MANUSCRITOS V

O valor do mal

“Tudo no universo se mede pela obra realizada”, citei ao Yuri um dos mais preciosos ensinamentos que me foram transmitidos pelo Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro. “Tudo mais são apenas intenções e ferramentas. Transformar intenções em vontade e ferramentas em arte é o trabalho de uma vida”, complementei. Yuri concordou. Estávamos em um restaurante próximo aos Arcos da Lapa; tínhamos almoçado, mas a conversa prosseguia animada, como costuma acontecer quando reencontramos amigos de longa data. Yuri era conhecido por sua maneira desconcertante de pensar. Embora discordássemos bastante, o seu jeito de raciocinar era cativante. Tínhamos chegado a um denominador comum: amor sem comprometimento é amor de superfície. Não basta sentir, indispensável é o envolvimento profundo como instrumento de conhecimento e realização. Eu estava satisfeito pela conclusão da nossa conversa, quando mais uma vez ele me surpreendeu: “Sem a ajuda do mal fica muito difícil a construção de qualquer coisa”. Cheguei a sentir um gosto amargo com aquela afirmação. Discordei de imediato: “Não me venha com a retórica maltrapilha de que os fins justificam os meios. Esta afirmação é de Maquiavel, um filósofo da Idade Média que defendia teses inomináveis. Não à toa, o seu nome passou adjetivar práticas e ideias nefastas”. Fiz uma pequena pausa para manter a serenidade e acrescentei: “Entendo o mal como semente do bem e também como alavanca de aprendizado e transformação. Contudo, qualquer obra sem os pilares da luz tende a desabar pelo sofrimento que provoca”.

Havia um leve sorriso no rosto do Yuri. Naquele momento eu não soube identificar se significava sarcasmo pela provocação ou se seria compaixão pela minha ignorância. “É verdade”, ele concordou comigo. Atônito, continuei sem entender se havia ironia ou sinceridade em suas palavras. Ele me olhou com profundidade por alguns segundos e resmungou: “Entendeu?”. 

Fomos interrompidos por uma mulher que, da calçada em frente ao restaurante, nos pediu uma pequena ajuda para a sua alimentação. Sugeri que pagássemos o almoço dela. Yuri ponderou que se déssemos o dinheiro que gastaríamos com ela no restaurante, seria possível que realizasse compras para comer por vários dias. Fazia sentido. A mulher, ao ouvir a aquela conversa, disse que o meu amigo tinha razão. Assim fizemos. Em seguida, voltamos à conversa. Eu disse: “Entendeu o quê? A que você se referiu com aquela pergunta?”. Ele iniciou a sua explicação: “Sobre a importância do mal”. 

Zombei dele: “A dona Jandira tinha motivos quando dizia que você era doido. Como eu era somente um garoto, acreditava que você era apenas engraçado. Agora vejo que ela tinha razão”. Yuri tornou a sorrir, me ofereceu o mesmo olhar e quis saber: “Entendeu?”.

Sacudi a cabeça, abri os braços e perguntei: “Entendeu o quê?”. Ele prosseguiu a sua teoria: “O valor de conhecermos o mal na construção e manutenção do bem”. Pedi para ele explicar melhor, caso aquilo não passasse de uma brincadeira. Yuri parecia disposto a me ensinar algo: “Falo sério. Perceba que ao não conseguir identificar se havia sarcasmo ou sinceridade em minhas palavras, você ficou desorientado, sem saber quais eram as minhas intenções. Assim, teria ficado distante de uma escolha segura, caso tivesse de fazer uma”. 

Fomos interrompidos mais uma vez. Era um homem pedindo por ajuda para se alimentar. Sem pestanejar, tirei da carteira o mesmo valor dado a mulher, havia poucos minutos, e entreguei ao homem. Como Yuri não se manifestou quanto a sua parte, o homem, já satisfeito, agradeceu e foi embora. O meu amigo voltou a sorrir, me olhar e perguntar: “Entendeu?”.

“Sim”, respondi. Em seguida, prossegui: “Entendi que você é incoerente. Ora generoso com a mulher, ora sovina com o homem, escolhendo quem vai ou não jantar hoje. Está brincando de deus?”, eu o provoquei. Sem perder a serenidade, com uma reação típica de quem está no controle de si mesmo, explicou: “Por desconhecer o mal você não pôde fazer a melhor escolha, não pôde ser justo”. Repliquei argumentando que agi com generosidade. Isto me bastava. Yuri aprofundou: “A generosidade é importantíssima, um valioso subtipo do amor. Sem ela o planeta implode e será entregue às trevas. Tanto que fui bondoso com aquela mulher, que eu nem conhecia. Já o homem, eu o conheço e você também”. Falei que ele estava enganado, pois nunca o tinha visto. Yuri aguçou as minhas memórias: “Você talvez não lembre. Ele morou na rua ao lado da nossa no Estácio. Desde garoto foi muito trançado e gostava de enganar os outros. Quando cresceu, em nada mudou. Nunca quis trabalhar, embora seja saudável fisicamente”. Como eu não conseguia me lembrar, ele foi aos detalhes: “Lembra que nos conhecemos quando o salvei da covardia de tomar uma surra de um garoto mais velho”. Sim, claro que lembrava: “Ele era conhecido como Zinho. Por recorrentes motivos, nunca foi benquisto no bairro”, recordei. Yuri deu de ombros e disse: “Por conhecê-lo pude ter a melhor escolha”. 

“Acho a vingança um gesto deplorável”, fiz questão de me posicionar de maneira clara. Yuri manteve a calma: “Eu também”. E acrescentou: “Parar de alimentar o mal é um ato de justiça pelo caráter educativo que pode proporcionar. Entretanto, para identificar o mal, eu tenho que conhecê-lo. Se algum dia fui íntimo desse mal, mas fácil de perceber a sua atuação e truques. Assim, equilibro com o bem que tenho em mim e consigo me aproximar de uma decisão mais justa”. Em seguida, me questionou: “Ser bom por ignorar o mal é um ato de bondade ou prosseguirá agigantando o mal?”. 

Yuri tinha razão em seu raciocínio. Eu começava entender onde ele queria chegar. Respondi: “Ambas as coisas. É um ato de bondade por eu agir de modo honesto e amoroso no limite da minha consciência. No entanto, de outro lado, ficarei distante de uma decisão justa, por entregar algo imerecido a alguém”. Concatenei as ideias por instantes e disse: “Assim como a generosidade, a justiça também é uma virtude. Logo, um gesto repleto em amor. Contudo, bem mais complexa e difícil de se entender. Por exigir outras virtudes, como a sinceridade, a honestidade, a firmeza, e o equilíbrio”. Yuri concordou, mas como era do seu feitio, foi além no raciocínio: “Você esqueceu uma importante virtude no rol daquelas necessárias à realização da justiça. Faltou a pureza”. Eu mostrei estranheza: “Pureza?”. Ele explicou: “Intimidade não se confunde promiscuidade.  Intimidade é o conhecimento profundo de algo ou alguém, promiscuidade é o mau uso dele. Sim, a pureza é indispensável para se conhecer o mal e estancá-lo, sem permitir as vantagens inadequadas que ele pode proporcionar. Mas apenas para que seja possível identificá-lo com clareza. Assim, impedimos a escuridão de se alastrar, pois manteremos o mal longe das nossas escolhas. Mesmo sem nenhuma intenção, a ingenuidade fomenta o mal”.

“Ingenuidade é uma espécie de ignorância e não deve ser confundida com a pureza. Viver sem segundas intenções, sejam conscientes, sejam inconscientes, longe dos desejos disfarçados em direitos, conseguir olhar sem a poeira dos condicionamentos socioculturais e a bruma dos preconceitos, analisar a situação sem as influências das próprias sombras, como o medo, o orgulho, o ciúme, a ganância, a vaidade, dentre outras, caracterizam a pureza”.

“Ao contrário do dito popular, a ignorância não protege, ela ilude. Assim nos engana quanto à luz e alimenta o mal. A plena consciência é fundamental para que possamos ter as melhores escolhas. Sem isto, seremos sempre um joguete nas mãos das sombras”.

Yuri acrescentou: “Você citou o equilíbrio também como virtude inerente à justiça, não?”. Anui com a cabeça e o meu amigo continuou: “A pureza de se valer do conhecimento do mal sem se misturar a ele, irá conduzi-lo ao perfeito equilíbrio para não descambar na ingenuidade que, na prática, pode se tornar um banquete para o mal”. Franziu as sobrancelhas e concluiu: “Ser justo é mais difícil do que ser bom. Está alguns degraus acima”.

O seu raciocínio autêntico e fora da caixa, permitia o livre pensar. Na sua sabedoria simples, ele me falava, com outras palavras, um pouco sobre os Portais do Caminho. O seu olhar sempre desconcertante me conduzia além de onde eu já tinha ido. Por ter ojeriza ao mal, eu queria me manter afastado dele. Fechava os meus olhos quando deveriam estar vigilantes. Tive de concordar e comentei: “Ter o mal à disposição, conhecer os seus truques, ouvir os seus convites e não se deixar contaminar, não é fácil. Na ânsia de eliminar o mal de nossas vidas, o mais comum é ignorar, negar ou virar as costas para ele. Desta forma, permitimos que campeie solto e termine por nos dominar. Quando nos damos conta a queda já aconteceu. O maior dos erros é acreditar que ele não existe em nós ou que já o superamos definitivamente. Manter o mal fora do nosso olhar não significa afastá-lo das nossas escolhas. Temos de manter a intimidade sem qualquer promiscuidade. Para tanto, precisamos iluminá-lo para que possa ser identificado em cada situação vivida. Somente assim a generosidade será um bem verdadeiro, pois seremos justos em nossas relações, seja com os outros, seja cada um consigo mesmo”. 

Yuri concluiu as minhas palavras: “Abdicar do conhecimento do mal é conceder liberdade para a sua atuação. Nunca seremos inteiros sem ele. Seria como amputar um membro e se tornar uma presa fácil às trevas. Conhecer o mal e usar este saber com pureza e equilíbrio é fundamental à luz”.

“Quando falamos em mal, costumamos nos reportar aos crimes hediondos, esquecendo que pequenas mentiras são espécies de fraudes que, semeadas e não estancadas, irão crescer. Pior, na maioria das vezes, de modo quase imperceptível, quando queremos justificar o próprio erro ou os desejos inconfessáveis pela vergonha que provocam, inventamos trilhas tortuosas na mente na tentativa de nos absolver sem enfrentar as responsabilidades que aguardam”. 

“Esquecemos também das pequenas irritações e malcriações, típicas da falta de paciência e de compaixão. São reações que criam vazios nas relações, distanciando corações e sonhos. Isto é um manjar para o mal. A cultura da sisudez ainda é apreciada sob o manto de uma pretensa seriedade e falsa superioridade intelectual. Em verdade, são disfarces de uma fragilidade na personalidade que se teme revelada. Seriedade é o compromisso com a própria evolução, manifestada em atitudes serenas quando o indivíduo já possui um mínimo de conhecimento sobre si mesmo e a devida coerência em relação às suas escolhas. Isto inclui a consciência sobre o mal que nos habita. Evolução não combina com orgulho nem com mau humor. Ao contrário do que se pensa, evolução combina com humildade, em razão de se reconhecer pequeno, e fica bem temperada com doses diárias de alegria”.

“A ignorância e a negação quanto ao mal são os fatores que mais atrapalham na construção do bem. Cuide do mal que lhe é íntimo para reconhecê-lo no mundo. Investigue sobre aquele que você nunca viu. Não conhecer o mal não significa que ele não exista, mas apenas que você ainda não é capaz de percebê-lo. E, portanto, não se espante ao descobrir que tem sido usado como um brinquedo nas mãos dele. Não o elimine, pois é um esforço inútil. Não o esqueça nem esqueça que você irá precisar dele. Lembre, ele é importante pelo autoconhecimento que proporciona. Ele é parte do seu ser. Apenas quando tiver ampla consciência quanto à sua atuação será possível evitar toda a sua influência. Ilumine o mal para se tornar senhor dessa relação. Somente então o bem florescerá livremente”.

“No mais, nunca seja tímido diante do mal. Aja com firmeza e amor. Entenda a sua importância, mas não esqueça o seu lugar. Que fique sempre bem clara a direção dos seus passos. Eles definem as portas que se abrem, determinando por onde você seguirá”.

Os garçons começaram a colocar as cadeiras sobre as mesas para varrer o restaurante. O tradicional sinal de que era hora de fechar as portas. A conversa animada tinha avançado pelo cair da tarde e a noite se avizinhava. Pagamos a conta e fomos andando até a Cinelândia para pegarmos o Metrô. Comentei que tinha sido um encontro memorável e deveríamos repeti-lo em breve. Yuri sorriu e concordou. Aproveitei para questionar sobre algo que ainda me intrigava: “Aprendi muito sobre o mal hoje contigo. Fazendo uma retrospectiva das nossas vidas, penso que desde a infância aprendemos a enfrentar o mal juntos. Contudo, não entendo a razão de você ter usado de violência, ateando fogo a um ônibus vazio, como instrumento de reivindicação?”. Foi a oportunidade para o Yuri concluir a lição: “Eu não iria participar do protesto. Passava pelo local rumo a outro lugar quando vi a manifestação. Parei para ver e ouvir. Por um instante de descuido, me encantei pelo discurso e acompanhei a multidão”. Fez uma breve pausa como quem faz uma reflexão antes de falar e resmungou: “Eu estava ali, mas não era eu”.

“Como assim?”, estranhei. Yuri explicou: “Não estou me isentando de nenhuma responsabilidade, estou velho demais para fugir de mim mesmo”. Tornou a fazer uma pausa antes de finalizar: “O mal é um mago poderoso que, à menor distração, nos faz sucumbir aos seus feitiços. Toda atenção é pouca. Ele mora há tanto tempo em um lugar tão próximo que podemos confundi-lo conosco”.

Da janela de vidro do vagão, Yuri acenou em despedida. Na estação, enquanto alocava um turbilhão de ideias, aguardei a chegada do trem que me levaria para casa. Era eu, mas já não era o mesmo.

Imagem: Amani A – Dreamstime.com

9 comments

Fernando Cesar Machado outubro 24, 2019 at 10:58 am

Gratidão imensurável Yoskhaz,
irmão das estrelas,
profunda e sem fim,
sem fim…

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Adélia Maria Milani outubro 25, 2019 at 9:55 pm

Gratidão★♡♥☆☆★

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Terumi outubro 25, 2019 at 11:08 pm

Gratidão! 🙏

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Paola outubro 26, 2019 at 11:37 am

Excelente!

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Mariza Feriani outubro 26, 2019 at 6:12 pm

Texto maravilhoso. Profunda reflexão sobre o mal. Gratidão!

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Carlos Roberto outubro 28, 2019 at 9:31 am

depois de tanta beleza, uma cortada abissal (participar de protesto ateando fogo num ônibus) e cheia de maldade pura.
verdades e fraqueza. Bem e mal, faces da mesma moeda, cada um escolhe o lado e segue seu karma

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ELVIS MIRANDA novembro 2, 2019 at 1:41 pm

Bem e mal, faces da mesma moeda, onde esta seu coração, ai estará você, mas para saber qual lado escolher, você precisa conhecer os dois, e somente ao conhecer os dois você poderá seguir o caminho do meio, sabendo o que é bom e o que é ruim, permanecendo sereno em todas as situações e sabendo onde deixar seu coração ficar. Obrigado Mestre, sempre nos fazendo pensar “fora da caixa”.

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Karllus novembro 26, 2019 at 9:53 am

Bom café

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Michelle dezembro 9, 2022 at 11:05 am

Gratidao

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