MANUSCRITOS II

O sentido da vitória – outra vertente

 

Eu estava acompanhando o carpinteiro que trocava as dobradiças do portão do mosteiro quando fui surpreendido pela chegada de um sobrinho do Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem. O jovem, na casa dos trinta anos de idade, tinha as feições transtornadas e chegara em busca de algumas palavras do tio que pudessem explicar a tempestade que assolara o seu casamento. Ao encaminhar o rapaz, encontrei o Velho na biblioteca do mosteiro lendo As Parábolas de Rumi. Embora fosse um lugar de absoluto silêncio, como estávamos a sós, o monge decidiu que ali mesmo conversaria com sobrinho, ao menos até o momento em que chegasse alguém. Fiz menção de me retirar, mas o monge pediu para que eu ficasse. Sem demora, o rapaz desabou toda a sua incompreensão e mágoa sobre o que estava acontecendo. Explicou que o início do casamento fora muito complicado e apenas depois de muitas brigas conseguiu convencer a esposa da necessidade de ela mudar o seu comportamento em relação a diversos aspectos da sua vida social e profissional. Precisava entender que se tornara uma mulher casada. Acrescentou que havia sido uma vitória, após muitas discussões, a mudança de atitudes da esposa. No entanto, logo depois, ela começou a ficar triste sem motivo aparente. Deprimida, procurou ajuda com uma conhecida psicanalista. O tratamento fez efeito, pois, aos poucos, ela recuperou o sorriso aberto e encantador. No entanto, há poucos dias ela comunicou que desejava o divórcio. O jovem não entendia a falta de reconhecimento da esposa, pois ele atravessara ao seu lado o período mais sombrio do romance e, quando tudo parecia resolvido, ela decidira partir. Não, não concordava nem entendia a separação. Mesmo assim, a mulher foi embora levando consigo apenas o que cabia em uma mala.

O Velho balançou a cabeça e disse: “No lugar dela eu faria a mesma coisa”. O sobrinho se irritou. Exaltado, argumentou que era impossível o tio não perceber o quanto de ingratidão representava a atitude da esposa, pois ele sempre oferecera o seu melhor para ela e, agora que tudo parecia ficar bem, resolvera abandoná-lo. O monge arqueou as sobrancelhas como que discordando dos fundamentos do rapaz e explicou com a voz serena: “Oferecer o seu melhor não significa impor as suas verdades ao outro. O que a princípio se pensou um presente pode terminar por se tornar desagradável e opressor. É preciso entender as sutilezas da verdade. A verdade se altera de acordo com a expansão do nível de consciência individual e, por isto, deve ser oferecida, sempre de maneira clara e suave, jamais imposta. Nem a maior de todas as Verdades pode ser entendida por todos. Cumpre a cada qual lançar a semente no solo com carinho e paciência. No momento oportuno, se for boa, germinará. A boa semente não se perde, são flores que não plantamos para nós, mas em retribuição à vida, no maravilhoso jardim da humanidade”.

O sobrinho insistiu que apenas adequou o comportamento dela à nova realidade de mulher casada. Acrescentou que não poderia ser o mesmo de quando era solteira. Quis saber se o tio lhe dava razão. O Velho respondeu: “Não importa se as suas reivindicações eram pertinentes. O que sei é que você não soube conviver com as diferenças quando a obrigou aos seus conceitos e padrões de comportamento. Certo ou errado, acabou por se comportar como o tirano pessoal dela”.

A irritação do jovem subiu de tom. Estava indignado pelo fato do tio não entender que a mudança da esposa era fundamental para o sucesso da relação afetiva. Caso contrário, insistiu, o casamento acabaria. O Velho deu de ombros e falou: “E acabou. O pior é que você não conseguiu ser feliz nem mesmo durante a sua existência. No início as discussões, depois a depressão dela e, por fim, quando ela se recuperou, o próprio fim do matrimônio. Tudo que poderia ter sido, nada foi”.

O sobrinho tornou a tocar na questão da ingratidão da mulher. O Velho não abandonava a paciência: “A separação representa para ela, neste momento, a necessidade da libertação inerente a qualquer pessoa. Ao impor as suas verdades, certas ou não, você a dominou. Obrigá-la à obediência não significa necessariamente ter conseguido que ela olhasse a vida através das suas lentes. Ela cedeu para encerrar as brigas. Porém, ao fazer isto, abdicou de parte importante do próprio ser. A tristeza foi inevitável”. Deu uma pausa e prosseguiu: “Este é o equívoco que cometemos todas as vezes que tentamos convencer os outros sobre as nossas verdades: podemos acabar por fazer o mal e não o bem que sinceramente pretendemos. A liberdade é um dos alicerces para a felicidade. Ao aprisionar a esposa no cárcere do seu olhar você a envolveu em esfera de melancolia. Ela deixou de ser ela para representar um personagem ao feitio do seu agrado. Assim, passou a te perceber não mais como o homem a ser amado, mas como um carcereiro do qual precisava se libertar. A separação passou a representar o fim de um ciclo de dominação, opressão e vigilância”.

O rapaz argumentou que poderia ser de outro jeito. Talvez uma conversa pudesse resolver a questão sem a necessidade de medida tão extrema. O Velho respondeu: “Sim, talvez ela tenha tentado e você esteve tão inflexível em sua posição que não percebeu a oportunidade. Sim, sempre é possível e aconselhável o diálogo como bom aparador de arestas. Porém, para a palavra atingir toda a sua força é necessário que saibamos não apenas falar com serenidade, é preciso aprender a ouvir com paciência e tolerância. Todos têm a suas verdades. O amor exige isto para que possa florescer”.

O sobrinho tornou a insistir na tecla da ingratidão da esposa. O tio o corrigiu: “Não adianta agora trazer para si o papel da vítima. Esta fantasia não lhe cabe e apenas vai atrasar todo o entendimento que você precisa para voltar a ser feliz. Entenda que o amor é uma jornada de libertação, nunca um jogo de dominação onde deve prevalecer a vitória da vontade de um sobre o outro. Não raro confundimos a ordem com a paz. Enquanto a dominação traz a ordem, sempre relativa a aparência; a libertação apresenta a paz, fundamental para a essência do ser”.

O jovem balançou a cabeça e disse que o tio não conseguia entender o que acontecia, talvez pelo fato de estar viúvo há muitos anos. O Velho sorriu e rebateu com doçura: “O amor é muito antigo e rege o mundo desde tempos imemoriais. Sofremos por que não o entendemos em toda a sua amplitude. Sofremos por temer tudo que não podemos controlar, por tentar aprisionar o que só existe se for livre”. O sobrinho acrescentou que acreditava que a esposa era a ‘mulher da sua vida’, que ela passava por um momento de transtorno e logo tudo voltaria ao normal. O monge deu de ombros e falou: “Você se ilude ao acreditar que o normal é manter o outro limitado à sua vontade. O normal é ser feliz. Quando sofremos significa que algo tem que ser transformado. Não no outro ou no mundo, mas dentro de nós. Foi isto que a sua esposa fez. Enquanto ela foi ‘a mulher da sua vida’, sofreu. Até que se encontrou consigo mesmo, com a pura essência que existe em cada um de nós e entendeu que podia ser diferente e melhor. Então, percebeu a necessidade de partir. Sim, ela precisava partir pelo simples fato de você perder o compasso dos passos dela. O ritmo se tornou outro, ficou impossível dançarem juntos. Porém, isso não deve ser encarado como derrota, mas como ensinamento e superação. Assim evoluímos”. Deu uma pausa antes de concluir: “Preste atenção e perceba que você também não foi feliz durante a existência desse casamento”. Mesmo zangado o sobrinho agradeceu. Lamentou que aquela conversa não tivesse ajudado, girou nos calcanhares e partiu.

Eu quis saber como o rapaz ficaria. O Velho fechou os olhos e disse com sincero pesar: “Ele passará por um período de indignação e revolta, achando que a vida é injusta, a humanidade não presta e se sentindo um pobre coitado. Será uma fase difícil e triste até que se canse de sofrer e entenda que o universo não dá a mínima para quem adora o comodismo do discurso da vítima. Então, entenderá que para modificar o Caminho é necessário mudar o jeito de caminhar. Dessa maneira as derrotas acabam por se tornar valiosas operárias da vitória. Assim como o esterco fedorento ajuda a germinar a mais bela das flores, o mal acaba por se tornar um precioso adubo para a semente do bem, que aguarda para se transformar em todas as suas potencialidades de raiz, caule, folha, flor e fruto. Então, novamente semente”. Deu uma pausa e concluiu: “Aprender, transmutar, compartilhar e seguir. Esta é a cartilha”.

Ficamos sem dizer palavra até que rompi o silêncio. Perguntei por que as relações, sejam afetivas, sociais ou profissionais costumam ser conflituosas. O Velho respondeu: “Agimos no microcosmo na exata maneira como enxergamos o macrocosmo”. Falei que não tinha entendido. O monge foi didático: “Se você vê o mundo como um teatro de guerra, o outro é o inimigo a ser batido; se você vê o mundo como um jogo de poder, o outro será o adversário a ser subjugado para que se adeque aos seus interesses, desejos e verdades”. Olhou nos meus olhos e disse: “Os cemitérios são os verdadeiros monumentos das guerras; um rastro de mágoa e ressentimento é a consequência gerada pelos derrotados em modernos batalhões por vezes ansiosos, ora deprimidos. Enquanto o seu oponente for o outro haverá intolerância e sofrimento. Não existe a vitória sobre o outro. Isto é uma ilusão. Quando há adversário existe apenas dominação. Haverá ordem, nunca paz; existirá aplauso e exaltação, nunca alegria e equilíbrio”.

“No entanto, quando passamos a ver o mundo como uma enorme praça ainda em construção, um lugar para encontros, aprendizados e comunhão, traremos esse olhar para as relações pessoais. Entenderemos que o adversário a ser batido está dentro de cada um de nós e não fora. O outro, mesmo quando se opõe aos nossos passos, não deve ser encarado como um problema, mas como oportunidade de aprendizado e fortalecimento; alavanca de evolução. A única vitória que traz harmonia, liberdade e plenitude é a vitória sobre si mesmo: a superação das próprias fraquezas e dificuldades. O maior dos inimigos não está nas ruas, mas escondido em nossas entranhas, manipulando as melhores escolhas, podando as asas e negando o voo. Nos impedindo de fazer diferente e melhor. A iluminação e transmutação das sombras em si mesmo é a verdadeira libertação. Apenas isto o torna melhor, o faz ser pleno, tece a paz. Nada mais. Somente ajudaremos na construção desta civilização inacabada na medida da evolução individual. Esta é a única transformação possível. Não há outra. Para tanto é indispensável a importante batalha que travamos no âmago do próprio ser, no mergulho profundo para saber quem somos e as metamorfoses que precisamos operar. Esta é a verdadeira vitória. Ou continuaremos como lagartas a gritar que as borboletas não existem: são absurdas criações dos poetas e dos loucos”.

 

 

yoskhaz

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6 comments

Gabriel Rissoli Ramos setembro 19, 2016 at 1:18 am

Seus ensinamentos, vem me ajudando, dia após dia, transmutar um contingente de informações e fatos em algo mais claro… Em luz!
Nesse mundo de hoje é muito difícil encontrar paz com os objetivos e ansiedades, porém a forma simplificada e didática de desdobrar tanta filosofia com que faz, é realmente brilhante e por isso ilumina!
Obrigado!

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Ary Carvalho outubro 18, 2016 at 1:08 pm

Recebi um texto pelo Wat’s app intitulado Destinatário Errado, e fiquei muito feliz em lê-lo. Esse texto me trouxe até esse site e que ao ler mais um texto, esse acima, me fez realmente maravilhar com o escrito. Portanto parabenizo e agradeço pelos textos e gostaria de saber o que é ou quem é yoskhaz, e quem é o site e quem é o autor desses textos maravilhosos. apenas li dois, mas pretendo ler o restante. obrigado. abraço.

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Christina Mariz de Lyra Caravello outubro 18, 2016 at 11:18 pm

“Este é o equívoco que cometemos todas as vezes que tentamos convencer os outros sobre as nossas verdades: podemos acabar por fazer o mal e não o bem que sinceramente pretendemos. A liberdade é um dos alicerces para a felicidade.”

Este é o equívoco que cometemos todas as vezes que tentamos nos convencer de nossas verdades. A liberdade é um dos alicerces para a felicidade. E insistindo em nos enganar, estamos construindo nossa própria prisão.

O normal é ser feliz. Quando sofremos significa que algo tem que ser transformado. Não no outro ou no mundo, mas dentro de nós. Temos que reconhecer que nem sempre amar o outro da nossa maneira significa que o outro esteja na mesma frequência e aceitar isso é o primeiro passo, é aceitar um novo jeito de caminhar, para modificar o Caminho.

“O outro, mesmo quando se opõe aos nossos passos, não deve ser encarado como um problema, mas como oportunidade de aprendizado e fortalecimento; alavanca de evolução. ”

Dessa maneira as derrotas acabam por se tornar valiosas operárias da vitória, da vitória através de outra vertente. “A única vitória que traz harmonia, liberdade e plenitude é a vitória sobre si mesmo: a superação das próprias fraquezas e dificuldades.”

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Jokebed dezembro 31, 2016 at 8:47 am

Obrigada pelos ensinamentos maravilhosos, onde faço pra encontrar o livro na minha cidade ? Moro Fortaleza, Ceará.

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Yoskhaz dezembro 31, 2016 at 3:42 pm

Apenas através do site da editora http://www.tintalivre.com
Obrigado por suas palavras gentis.
Que a paz seja convosco!!!

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Silvelena janeiro 6, 2017 at 12:08 pm

Texto fantástico, quanto ensinamento nas palavras. Obrigada por compartilha.
Namastê.

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