MANUSCRITOS II

O tamanho de um sonho

Era uma manhã de primavera, o sol equilibrava a brisa gelada da montanha e trazia uma agradável sensação térmica. Eu estava na frente do mosteiro apertando os parafusos das dobradiças do enorme portão principal, quando tive a atenção desviada para um carro luxuoso que estacionou no pátio externo. De dentro dele desceu um anão. Logo o reconheci como um famoso comediante em programas de TV. Sem dúvida, era um ator talentoso que nunca usou a sua altura como subterfúgio para nenhuma piada. Seu humor era fino e inteligente. Nos últimos anos comandava um talk-show de grande audiência. Ele se dirigiu a mim de maneira educada e pediu para falar com o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Enquanto seguíamos para o refeitório, onde o Velho gostava de conversar com as visitas, quase sempre ao redor de uma mesa com bolos, biscoitos, queijos e café, deixando-os à vontade como se estivessem em casa, o homem confidenciou que estivera ali uma vez, há quase duas décadas, quando ainda era uma aspirante aos palcos, e aquele dia tinha sido angular em sua vida.

O Velho ofereceu um belo sorriso quando o viu. O ator perguntou se o monge se recordava dele e o Velho aquiesceu com a cabeça. Eu trouxe canecas fumegantes de café e fui convidado a me sentar com eles. Em seguida, o visitante falou que retornara ao mosteiro para agradecer. Confessou que quando estivera ali, naquela tarde que parecia distante, estava preste a desistir da carreira, face às enormes dificuldades que encontrava. Porém, a conversa com o monge o enchera de coragem para prosseguir e enfrentar todas as adversidades. O Velho tornou a sorrir e disse: “A coragem não foi minha, mas sua. Ninguém pode lhe dar o que já é seu. Ela estava adormecida, eu apenas a despertei para luta. A batalha você travou sozinho. Dominou o medo, transformou as incertezas, enfrentou o preconceito em relação à sua estatura física, que eram muitos e bastante agressivos, com paciência, trabalho e arte. Mostrou ao mundo que o importante não é o tamanho de uma pessoa, mas a dimensão do seu sonho”.

O homem, com os olhos mareados, disse lembrar de o monge falar que o ‘corpo não é o espelho do espírito. O desenho de um corpo nem sempre apresenta todas as cores possíveis daquela alma’. O Velho arqueou as sobrancelhas e acrescentou: “Todas as limitações aos sonhos da humanidade foram criadas por aqueles que desejam dominar os demais. Nenhum impedimento de ordem física, social, econômica, étnica ou de gênero tem legitimidade para abortar um sonho. Permitir que a opinião de alguém tenha força de impor limites a sua capacidade é conceder aos outros um poder indevido de subjugar os seus ideais, a sua verdade, de cortar as suas asas. Só os tolos permitem isso”. Fez uma pequena pausa antes de concluir: “Abdicar de um dom é um convite à amargura”.

Eu quis saber o que era um dom. O monge explicou: “É um talento inato, uma habilidade que todas as pessoas, sem exceção, trazem do berço, que pode se manifestar como ofício ou arte. São inúmeras possibilidades. São elas que movimentam e fazem o mundo avançar. Curar, construir, proteger, cantar, organizar, cuidar, prover, escrever são alguns desses dons. Entender, aceitar e exercer o seu dom faz com que o indivíduo ofereça o melhor da sua capacidade, amplia possibilidades e o harmoniza consigo mesmo, tornando-o uma pessoa mais equilibrada e feliz”. Perguntei o que o dom tinha a ver com o sonho de uma pessoa. “Tudo”, respondeu o Velho. Como deve ter surgido uma enorme interrogação em minha testa, o monge prosseguiu: “O sonho a que me refiro não são os desejos insensatos do ego em busca de fama e fortuna, embora estas possam vir como consequências naturais de quem vive o verdadeiro sonho. O sonho de que falo é o que chamamos de dharma ou propósito de vida. Assumimos o compromisso de tentar realizar algo antes de cada existência como exercícios evolutivos. Para tal, somos municiados com o dom adequado, em geral ligado a habilidades que já desenvolvemos em existências anteriores em processo perfeito, passo a passo, para nos conduzir à iluminação. Cada experiência agrega valores e, principalmente, virtudes que aperfeiçoam o ser. Assim, as condições de vida, como lugar, família e situação financeira de nascença são as perfeitas ferramentas para aquela alma naquele trecho da estrada. O dom é concedido como um instrumento de luta e transformação. É a espada do guerreiro em evolução”.

Lamentei que para alguns a vida parece mais difícil do que para outros. “Não se iluda nem se deixe impressionar pelas aparências. A vida é uma viagem sem fim com infinitas estações para pouso e decolagem. Apenas com a visão de sua totalidade poderemos compreender toda a justiça, sabedoria e amor que havia na carga de problemas impostas em determinados trechos da jornada. As facilidades são oferecidas para impulsionar; as dificuldades para ensinar e fortalecer. Todas são oportunidades valiosas que merecem ser aproveitadas”.

“Muitas vezes, o que imaginamos como facilidades, na verdade, são ferramentas para a construção de grandes obras, ligadas ao próprio avanço e de toda a humanidade e terminam por desperdiçadas por aquela alma, que não raro se afunda em angústia, por sentir um vazio que não consegue entender e se refugia em álcool e prazeres rasos na tentativa de fugir de si mesmo”. Bebeu um gole de café antes de concluir: “Cada qual com o seu karma e dharma. Aquele é aprendizado, este uma missão. Assim o universo nos lapida até que todas as virtudes estejam pulsantes e reverberem em pura luz”.

O visitante, em razão da experiência vivida, disse que sempre que possível animava as pessoas para nunca desistir dos sonhos. Ele era a prova de que o universo sempre conspira a favor quando estamos em busca do verdadeiro sonho. Entretanto, como saber se o que buscamos é de fato o nosso sonho? Esta era a sua grande dúvida. Contou que uma grande amiga possuía uma voz maravilhosa e não conseguia seguir na carreira como cantora, tudo parecia dar errado. O Velho balançou a cabeça como quem diz que entendia e disse: “Esse é o dilema do sonho. São apenas as dificuldades inerentes à vida, presentes para ensinar e fortalecer o espírito para o momento seguinte não restar desperdiçado ou estarei trilhando uma estrada que não é minha? Como saber se a voz que escuto é a do meu ego ou a da minha alma”?

“Não é fácil, pois as vozes se misturam e há uma tendência para que a voz do ego fale mais alto. Daí a necessidade de ensinarmos ao ego o idioma da alma e que encontrem o mesmo tom. Isto é a harmonia do ser”. Olhou para o ator e disse: “Ter uma bela voz não habilita ninguém a crer que o seu verdadeiro sonho é ser cantor ou que ganhará o próprio sustento com a música. Nem sempre ofício e arte se misturam. Se o dom não puder ser um ofício, que seja uma arte. Use-o livremente para alegrar a própria vida, dos amigos e de quem mais encontrar, como sementes atiradas nos jardins da humanidade. A adaptabilidade é uma virtude indispensável ao andarilho por ser uma poderosa ferramenta de transformação. Veja o exemplo da Valentina”, citou uma das monjas da Ordem. “É a melhor poetisa da atualidade, embora pouquíssimos conheçam os seus livros, publicados de maneira independente e custeados por ela mesma. Seus versos são apenas comparáveis, na minha opinião, aos de Fernando Pessoa, o alquimista lisboeta. São palavras que sensibilizam e transformam o ser. Apesar de seu inegável talento, das poesias que não cessa de produzir, trabalha como engenheira aeronáutica, projetando satélites de comunicação, ajudando a diminuir as distâncias do mundo. Um bonito ofício, uma bela arte. E uma sábia lição de adaptabilidade de um sonho”. Bebeu mais um gole de café e acrescentou: “Temos também o Giuliano, um outro monge, que trabalha como pizzaiolo oferecendo sabores maravilhosos, em receitas inusitadas sempre preparadas com carinho, e nos dias de folga leva a sua trupe de teatro para os subúrbios da cidade para compartilhar conhecimento, alegria e encanto”. Tornou a dar uma pequena pausa, pois sabia que ainda não tinha respondido à questão e prosseguiu: “A vida sempre manda recado. Ela fala conosco através de sinais. Este diálogo é intenso. Preste atenção e apure a sensibilidade. Ela vai indicando os próximos passos. Às vezes põe uma pedra no meio da estrada com o intuito de estimular a coragem, noutras fecha a passagem, mas mostra uma vereda alternativa que mais à frente se revelará surpreendente. Sempre e sempre. A hora da dúvida é o momento da indispensável solidão. É preciso encontrar consigo, ficar a sós com a própria essência para ler os recados e, mais importante, mediar uma conversa entre ego e alma. Perguntar, como no caso da amiga cantora, se o que busca naquele caminho são os aplausos ou a transformação. Ser reverenciada pelo público ou sensibilizar o coração de toda a gente. A sinceridade da resposta será a estrela-guia a orientar o perfeito sentido da rota a seguir”.

Ficamos um tempo concatenando as ideias do monge até que quebrei o silêncio. Eu quis saber se na certeza de estar na busca do verdadeiro sonho, as dificuldades se mantiverem intensas, até onde devo insistir. O Velho arqueou as sobrancelhas e explicou: “Existem muitos meandros na jornada. As dificuldades podem sinalizar apenas que a maneira de andar está errada, não o sonho. Porém, podem também indicar que dali para frente haverá apenas precipícios. Então, é preciso refazer os planos. Todo sonho é único, pessoal e intransferível. Entender o sonho é parte da arte do andarilho; é decodificar o Caminho”.

Lembrei que ele não tinha respondido a minha questão de até onde insistir ou abandonar um sonho. O monge arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Albert Einstein demorou mais de dez anos, e teve que esperar um eclipse solar, para conseguir provar à comunidade científica a existência da Teoria da Relatividade. Laureado com o Prêmio Nobel de Física por outro trabalho, o seu maior legado não foi o científico. Entendeu na segunda metade da sua vida que a física era apenas um instrumento para melhor compreensão da espiritualidade. Compreendeu que o seu sonho estava ligado à construção da paz no planeta. O justo prestígio que angariou nas academias de ciência amplificou a sua voz e facilitou para que as suas mensagens fossem ouvidas. Em seus últimos anos viveu como ardoroso pacifista. Vincent Van Gogh dedicou toda a sua vida, apesar das enormes dificuldades materiais, a pintar telas nas quais o importante não era retratar a realidade, mas mostrar como ela o emocionava. Manteve a convicção inabalável como um impávido farol que, apesar das tempestades, não deixou de iluminar àqueles dispostos a navegar”.

O Velho fechou os olhos e finalizou de maneira sentida: “Não importa quem você é nem o que faz. Não importa qual é o seu sonho nem a sua dimensão. Nunca desista dele, nunca corte as suas asas. Lute pelo seu sonho enquanto acreditar em si mesmo. Ou nada fará sentido”.

 

 

15 comments

Julie Karen dezembro 7, 2016 at 11:30 pm

Fantástico! Muito Obrigada! 🙂

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Carlos dezembro 8, 2016 at 5:00 pm

Fantastico.!!!

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Joane dezembro 8, 2016 at 8:02 pm

Amooo abri o site e ver textos novos
Obrigada Yoskaz!!!

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Jailson dezembro 8, 2016 at 9:15 pm

DESISTIR NUNCA, RENDER-SE JAMAIS POIS O HOMEM SÁBIO VÊ SEU CAMINHO COMO FORMA DE CONTINUO APRENDIZADO.

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Koishima dezembro 9, 2016 at 8:15 am

Meu caro amigo, estou a dias um pouco perdido.. Refletindo em minha mente se o meu sonho é realmente o que minhalma necessita.. É como se eu desse um passo pra frente e dois pra trás. Mas, algo me dizia pra vir até aqui e me deu mais um folego.. Sintonias do universo vem me dizendo que a hora vai chegar mas os obstaculos, que é pra me deixar mais forte, está me deixando mais ansioso e incredulo.. “A fé move montanhas” e se deixar movem planetas..

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Guilherme dezembro 10, 2016 at 11:32 am

Muito bom. A cada texto que leio um pensamento é gerado, e este trás consigo uma paz enorme. Um sonho transcende a alma de cada um e nos leva a crescer cada vez mais. Muito obrigado pelos seus textos.

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Patricia dezembro 13, 2016 at 1:26 am

Perfeito para cada momento que passamos na vida.
Tenho a certeza que é o universo conspirando a nosso favor, em todos os textos que são publicados.
Mas eu ainda tenho que caminhar e pensar muito.
Gostaria de tomar um café com o VELHO, teria muitas perguntas para ele me esclarecer para tomar decisões seguras;
Gratidão !

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Marcel Melo dezembro 13, 2016 at 10:19 am

Fiquei curioso se essa Valentina existe de fato. Alguém que elabora versos comparáveis aos de Fernando Pessoa merece ser lida.

Obrigado pelos conhecimentos transmitidos.

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Andrea Ribeiro dezembro 13, 2016 at 5:46 pm

Hoje tive uma notícia que quase me fez desistir do meu ofício, pois me fez por um minuto acreditar que eu não era capaz. No instante que a recebi procurei ver se havia algum novo texto que pudesse iluminar minha forma de ver o que estava acontecendo de fato.
Descobri o que exatamente esta a me atrapalhando, confundir meu ofício com meu dom.
Sei que agora consigo seguir em frente.
Obrigada.

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Christina Mariz de Lyra Caravello dezembro 16, 2016 at 12:59 am

“Nem sempre ofício e arte se misturam. Se o dom não puder ser um ofício, que seja uma arte. Use-o livremente para alegrar a própria vida, dos amigos e de quem mais encontrar, como sementes atiradas nos jardins da humanidade.”

Há pessoas que desde cedo tem um sonho bem definido, bem claro. Ser isso ou aquilo, fazer isso ou aquilo. Já outras, vão caminhando pela vida administrando o que ela oferece de bom ou de mau, tentando superar as dificuldades e gozando as facilidades.

E nessa caminhada, em alguns trechos do caminho é apresentada a algum tipo de atividade que ressoa em seu intimo e desperta um desejo insuspeitado de aprender e desenvolver aquele novo conhecimento. Sem nenhuma outra finalidade que não seja seu próprio prazer.

E assim, em vários trechos do caminho , vai conhecendo uma gama enorme de novidades.

“A vida sempre manda recado. Ela fala conosco através de sinais. Este diálogo é intenso. Preste atenção e apure a sensibilidade. Ela vai indicando os próximos passos. Às vezes põe uma pedra no meio da estrada com o intuito de estimular a coragem, noutras fecha a passagem, mas mostra uma vereda alternativa que mais à frente se revelará surpreendente. Sempre e sempre, que desafiam seu aprendizado.”

Então, a pessoa descobre que tem algum tipo de dom, seja para a música ou para as artes plásticas ou para a literatura, ou para o canto ou para a medicina, ou para praticar o voluntariado ou tantos outros mais, dom esse mostrado, as vezes, no final de uma vereda alternativa que se apresenta em nossa caminhada.

Mas não basta ter o dom. Através do talento, ele tem que ser trabalhado com afinco, com trabalho, dedicação mas, principalmente, com prazer porque ele pode ser um instrumento de pequenas ou grandes transformações na vida do próximo ou na sua próxima.
Fortalecendo a auto estima
Redescobrindo o amor próprio
Valorizando suas conquistas

” O dom é concedido como um instrumento de luta e transformação. É a espada do guerreiro em evolução”.

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Christina Mariz de Lyra Caravello dezembro 16, 2016 at 1:05 am

Yoskhaz, se der, por favor mude essa frase

“na vida do próximo ou na sua próxima.” para:

“na vida do próximo ou na sua própria”

Obrigada

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Miquelyna dezembro 16, 2016 at 8:07 pm

Porque é necessário acreditar e se ver diante dos sonhos em construção. Só isso dará sentido a vida.

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Francisco dezembro 18, 2016 at 7:18 am

Texto maravilhoso. Obrigado pelos ensinamentos, esclarecimentos de elementos tão importante em nossas vidas, e na evolução destas.

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Alden Augusto dezembro 27, 2016 at 7:25 am

Com relacao a Einstein é realmente assim que me sinto, exemplificou o que eu penso e acredito e que nunca imaginei que alguém entenderia ou teria a mesma experiência, gratificante ter a oportunidade de ler esse texto!

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Sílvia setembro 25, 2021 at 1:19 pm

Yoskhaz é sempre um show de sabedoria. Gratidão!

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