MANUSCRITOS VII

Arrumar as gavetas. Depois, passar a limpo

O mosteiro ainda adormecia quando fui à cantina atrás de uma caneca de café. Sentado à última mesa, cujas janelas ofereciam vista para as montanhas, o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, se deliciava com uma fatia de bolo de aveia enquanto admirava a encantadora paleta de cores oferecida pelo céu ao amanhecer. Ele sorriu ao me ver e fez um gesto para eu me sentar ao seu lado. Antes, me municiei com uma caneca de café para ajudar a embalar as ideias, ainda modorrentas àquela hora. Estávamos no mosteiro havia uma semana; era um período de estudos que se apresentava promissor. As aulas, palestras e debates ofereciam inúmeros instrumentos que se mostravam de extremo valor pela sua aplicabilidade no dia a dia. Exercícios para o bem viver, era como eu me referia aos deveres de casa deixados pelos conhecimentos oferecidos na Ordem. Naquela manhã assistiríamos uma palestra ministrada pelo Velho. Perguntei qual seria o tema. “Arrumar as gavetas. Depois, passar a limpo”, ele respondeu com a sua voz mansa e doce. Sorri. Eu sabia que não deveria interpretar o título de forma literal, mas fiquei curioso como ele usaria a analogia para nos explicar algo que, por sua enorme simplicidade, tínhamos dificuldade em perceber a utilidade e o valor. Como estamos acostumados aos enfeites e maquiagens usados em todas as coisas, passamos a não enxergar a beleza genuína que há em quaisquer pessoas e situações. Este é o enigma das coisas simples. Comentei isso. Ele arqueou os lábios em sorriso e me surpreendeu: “Não se trata de nenhuma analogia. Quero falar sobre como insistimos em viver o rascunho de quem somos, protelando indefinidamente a arte final”. Comentei que a evolução era constante e infinita, de modo que nunca estaríamos prontos em definitivo. O bom monge ponderou: “Sim, é verdade, mas também não é. A cada ciclo de aprendizado se faz necessário aprontarmos a arte final daquela transformação específica, permitindo que os conhecimentos adquiridos sejam aplicados à prática. Somente assim poderemos seguir em frente. Enquanto vivermos o rascunho de quem somos, sem encerrar a fase de aprendizado, transmutação e a consequente aplicação no viver, não haverá avanço”. Bebeu um gole de café e explicou: “Sei, mas não sou; é o rascunho. Consigo ser o que sei; a arte final. Então, estaremos aptos a galgar novos limiares”. 

Fez uma breve pausa antes continuar falando sobre a palestra: “Abordarei também como, antes de passar a limpo, se faz necessário arrumar as gavetas”. Sem que eu precisasse perguntar, ele explicou: “Vivemos em constantes conflitos pelo fato de não nos permitirmos tempo para arrumar a bagunça dos pensamentos e das emoções em seus devidos lugares. A mente e o coração são como dois valiosos arquivos, fontes fundamentais de poder e riqueza. O poder reside na mente, toda riqueza se encontra no coração”. 

Bebeu um gole de café antes de prosseguir: “Existe uma gaveta adequada para que cada ideia e emoção fiquem arrumadas em nós. Quando bagunçadas, o conteúdo resta perdido ou esquecido; amor e sabedoria são desperdiçados. Dependendo da desarrumação, as gavetas podem nem fechar, gerando sintomas que variam do desconforto ao desequilíbrio. Esse é um dos principais fatores que nos impede de transformar o rascunho em arte final. Aquilo que está mal arrumado segue inacabado”.

Antes que eu pudesse discordar, fomos surpreendidos pela entrada de Javier, um simpático monge que residia em Barcelona. Ele era uma pessoa alegre e descolada dos padrões usuais de comportamento, como um fiel representante da cidade onde morava. Ainda não tínhamos encontrado com ele; pois, em razão problemas particulares chegara ao mosteiro somente na noite anterior. Para nossa surpresa, ele trazia duas olheiras fundas de uma noite mal dormida. Murmurou que precisava conversar enquanto eu puxava uma cadeira para ele se sentar conosco. Sem que nenhuma indagação fosse necessária, Javier contou que a sua vida tinha virado pelo avesso. Havia cerca de dois anos, tinha dado uma guinada angular em sua existência. Apaixonado por uma jovem aspirante a atriz, quase vinte anos mais nova do que ele, encerrou um casamento com quase a mesma idade que a moça. Ato contínuo, pedira demissão de uma empresa ligada à indústria naval, na qual esteve empregado desde o estágio universitário, para montar uma pequena fábrica de cosméticos veganos em parceria com a namorada. O período inicial foi de enorme euforia, quando os planos projetavam um futuro promissor para o negócio, uma vez que estavam se antecipando a uma tendência, à época ainda não adotada pelas tradicionais marcas existentes no mercado. Como partiriam na frente, acreditavam que assegurariam uma confortável posição junto aos consumidores. A fortuna lhe sorria no amor e nos negócios.

Contudo, as projeções se mostraram equivocadas. As vendas não deslancharam conforme as previsões. Talvez os cosméticos veganos tenham chegado às prateleiras antes de as pessoas se interessarem por esse tipo de característica nos produtos. Um erro associado a outros, como uma divulgação ineficiente e pouco capital de giro. Agravado pela fraca demanda, as economias pessoais de Javier se esgotavam rapidamente. As dívidas começavam a acumular e os dias se tornaram pesados em preocupações. Como um hábil enxadrista, a falência o encurralava a um inevitável xeque-mate. Ato contínuo, havia pouco mais duas semanas, a jovem encerrara abruptamente o relacionamento. Tinha se apaixonado pelo ator que seria o Romeu na peça que ela interpretaria a Julieta.Odeio Shakespeare, Javier fez uma anedota ácida com o próprio sofrimento. Em seguida, disse odiar quem ele se tornara. O Velho arqueou as sobrancelhas. Não era uma piada.

Javier precisava de acolhimento; uma maneira de oferecer a alguém um espaço confortável dentro da gente para que a outra pessoa tenha condições de iniciar o processo de regeneração. Assim como a semente precisa de solo fértil para germinar. Sentir que se preocupam conosco equivale a se sentir amado, fundamental nos momentos em que a vida parece de uma aridez extrema. Etapa seguinte, compreender que todos temos capacidades intrínsecas de criar caminhos inusitados, gerar força e equilíbrio indispensáveis à reconstrução de quem somos. Somente avançamos quando andamos com as próprias pernas; tudo mais é a luz alheia a nos ajudar a sair da escuridão provocada pela destruição de quem éramos, para nos mostrar que sempre existem passagens ocultas, mesmo entre paredes enormes e sólidas, aparentemente intransponíveis a olhares afoitos e despreparados. Entender esse movimento interno é fundamental à regeneração; uma fantástica maneira de se tornar a criatura da sua melhor criação. Regenerar-se é encontrar os fragmentos perdidos, cicatrizar feridas, ficar inteiro e seguir em frente, em uma versão aperfeiçoada de quem fomos. Regenerar-se é renascer em si mesmo.

O fenômeno da morte física é inexorável. No entanto, há situações tão complicadas que pode nos levar a morte existencial.Ocorre quando não encontramos a força e o equilíbrio necessários para renascer das ruínas que restaram dos nossos dias. Somos tomados pela absurda e nociva sensação de que a vida não vale a pena. Acreditar nestas ideias e se deixar conduzir pelas emoções densas que as embalam, significa perder a si mesmo. A luz interna se apaga; não há derrota maior. Nestes casos, mesmo que o corpo físico ainda esteja vivo, a alma se arrasta em farrapos. Situações assim se equivalem à morte. No entanto, jamais significa que a batalha foi perdida. Sempre é possível se regenerar caso haja vontade, coragem e amor-próprio. A vontade impulsiona à ação; a coragem nos torna maior que as dificuldades; o amor-próprio é uma modalidade de autoconhecimento no qual aprendemos a nos encantar com as virtudes que já possuímos, ao mesmo tempo que aceitamos as sombras que ainda nos dominam, mas com o firme propósito de iluminá-las para que se transformem em inusitadas virtudes a serem agregadas à caixa de ferramentas do bem viver.

Javier falou sem qualquer interrupção. Ao final, disse que a sua vida tinha se tornado um caos. Com a doçura típica daqueles que conhecem os complicados meandros dos labirintos da mente e do coração, com a voz embalada por sincera compaixão, o Velho vaticinou: “O caos é do bem”. Bebeu um gole de café antes de prosseguir: “No entanto, para se tirar proveito de uma crise, sofrimento ou dano de qualquer espécie, se faz necessário arrumar as gavetas. Depois, passar o rascunho a limpo”.

Fui buscar mais café. Expliquei que era preciso deixar os meus neurônios em estado de total atenção. Havia naquela conversa um conhecimento disponível que eu não estava disposto a perder. Eles riram e pediram para que trouxesse café para todos. Voltei com três canecas fumegantes. O Velho prosseguiu: “No entanto, o caos não transforma ninguém automaticamente. Tampouco, da noite para o dia. Extrair do caos o amor e a sabedoria disponíveis é um rito de passagem para outro estágio de entendimento, que se refletirá em um novo jeito de ser e de viver. Conhecer-se e transformar-se. Assim retornamos das profundezas de onde estávamos para emergir à tona da vida. Quem nos conduz nesta escalada é a luz que fomos buscar no âmago de quem somos. Esta é a espada mágica dos verdadeiros heróis; assim é a história de cada pessoa. A minha luz é a minha Excalibur!”.

O Velho arqueou os lábios em sorriso, como estivesse se divertindo com a metáfora utilizada, e argumentou: “Todas as espadas estão escondidas no fundo de um castelo assombrado, povoado pelos nossos medos e sofrimentos. Quando nos recusamos a ir buscar a espada, o caos nos leva até lá. Conquistar a si mesmo é a indispensável obra da vida”.

Parou de falar por alguns instantes e nos perguntou: “O que vocês entendem por responsabilidade?”. Calamos. Nunca tínhamos refletido sobre o significado e o alcance dessa palavra. O Velho respondeu: “Aceitar as responsabilidades definem a amplitude e a profundidade que cada pessoa estabelece para a sua vida, ou seja, o alcance da sabedoria e do amor com os quais decidimos atravessar a existência”. Franziu as sobrancelhas e esclareceu: “Claro, temos o direito de recusar qualquer delas, ou mesmo todas. Contudo, uma vida sem responsabilidade tornam os dias vazios; um folhetim ruim de se ler”.   

O monge barcelonês quis saber como sair do caos. O Velho esclareceu: “Só retornam aqueles que encontram a espada sagrada. Em outras palavras, acendem a própria luz”. Balançou a cabeça para ressaltar: “Não há outro jeito”.

O Velho prosseguiu: “Decifre o caos. Então, o terá como mestre”. Sorriu e murmurou como se falasse consigo: “Muitos procuram por mestres em escolas iniciáticas, templos, mosteiros, entre outras irmandades e congregações. Nesses lugares se tem acesso a conhecimentos valiosíssimos. Pode-se conversar com muitos sábios, mas não haverá nenhum mestre. Os mestres nos aguardam no caos. Eles irão nos ensinar a arrumar as gavetas, tanto as da mente quanto as do coração. Inclusive as gavetas que evitamos abrir na tentativa de não lidar com tanta coisa que incomoda. Em seguida, estaremos em condições de passar o rascunho a limpo; corrigir os erros para aprontar a arte final daquele ciclo existencial”. 

Em seguida, acrescentou: “Entender os enganos, admitir os erros, modificar aspectos que não funcionam bem dentro da gente, ajustar ideias e faxinar emoções equivalem a passar a limpo o rascunho do atual ciclo existencial. Há que se ter maturidade para aceitar que o caos é consequência lógica das escolhas anteriormente realizadas. Cada indivíduo é o provocador das situações que vive. Perdoar o mundo e se perdoar; um exercício que permite transformar perdas em ganhos. O perdão é pedra angular da evolução; elemento inconteste para se viver o amor em sua maior extensão. Trata-se de um portal de acesso para o renascimento a partir das próprias ruínas”. 

O bom monge fez questão de nos lembrar: “Há que se ter humildade para afastar a vergonha de lidar com os próprios erros e simplicidade para despir as máscaras que usamos para ser quem não somos. Não sinta vergonha. Lembre que apenas os orgulhosos e vaidosos se envergonham dos seus erros, pela imagem fictícia de superioridade que desejam vender, seja ao mundo, seja para si mesmo. Não há fonte de desequilíbrio maior”. Fez uma breve pausa e seguiu com a explicação: “Aproveite o caos para conquistar essas respeitáveis virtudes. No castelo assombrado, antes de chegar ao cômodo onde a espada sagrada o aguarda, terá de passar pela sala do espelho. Para tanto, se faz imprescindível examinar atentamente a exata imagem refletida. Impossível se a alma não estiver desnuda, sem nenhum enfeite ou adorno. Faz-se necessário um espelho que mostre apenas a verdade, nada além dela. A verdade é a raiz de todas as transformações. Tudo mais são discursos que encantam pelas belas palavras, porém, se mostram vazios em utilidade”. 

Javier interrompeu para dizer que se sentia enganado pela moça, pois se confessara apaixonada. Ela o convidara para juntos construírem um novo estilo de vida, repleto de amor e parceria. Isto o levou ao divórcio do primeiro casamento e à demissão da empresa de construção naval, a qual dedicara todos os dias da sua existência adulta. Quando a fábrica de cosméticos ruiu, ela não quis enfrentar as dificuldades financeiras ao lado dele. Decidiu ir embora com um novo namorado. Ela destruiu a minha vida, afirmou com lágrimas nos olhos. 

Embora houvesse doçura na sua voz, o Velho interveio com a firmeza necessária: “Não cometa outro engano. Esse raciocínio o afasta da sua espada sagrada. Lembre, você só acenderá a sua luz se enfrentar as próprias sombras. Para tanto, terá de tratá-las com amor e sabedoria. Não há outro jeito”. Javier disse precisar de ajuda, pois estava com dificuldade para entender. A misericórdia do bom monge era admirável: “Não trate ninguém como inimigo. Responsabilizar os outros por nossas perdas é negar da responsabilidade que nos cabe. Lutar contra os outros é a maneira mais comum de fugir de si mesmo e sair do Caminho. A luz se apaga, então a perda se torna real”. Em seguida, explicou: “Entrar em disputa com outras pessoas, tratar aqueles que nos desagradaram como se fossem adversários, talvez seja o erro mais comum. Estamos condicionados a vencer os outros. Um equívoco. Isto nos faz lutar a guerra a errada”.

O Velho explicou: “Vencer a si mesmo, conquistar-se e prosseguir a viagem é a grande vitória. Para tanto, tenha compaixão por você e por todas as pessoas que eventualmente o prejudicaram de algum jeito. Não podemos exigir de ninguém a perfeição que não temos para oferecer. Na maioria das vezes, não fazem para nos atingir, mas por entenderem o que é melhor para elas, sem a necessária percepção e sensibilidade de que outras pessoas podem restar prejudicadas. Repito, a compaixão é uma indispensável ferramenta de libertação”. Tornou a bebericar o café antes de continuar: “Outras vezes, algumas pessoas exercem escolhas que contrariam nossas vontades. Lembre, todos têm direito a isso; ninguém está neste planeta somente para nos agradar”. Esperou um pouco para Javier concatenar o raciocínio e acrescentou: “Em relação àquelas que praticam deliberadamente o mal, perdoe-as para que possa se libertar delas. As experiências desastrosas devem se tornar fontes de valiosos aprendizados, nunca uma cruel prisão emocional. Enquanto houver mágoa, existira um nefasto desejo de vingança. Os dias serão ásperos. Então, sem nos darmos conta, acabamos por eleger o cárcere onde iremos morar”.

O bom monge seguiu didático: “Os riscos são inerentes aos negócios e à vida. Ter serenidade para lidar com os reveses revela maturidade, uma virtude das pessoas que já são capazes de lidar com as consequências indesejáveis das próprias escolhas. A moça foi embora; ela tinha direito a fazer isso. Lembre que você fez a mesma escolha quando encerrou o primeiro casamento. O importante agora é avaliar as decisões tomadas nos últimos tempos e quais os verdadeiros motivos o impulsionou a cada uma delas. O quanto havia de virtudes e sombras em cada movimento. Perdoe-se. Aprenda com os erros, mas faça com alegria e leveza. A verdadeira vitória está em acender ou manter acesa a própria luz. Do contrário, a escuridão que você gerou ao seu entorno o impedirá de sair do lugar”. 

Em seguida, sugeriu: “Abra as gavetas. Algo simples de entender, não necessariamente fácil de fazer. Você encontrará muitas coisas que trarão enormes incômodos. Não se assuste; o objetivo é esse. Comece por identificar tudo aquilo que não mais lhe serve ou que não lhe deixa bem. Você encontrará ideias obsoletas e emoções deletérias que, enquanto estiverem na gaveta, impedirão que haja espaço para um novo jeito de pensar e amar. Livre-se de todas essas porcarias”.

Os ensinamentos prosseguiram: “Depois, procure no fundo das gavetas pelas ferramentas esquecidas. Há muita coisa valiosa que, por vários motivos, paramos de usar. Não raro, há mais amor e sabedoria escondidos dentro da gente do que nos damos conta. São preciosidades guardadas debaixo de tantas frustações e mágoas que nem mais lembramos que as temos à disposição. Comece sendo gentil com todas as pessoas. Uma virtude que tem poder encantador de mudar as frequências energéticas, nos envolvendo em agradável atmosfera de bem estar. Depois, busque por outras virtudes. Você as encontrará à medida que vasculhar as gavetas. Algumas nunca foram usadas, outras restaram esquecidas. Virtudes são autênticas fontes de luz; não existe hora melhor para serem utilizadas”. Os primeiros raios de sol da manhã romperam as vidraças. O Velho arqueou os lábios em sorriso e disse: “Mostre a outra face de si para si mesmo. A face da luz. Então, o mestre adormecido despertará”.

A lição continuou: “Depois de retirar das gavetas aquilo que não tem mais serventia, coloque as coisas que nunca entraram por falta de espaço. São aquelas prioridades infinitamente adiadas. Isto pode significar retomar antigos projetos, conviver mais tempo com pessoas queridas e agregar novas virtudes a seu novo jeito de ser e viver, como quem leva a alma à academia ginástica. Lembre, cada virtude tem o poder de desmanchar uma ou mais sombras. Assim acendemos a própria luz; cada pessoa conquista a si mesmo ou, se preferir, encontra a espada sagrada. Ao voltarmos do castelo assombrado seremos pessoas diferentes e melhores. Mais fortes e equilibradas; mais sábias e amorosas. A realidade se modificará sem que precisemos cobrar nada de ninguém ou enfrentar qualquer inimigo. Em verdade, eles não existem. Quando entendemos o poder que temos para resgatar a própria vida sem precisar derrotar nenhum adversário, que tudo é a gente com a gente mesmo, que não há dependência quanto ao comportamento ou reação das outras pessoas para que tenhamos acesso ao mel da vida, ficamos frente a frente com a leveza e a liberdade”. 

Deu de ombros e disse: “O conteúdo das gavetas, assim como a maneira como estão arrumadas, estabelecem a elegância e a resiliência de quem as usa”. Piscou um olho como quem conta um segredo e revelou: “Gavetas bagunçadas guardam porcarias e escondem tesouros. Gavetas desarrumadas não fecham; emperram. Perdemos a capacidade de movimento. Tropeçamos”.

Esvaziou a caneca de café, pediu licença e disse que precisava se preparar para a palestra. Vimos aquele corpo alquebrado se afastar em passos lentos, porém, com incrível firmeza. Ficamos sem dizer palavra por algum tempo até que Javier falou que aproveitaria o dia para refletir sobre tudo que havia sido conversado. Iria passear pelas várias trilhas que havia nas montanhas que abrigavam o mosteiro. Assim o fez por toda a semana. Pela manhã, após o café, ao invés de ir para as aulas, debates ou palestras, caminhava pelas montanhas. Perguntei ao Velho de tinha notado. O bom monge fez sim com a cabeça e falou: “Já há conteúdo demais a espera de arrumação nas gavetas de Javier. Ele já tem condições de separar o lixo dos diamantes. Apenas precisa de silêncio e quietude para encontrar consigo. Ao terminar, terá se passado a limpo. Voltará triunfante trazendo a sua espada sagrada. Terá renascido através da sua própria luz”.

Após o sétimo dia, Javier me convidou para caminhar ao seu lado naquela manhã. Aceitei o convite de imediato. Andamos sem nada falar por longo tempo, até que chegamos a um local que, em razão da sua posição privilegiada, servia como um mirante, proporcionando uma paisagem indescritível. Ali, ele resolveu falar: “Somente agora, afastado dos pensamentos e emoções que me faziam acreditar ter sido injustiçado quando, em verdade, me faltava maturidade para aceitar as consequências indesejáveis que podem ocorrer das escolhas que temos de fazer, uma vez que são exercícios inerentes ao processo evolutivo, entendi a riqueza do caos no qual eu me envolvi. Tudo começa com um casamento e um emprego que já não me animavam os dias. Ambos tinham encerrado os seus ciclos. Contudo, eu não tinha coragem de simplesmente admitir e mudar a rota. Quando não queremos caminhar, a vida nos empurra para que não haja estagnação. A jovem por quem me apaixonei foi uma peça importante para que a engrenagem das inevitáveis e incessantes transformações voltasse a funcionar. Por me faltar percepção e sensibilidade naquele momento, romantizei uma situação, transferindo indevidamente a minha felicidade para o sucesso da empresa ou do namoro. Alvo errado. Felicidade está ligada à evolução; em notar o quanto caminhamos e nos alegrar pelo que vem à frente. Transformar-se uma pessoa diferente e melhor é a raiz da mais pura felicidade. Isto faz com que este estado de plenitude possa estar presente todos os dias até o dia sem fim. E além dele”.

Com o olhar vagando pela bela paisagem, continuou: “Não houve erro em encerrar o casamento ou pedir demissão do emprego. O equívoco foi fundamentar essas decisões sobre os pilares de um romance que não podia se sustentar. Não se deve confundir paixão com amor; aquela não tem a força e o equilíbrio deste. Ninguém vive bem sem amor. No entanto, ao encontrar dentro de mim o amor-próprio que eu havia esquecido, resgatei a alegria dos dias. Não há mal que alcance a quem ilumina os passos com a própria luz”. 

Perguntei como ele faria dali em diante. Javier respondeu com a firmeza típica daqueles que renasceram em si mesmos: “Tudo que acontece é para o nosso bem. Ao entender isso, nos tornamos aptos a transformar perdas em ganhos. Das sombras surgem as virtudes. De tudo se faz luz”. Olhou para mim e disse: “Vou oferecer a experiência adquirida na minha fábrica de cosméticos veganos para quem queira aproveitá-la. Por se tratar de uma tendência de comportamento, que as empresas do setor terão de adotar sem demora, acredito que alguma das grandes marcas existentes no mercado entenda valor do conhecimento que eu posso entregar. Não tenho dúvida de que serei útil. Quando bem aproveitado, o fracasso é o arquiteto da vitória”. Eu quis saber sobre futuros romances. Javier não hesitou: “Sempre haverá alguém em busca daquilo que procuramos. Basta que haja cumplicidade, sinceridade e simplicidade. Nada atrapalha mais um relacionamento do que o distanciamento, os enganos e os enfeites”.

Entardeceu como se tivessem passado apenas alguns instantes. Javier saltitava pela trilha de volta ao mosteiro. Ele estava de volta à vida. E desta vez trazia consigo a espada sagrada. A sua luz era inegavelmente intensa.

Como se adivinhasse, o Velho nos aguardava no portão. Um lindo sorriso no rosto confirmava que Javier havia arrumado as gavetas. Não apenas isto, mas também passado a limpo o rascunho da própria existência até aquele momento. A arte final daquele ciclo restara finalizada. Ele estava pronto para iniciar a melhor parte da sua história.

7 comments

Fernando janeiro 6, 2022 at 4:30 pm

Gratidão profunda Amado irmão das estrelas, profunda e sem fim, sem fim…

Reply
Terumi janeiro 6, 2022 at 9:56 pm

Gratidão 🙏

Reply
Márcia m m coury janeiro 8, 2022 at 8:16 pm

Que texto fantástico ! Amei! Gratidão !

Reply
cris matsuoka janeiro 8, 2022 at 9:12 pm

ahoooo!!! Lindo Texto <3

Reply
Doris janeiro 9, 2022 at 8:20 am

Obrigada pelos ensinamentos :).

Reply
Célia Elizandra janeiro 19, 2022 at 10:06 pm

Maravilhoso como sempre! Enche meu coração de luz!

Reply
Karyna fevereiro 2, 2022 at 11:21 pm

Gratidão!!!!!!!!

Reply

Leave a Comment