sobre uma pequena mesa de apoio, ao lado da cadeira de balanço, e perguntou: “Pelo que entendi, enquanto teve o Bill como sócio a empresa se desenvolveu de modo estável e seguro, estou certo?”. Koda fechou os olhos, não apenas para retornar a um período próximo, mas também pelo desconforto inadmitido que essa lembrança continha. Disse sim com a cabeça. O xamã continuou: “Você sempre se destacou como um bom mecânico. Alguma vez teve a experiência de administrar uma empresa?”. O rapaz sussurrou que não. Os indispensáveis questionamentos prosseguiram: “O que o levou a crer que poderia dirigir o negócio melhor do que alguém que o conduzia de maneira correta e próspera?”. O mecânico murmurou que era ele quem entendia sobre o dia a dia da oficina; logo, as decisões deveriam ficar nas suas mãos. Canção Estrelada ponderou: “Montar um motor é um ofício de extrema relevância; erguer uma empresa possui igual valor. Conhecimentos de diferentes áreas não devem duelar; eles são complementares. Um engenheiro constrói um tomógrafo; o médico fará o diagnóstico e prescreverá a terapia adequada graças ao aparelho; ambos se mostram fundamentais à cura do paciente”.

O xamã indagou se ele ouvira falar sobre o Mito de Ícaro, uma bela história da preciosa Mitologia Grega. O rapaz disse tê-la estudado nas aulas de filosofia do colégio. Em suma, narra a aventura de um homem que, para fugir do labirinto no qual estava aprisionado, constrói asas com penas de pássaros e cera de abelha. Ao escapar, apaixonado pelo voo, se lança próximo ao sol; a cera derrete, as asas se desmancham e Ícaro despenca em queda. Canção Estrelada olhou para mim e perguntou o que eu aprendera sobre os significados dos mitos e das lendas. Respondi que sabia pouca coisa. Como todas as boas histórias, possuíam várias camadas de interpretações. O que mais me chamava a atenção era a teoria de que fala sobre um conhecimento comum a toda a humanidade, porém, enquanto não decodificado através das experiências vividas, permanecerá indisponível. Estivemos presentes, ora como atores, ora como expectadores, em diversas situações no decorrer de inúmeras existências. Vivemos e assistimos histórias não assimiladas por completo, porquanto, ainda incapazes de serem utilizadas como instrumentos de evolução. Isso faz com que mitos e lendas sobreviviam aos séculos; há algo de familiar neles que não conseguimos identificar e compreender por completo. Para ser utilizado necessita ser despertado ou, em outras palavras, emergir do inconsciente, onde ficam guardadas as memórias ancestrais, à tona da razão, o consciente. Apenas as experiências bem elaboradas nos conduzem da escuridão à luz. Somente então servirão de instrumentos ao bem viver.

Canção Estrelada fechou os olhos por alguns instantes, como se buscasse as palavras adequadas. Ao falar, a sua voz tinha um tom doce, porém, com firmeza inabalável: “Quando conheceu o Bill, você estava insatisfeito com a própria rotina. Acalentava um sonho que não conseguia realizar”. Fez uma breve pausa para ressaltar: “Realizar significa transformar uma ideia em realidade”. Em seguida, prosseguiu: “Pode parecer uma definição simples; e é. Contudo, nem um pouco fácil. A simplicidade reside na retirada dos enganos e fantasias que encobrem e mascaram a verdade. Do contrário, da realidade se fará ficção; as asas derretem, os mais belos sonhos despencam à categoria de devaneios”.

Franziu as sobrancelhas, como maneira de pedir atenção, e disse: “Você se aproximou do Bill de modo gentil e o convidou para juntos montarem um negócio. Sem a participação dele não seria possível, ao menos naquele momento, realizar o seu sonho. Não apenas pelo investimento financeiro, mas na condução dos movimentos primordiais à estrutura fundamental para um crescimento equilibrado e seguro da empresa. Era o início de um lindo e longo voo. Soluções acertadas parecem fáceis para olhos distraídos e imaturos, por não se darem conta de quantas experiências foram elaboradas para se extrair o conhecimento necessário a um indispensável conjunto de decisões sensatas. A empresa decolou; um voo tão suave que parecia simples. E era. Mas a simplicidade não é simplória nem rasa; há nela mais sabedoria e profundidade do que as multidões acreditam”.

Pegou o cachimbo, verificou se o fumo ainda estava aceso, e disse: “Era um voo tão tranquilo e promissor que você teve a sensação de que o realizava apenas com as suas asas. Passou a crer que a participação do Bill era desnecessária e inadequada. Sozinho voaria melhor”. Baforou o cachimbo e continuou: “Ocorre que você confundiu as asas dele com as suas. Não nego a importância da sua participação na empresa, mas quem mantinha a estabilidade do voo era ele. A proximidade com o sol derreteu as asas de Ícaro. Nem todos os olhos estão prontos à luz intensa; sob o risco de cegueira, ninguém se aproxima da luz sem amor. A paixão o cegou”.

Ainda sem entender por completo, Koda indagou o que o teria cegado, afinal, nada há de errado com a luz. Canção Estrelada meneou a cabeça e explicou: “Sim, nada existe de mal na luz. Todavia, a luz tem por pressuposto a verdade e as virtudes, sendo o amor elemento essencial tanto para enxergar aquela como para exercitar essas. A paixão tem como origem a verdade deturpada; traz a ilusão dos voos em asas ainda incipientes. A queda será inevitável. Assim acontece todas as vezes que, de tanto voar com asas alheias, por pressa ou imaturidade, acreditamos que elas são nossas”. Fez uma pausa para que o rapaz concatenasse o arco filosófico e prosseguiu: “O amor necessita de humildade. Por um simples motivo; sem entender a importância das pessoas, elas se tornam objetos. Tais como na paixão, servem ao uso, jamais à consagração”. Fez um gesto com a mão para ressaltar o óbvio e disse: “Consagrar é, a um só tempo, se tornar sagrado com alguém. Sagrado é tudo aquilo que nos faz intrinsecamente melhores; consagrar é caminhar ao lado de outra pessoa sob um mesmo propósito de transformações e evolução. Para saber se existe amor, entenda se houve consagração. Tudo mais é menos”.

Em seguida, esclareceu: “Ao esquecer a importância da humildade, desperdiçou o poder da simplicidade; a verdade foi fraudada aos interesses menores de ocasião. Quando acontece, a realidade se perde em desvarios. Você ficou incapaz de perceber que as asas que o mantinham no ar não eram as suas; o voo não se sustentou. Ao querer tudo para si, trocou o amor pela paixão; então, da luz se fez fogo. Por não se contentar com a claridade, escolheu se saciar dentro das chamas”. Olhou para o mecânico e fez uma pergunta retórica: “Entende porque as asas derretem?”.

Koda argumentou que sofreu muitas influências e conselhos que o levaram àquela decisão. O xamã o corrigiu de imediato: “Foram palavras que encontraram ressonância e acolhimento dentro de você. Do contrário, as teria descartado. Todo desequilíbrio revela o desconhecido que me domina. Tudo que não compreendo me aprisiona e me queima na fogueira da insensatez”.

Irritado, o jovem acusou o xamã de o depreciar. Eram de uma mesma etnia. Desde menino aprendera que todos têm asas. Canção Estrelada não permitiu que Koda usasse a máscara da vítima para se esconder da verdade desconfortável: “Não foi isso que eu disse. Sim, todos possuímos asas. O alcance e a altura dos voos dependem do tamanho das asas. Todos podem alcançar as estrelas, desde que se desenvolvam para isso. Para saber o tamanho das suas asas basta olhar para o próprio coração. São do mesmo tamanho e poder”.

Uma lágrima rebelde revelou a bagunça interna do jovem. Sem confessar qualquer arrependimento, Koda disse que aquela conversa não o ajudaria. Assim como o xamã, ele trazia consigo a filosofia ancestral do seu povo; nela encontraria as soluções que procurava. Tinha compromisso com a verdade; ela o guiaria, citou um importante aprendizado e indispensável alicerce existencial. Canção Estrelada o lembrou: “Ninguém conhece a verdade sem antes conhecer a si mesmo”. Olhou para o céu e fez um breve resumo de uma poderosa lenda nativa: “A tradição do nosso povo guarda a história de uma manta que colocada sobre o corpo concede o poder da invisibilidade. O homem que a descobre poderia usar a manta para realizar coisas maravilhosas, mas revela a verdade sobre si mesmo escondida em absurdos desejos reprimidos. Sucumbe diante dos seus equívocos. Tudo que poderia ser, não foi”. Koda conhecia aquela história; a sua avó a contava, assim como outras, nas noites de inverno. Tinham a função de servir como molde ao caráter dos netos. O xamã continuou: “Ninguém é o que sabe, mas o que faz. Mas não é só. Somos o que pensamos, sentimos e, principalmente, fazemos quando não somos vistos. As ações aos olhos do mundo falam mais do personagem do que sobre a identidade”. O rapaz disse não entender como a lenda da manta se encaixava com a sua história. Canção Estrelada foi ao ponto nevrálgico da questão: “Você montou a oficina graças ao Bill. Depois o descartou. Não queria interferência em algo que passou a acreditar que fosse só seu. Nunca foi. O compromisso assumido foi esquecido, tanto em tê-lo como sócio quanto em pagar a quantia que, por sua escolha, o fez devedor dele. A dignidade era o único fator de cobrança. O compromisso com o Bill era anterior às dívidas bancárias, mas na impossibilidade de uma cobrança nos tribunais, foi deixada para trás. Diante da feroz artilharia dos bancos, a honra se mostrou acovardada. Não fazer a coisa certa por falta de exigência legal equivale aos maus feitos praticados quando não somos vistos. O medo venceu. O amor não negocia com o medo; amor sem compromisso é amor de superfície, semelhante às paixões. Entenda as paixões e compreenderá as quedas”.

Inconformado, Koda se levantou. Chegara em busca de ajuda; escutara somente grosserias e palavras insensíveis. Desperdiçara o seu tempo com um homem rude e antiquado. Sem se despedir, abriu o portão com os pés e o fechou com as costas. Ao me voltar para Canção Estrelada percebi não existir qualquer sinal de mágoa, aborrecimento ou ressentimento. Comentei isso. Ele explicou: “A irritação dele não é comigo, mas fala de uma alma incompreendida. As muitas vozes da mente o ensurdecem para a voz da alma. Koda é um bom homem. Perdeu-se de si mesmo e arde na fogueira dos erros por fugir à verdade. Permanecerá onde se colocou até decidir se reerguer de um jeito diferente e melhor; inexiste modo mais eficaz que não seja através da humildade e da simplicidade. Sem orgulho nem enganos fará as pazes com a verdade. Somente então poderá iniciar uma nova e bonita história, na qual, enfim, voará com as próprias asas”.

Naquela noite aprendi um pouco sobre o sol e a lua. Assim como as correlações que têm com as asas e os voos.

2 comments

Maangoba junho 15, 2023 at 6:04 pm

Amigo, você não faz ideia do quanto me ajuda com seus textos. Dou a sorte (?) de os ler nos momentos que mais preciso refletir sobre o que foi partilhado.
muito obrigado

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Wllisses Thel junho 25, 2023 at 10:26 am

Luz e proteção pra ti! Infinitamente…..

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