MANUSCRITOS II

A verdade não dói

 

Caminhávamos pelas ruas estreitas e sinuosas da charmosa cidadezinha que fica no sopé da montanha que acolhe o mosteiro. O sol do final da tarde realçava as cores das casas e do calçamento de pedra. Loureiro, o sapateiro que remendava o couro como ofício e costurava as ideias como arte, estava com fome e seguíamos rumo à cafeteria da Sophie, onde são feitos os melhores sanduíches do planeta, em busca do seu predileto: em pão de brioche, fatias de presunto; um pouco de mel e canela; generosas lascas de parmesão e um ovo mole por cima. Vai ao forno para gratinar. Café para acompanhar até o poente; lá apenas servem vinho à noite. São as rigorosas regras da casa. A garçonete que veio nos servir era a Regina, uma colega de longa data, que ficou feliz em nos ver. Ela disse que o turno dela já terminara e perguntou se poderia sentar-se conosco. Permissão concedida, avental guardado e tínhamos ao nosso lado uma pessoa que precisava muito falar, como aquela criança que corre para mostrar todos os seus brinquedos quando chega uma visita. De pronto, ela revelou que vivia uma grave crise conjugal. Morava há algum tempo com outra moça, bem mais jovem, por quem era apaixonada. No entanto, sempre a apresentou a todos como uma sobrinha que viera passar um período na cidade. Na noite anterior tiveram uma grave discussão, na qual a namorada a acusava de ser preconceituosa por não admitir perante a todos o verdadeiro afeto que as unia, seja pela diferença de idade ou pelo fato de serem ambas mulheres.

Loureiro a olhou nos olhos e perguntou com a sua franqueza habitual: “O que existe de verdade nisso”? A amiga abaixou a vista e argumentou que as coisas não eram tão simples assim. Era preciso levar em conta que moravam em uma pequena cidade do interior, onde os costumes estão mais arraigados e o novo encontra maior dificuldade para se instalar. Ao contrário das grandes metrópoles, todos ali se conhecem e se falam. Não queria viver por entre olhares atravessados, comentários maldosos e descriminada pelas pessoas. Lamentou que as pessoas fossem tão preconceituosas.

O artesão bebeu um gole do café e disse: “Todas as vezes que deixamos de viver a nossa verdade em razão de conceitos alheios significa que o preconceito é nosso e não dos outros. O preconceito nada mais é do que o medo de encarar a verdade diante de si e do mundo. O medo será sempre uma fonte de sofrimento. A coragem é parte essencial da cura; cabendo o restante à verdade. Saber exatamente quem somos, sem subterfúgios, é o passo inicial para a jornada rumo à libertação e a paz”.

Regina argumentou que a verdade não era simples e, por vezes, desnecessária. Loureiro arqueou as sobrancelhas e disse: “Concordo contigo. É preciso sensibilidade, sutileza e amor para quando abordamos a verdade do outro, pois nem sempre ele estará pronto para o confronto. Pode não ser o melhor momento ou talvez não sejamos os melhores mensageiros. Que nunca falte paciência e compaixão. No entanto, quando se trata da verdade sobre a nossa própria vida, discordo: ela é simples, sim. Apenas precisa de amor e coragem para ser tratada, o que nem sempre é fácil”.

Coragem? Ela sacudiu a cabeça e disse que não se considerava uma pessoa forte. O sapateiro franziu as sobrancelhas e falou: “É impressionante como abdicamos do poder que temos”. Regina disse que não tinha entendido o comentário. Ele explicou: “Ser forte é uma escolha que fazemos todos os dias. A coragem, como todas as demais virtudes, está ao lado, está à frente, está à disposição de todos. Ela está dentro de cada um, adormecida, à espera de um leve chamado para despertar e se tornar companheira. A todo momento temos a escolha de enfrentar ou fugir das dificuldades”. Ficou pensativo por instantes e se corrigiu: “Não há como fugir das dificuldades, uma vez que elas são as lições que nos cabem. Na realidade, apenas adiamos a batalha até o dia em que ela nos alcança”. Regina disse que preferia adiar a luta até o último instante. Loureiro deu de ombros e falou: “O problema é que nesse caso você prolonga o sofrimento”.

Regina lamentou o poder do preconceito, de como ele envolve as pessoas sem que elas percebam como interferem indevidamente na vida de todos. O Sapateiro concordou e foi além:  “O preconceito é muito mais do que o véu da ignorância que impede de vermos a beleza da vida com todas as suas fascinantes diferenças. Trata-se de um ato de desonestidade. Negar ao outro o direito de realizar as próprias escolhas é uma usurpação para com a liberdade alheia; negar as suas melhores escolhas, por sua vez, é uma fraude contra si mesmo”.

“Não cometa o desatino de tentar controlar as escolhas alheias; por outro lado, não conceda a ninguém qualquer poder sobre as suas escolhas. Entenda que as escolhas nos traduzem. Podemos nos rascunhar através do discurso, mas somente as escolhas desenham os traços da arte final”.

Uma lágrima escorreu pelo rosto da mulher. Disse que gostava daquela cidade e dos moradores. Tinha muitos amigos ali e não tinha vontade de ir embora caso a verdade causasse embaraço, distanciamento ou rejeição.

Loureiro deu de ombros e disse sério: “Não temos ingerência sobre a opinião dos outros nem podemos obrigar as pessoas a mudarem. Tentar convencer os outros é o papel dos tolos. No entanto, podemos definir quem somos e a maneira como vivemos. A dignidade é a única fronteira. Em todos os aspectos da vida, esse é o enorme poder que temos. Logo, decidir com quem você vai namorar e casar é um direito inalienável seu. Não permita a interferência de ninguém. Quem não gostar que repense os seus conceitos e valores”.  Deu uma pausa e aprofundou: “Que encarem as próprias sombras para entenderem os motivos pelos quais as escolhas alheias incomodam tanto”. Bebericou o café e foi adiante: “Isso serve também para quando o desconforto vier na contramão. Ou seja, por que as escolhas alheias são capazes de nos incomodar? Se temos problema com o novo, o diferente e o liberto é porque há algo de errado em nós. É hora de mergulharmos no silêncio e na quietude para conhecer esse sótão escuro da própria alma e, em seguida, iluminá-lo”.

Loureiro deu uma mordida no sanduíche, lambeu os beiços e disse: “É possível que algumas pessoas se afastem quando souberem da verdade. Embora triste, não é ruim. É a revelação de um novo círculo de relacionamento, mais verdadeiro e sincero que começa a se formar ao seu redor, na afinidade da diferente frequência energética que você começará a vibrar. Ficarão as pessoas que a amam, entendem a sua verdade e respeitam as suas escolhas. Os demais ficarão estagnados, amaldiçoando a humanidade enquanto a sua viagem seguirá em múltiplas transformações rumo às novas estações. Livre, leve e plena”.

A garçonete revelou que ficara muito magoada depois da briga que tivera com a namorada, por tudo que foi dito. Acrescentou que a verdade doía. O artesão sorriu e em resposta discordou: “A verdade não dói. Estar frente a frente consigo mesmo e se encarar sem máscara será sempre causa de desconforto. A máscara não protege, ilude. A verdade não dói; ela cura e liberta”. Deu uma pausa completou: “Dolorosa é a mentira que cada qual conta para si mesmo”.

“Preste atenção no que lhe causa dor: o amor que sente pela sua namorada ou o medo que alimenta a mentira que contou a todos”?

“Toda vez que botar a sua verdade de lado por temer ao que os outros pensam, você deixará de ser a timoneira do próprio barco que singra nos mares da vida. Depois não vá culpar o mundo pelo inevitável naufrágio. Lembre que a escolha foi sua. A felicidade nunca aceita a mentira como companheira de viagem”.

Regina tirou um lenço da bolsa para secar as lágrimas que mareavam o seu belo rosto. Ficamos algum tempo sem dizer palavra na tentativa de metabolizar as ideias do sapateiro. Foi quando apareceu porta adentro a dona da cafeteria. A simpática Sophie veio nos cumprimentar e comentou que aquele parecia o ‘Dia do Choro’. Diante dos olhares interrogativos, ela explicou que acabara de ver na praça a namorada de Regina, sentada em um banco, lendo um livro de poesias às lágrimas. Pensou que o choro brotasse da ficção, mas agora percebia que tinha a sua razão na realidade.

Namorada? Regina estranhou que Sophie se referisse assim à sua ‘sobrinha’. A dona da cafeteria ofereceu um sincero sorriso e revelou que muitas pessoas na cidade sabiam do romance, mas por respeito nada comentavam com a garçonete. Em seguida a aconselhou a ir ao encontro da namorada, pois o amor não deve esperar. Sim, o muro que a impedia de avançar tinha a altura de um risco de giz no chão. Desconcertada, Regina sorriu, pediu licença e foi viver o seu destino. Da janela a vimos apressada na calçada, parecia flutuar. O amor tem esse poder.

Loureiro terminou o sanduíche e sugeriu: “Vamos pedir outro? Toda essa situação abriu o meu apetite”. Sorri e anuí com a cabeça. O sapateiro divagou: “A vida muitas vezes parece uma película cinematográfica escrita por um roteirista louco, porém genial. Ele insiste no final feliz para todos os filmes. Nós, por não entendermos, acabamos por atrapalhar a melhor sequência de cenas ao negarmos o poder transformador da verdade. A verdade será sempre a tocha de fogo que iluminará os passos do protagonista durante a noite escura da trama”.

 

yoskhaz

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3 comments

Christina Mariz de Lyra Caravello setembro 5, 2016 at 9:20 pm

Fico imaginando, Yoskhaz, como essa pequena história contada por você, não é, hoje em dia, uma exceção….
Desde que, os que resolveram assumir sua sexualidade na contramão do que, aparentemente, era o pré estabelecido, o correto, o direito, o esperado, muitas situações, muitas histórias acontecem a todo momento.
E aí, devemos analisar os dois lados.
De um lado, a sociedade e suas regras e seus conceitos do certo e do errado sendo contestada pelos que defendem outras formas de amor, de relacionamentos. A partir dessa tomada de posições, começaram vários movimentos em diversos segmentos dessa mesma sociedade, no sentido de coibirem os preconceitos, as perseguições.
Do outro lado, os protagonistas das novas histórias .
Como convivo com as duas realidades, tenho minha opinião leiga, por não ser profissional de nenhuma área mais abalizada para analisar a problemática surgida, mas ela é decorrente da observação de comportamentos, tanto dos contra como dos a favor, e também dos que vivenciam as diferenças.
Creio que não é fácil para nenhum dos lados. A sociedade procura se adaptar e aceitar, mas ainda há atritos. E, pelo que observo, também não é fácil para aqueles que se descobriram como os não convencionais. Têm que declarar para suas famílias sua nova condição e nem sempre têm a maturidade necessária para enfrentar a nova realidade no dia a dia, em suas Faculdades, em seus trabalhos, em suas relações de amizades. E todos sofrem.
É verdade que hoje em dia está melhor do que já foi. Mas é um longo caminho.
Não sei se usei as palavras adequadas. As vezes elas nos fogem. Mas o que quis dizer é que entendo os argumentos dos dois lados, mas torço e torcerei sempre para que não desistam e que lutem sempre pela felicidade de amarem e serem amados.

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Denis Hiltom Dalben dezembro 9, 2019 at 8:50 am

O link para a compra do livro não entra!

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Yoskhaz dezembro 10, 2019 at 7:31 am

Denis, os livros estão disponíveis no site da editora http://www.tintalivre.com

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