MANUSCRITOS II

O muro

 

O prédio do mosteiro é uma sólida construção em paredes de pedras que atravessa os séculos com a mesma firmeza da montanha que o abriga. Ou quase. Um dos muros começou a dar sinais de deterioração e fiquei responsável por sua manutenção. Dentre as várias opções, escolhi uma construtora cujo o dono era um amigo dos tempos de colégio e que aparentava capacidade para levar a termo a tarefa. Apesar de todos os avisos de que não se tratava de um simples conserto, mas de uma restauração, na qual todas as características originais deveriam ser mantidas, o resultado foi desastroso. Eu estava irritadíssimo quando encontrei com o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Era final da tarde, horário em que ele se dedicava à leitura. Pediu para que o acompanhasse até a biblioteca. Sentamos em confortáveis poltronas ao lado de enormes janelas, tendo como paisagem a bela floresta dos arredores. Serviu-nos com xícaras fumegantes de café. Logo, comecei a desfiar meu rosário de lamentações sobre a reforma do muro. Disse que estava muito decepcionado com aquele amigo, que fez um serviço muito aquém do contratado e, pior, do prometido. O Velho comentou com doçura: “De fato ficou muito ruim, teremos que refazer o trabalho”.

Falei que lamentava a escolha, porém já tinha tomado providências. Enviei uma dura mensagem relatando a queixa, exigindo que o muro fosse refeito dentro dos padrões exigidos. Não satisfeito, telefonei para ele e tracei críticas com palavras duras. O monge me observou com os olhos repletos de compaixão e perguntou: “Como você se sente”? Confessei que estava mal, uma mistura se sentimentos que migravam entre a tristeza de ter brigado com um amigo e a raiva por ele ter me decepcionado. O Velho rebateu: “Isto é muito pior do que o muro mal remendado. Ninguém precisa de um muro perfeito para ser feliz; de um coração tranquilo, sim”.

Acrescentei que não devíamos ser lenientes com os erros, caso contrário a humanidade não avançaria. O monge arqueou as sobrancelhas e disse: “A melhor maneira de cuidar do mundo é aperfeiçoar a si próprio. Não se detenha para criticar o estágio evolutivo de ninguém, salvo de si mesmo. Entenda que cada qual tem as suas próprias limitações, somente oferecendo o que tem para dar. Sejamos pacientes com as limitações alheias, para que possamos construir uma ambiência de tolerância e paz”. Deu uma pequena pausa e concluiu: “O Universo, como bom educador, aplicará a cada qual a lição necessária para alavancar as transformações indispensáveis que permitirão a adequada evolução”. Questionei se não deveríamos manifestar o desagrado e lutar pelos nossos direitos. O monge respondeu de imediato: “Sempre. No entanto, o jeito que escolhemos para isso faz toda a diferença e pode ser a fronteira entre as sombras e a luz”.

Contei que, embora tivesse usado palavras duras, eu tinha falado apenas a verdade. Era o melhor jeito de ele aprender a ser mais caprichoso ou não se comprometer com algo que não fosse capaz de realizar. O monge quis saber: “Então, por que você está se sentindo tão mal e irritado”? Falei que embora eu tivesse sido justo, me surpreendi com o fato de o meu amigo ter ficado magoado. Algo que eu considerava absurdo, uma vez que o prejudicado não tinha sido ele. O Velho fixou os seus olhos nos meus e disse com candura: “Você percebe qual o sentimento que te moveu ao traçar as críticas? Entende que a emoção que movimentou as suas palavras não foi a de ensinar, mas a de ferir? Por isto está se sentindo tão mal”.

Discordei veementemente. Tornei a insistir que tinha me atido a verdade e as minhas palavras eram justas. O monge me corrigiu: “Não tenho a menor dúvida de que você se manifestou nos exatos limites da verdade. No entanto, tenho dúvidas quanto ao fato de ter sido um ato de justiça”. Fiquei indignado, era só o que faltava. O sujeito causara prejuízo e transtorno, como se não bastasse, se tornara vítima. O Velho não deixou que a minha impaciência o contagiasse e seguiu em seu tom manso de voz: “Não há vítimas e, não raro, repudio a figura dessa máscara que tanto atrasa a marcha das pessoas. Penso que todos devem entender a responsabilidade, não só de suas ações, mas de suas reações. Devolver o mal com o mal não traz avanço, apenas alimenta as sombras. Perceber o sentimento que impulsiona a sua resposta é a perfeita diferença entre a justiça e a vingança. Se você quer, de fato, ensinar ou apenas punir. A fronteira entre a justiça e a vingança é o amor. Não há justiça sem que a decisão envolva a realidade do perdão, sem que permita ao outro a oportunidade da renovação”.

“Isto talvez explique o fato de você se sentir tão mal. Embora tenha trabalhado apenas com a verdade, perdeu a oportunidade de ser justo. A justiça está um degrau acima da realidade dos fatos. Ao menos na acepção mais elevada do conceito. Talvez o melhor a fazer é procurar o seu amigo e lhe pedir desculpas”.

Não era sério. Ou não poderia ser sério. O bom monge só poderia estar brincando. Eu tinha sido o lesado, passara pelo constrangimento diante de toda a Ordem por ser o responsável por aquela escolha, tinha me decepcionado com a palavra não cumprida de um amigo de longa data e ainda pediria desculpas? Não, era muita humilhação. O Velho tornou a me corrigir, sempre com doçura: “Só há humilhação quando aceitamos a ofensa, nunca quando oferecemos o nosso melhor. Entender as próprias dificuldades permite a tolerância com os limites dos outros. Assim, restará a grandeza da humildade”. Rebati que o fato que originou toda a situação me deixava repleto de razão. O monge insistiu: “Quem tem razão é o que menos importa. O importante é não perder a oportunidade para decodificar os nossos sentimentos. Quando nos tornam tristes, estão orientados pelas sombras. Porém, sempre teremos a possibilidade da transmutação, basta iluminá-los. Para tal, tudo se resume a reinventar o conteúdo do binômio: entendimento-escolha. Desta maneira, nos permitiremos o envolvimento em esfera de alegria e leveza, na medida em que ousarmos a pensar de maneira diferente quanto a possibilidade de modificar as nossas escolhas e, assim, oferecer o que até então era inimaginável. O fardo, até aqui pesado, se transformará em asas”.

Falei que o meu amigo era uma pessoa muito orgulhosa e a sua mágoa era um truque para não admitir os próprios erros. O Velho explicou com paciência: “O orgulho é uma limitação do ego que, iludido pelas sombras e movido pelo medo, pensa em se proteger. Você não pode permitir que o orgulho domine as suas escolhas, sob pena de ficar contaminado pelo ambiente sombrio que aprisiona em um mesmo cárcere todos os envolvidos emocionalmente com a situação. Se ele quer insistir nessa reação, é um problema dele; não há como impedir. Porém, você pode se libertar da perigosa zona de trevas que tais emoções costumam aprisionar. Para tanto, é necessário agir de acordo com os movimentos da luz na prática dos seus sentimentos mais puros e sutis. Desfazer o mal praticado, ainda que infinitamente menor ao mal sofrido, é a estrada para a plenitude”, concluiu com o olhar perdido nas montanhas: “Ofereça o seu melhor sempre, mesmo que o outro não queira aceitar. A recusa é uma dificuldade dele. O perdão não precisa de anuência, é unilateral. Você pede sinceras desculpas pelo seu erro, perdoa a quem te fez mal, se liberta da masmorra criada pela situação e segue”.

Argumentei que eu tinha que me proteger e não podia me expor gratuitamente. O monge franziu as sobrancelhas e questionou: “Você percebe que o que rouba a sua paz é o ego que tenta se proteger atrás da sombra do orgulho, alimentado pelo medo do outro não reconhecer a sua razão? Por que o vício pela aceitação e aplausos alheios? Por que tamanha dependência? Entende a desnecessidade? Esta é a raiz da desarmonia do ser e de todas as nossas relações. Seja qual for a reação do seu amigo, ela não pode impedir a sua melhor ação. Isto o torna um espírito verdadeiramente livre”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Pedi licença e me retirei. Não estava convencido sobre os argumentos do monge, mas queria refletir sobre eles.

Nos encontramos na manhã seguinte no refeitório. O Velho se aproximou, sem que eu percebesse, e perguntou: “O que aconteceu? Suas feições mudaram, estão mais leves”. Relatei que na noite passada, depois de meditar sobre a nossa conversa, liguei para o meu amigo e disse que, apesar da obra do muro não ter ficado a contento, eu queria me desculpar pelas palavras duras que usei para manifestar a minha insatisfação. Ele foi amável comigo, embora não tenha reconhecido qualquer erro da sua parte. Alegou que não sabia que se tratava de uma restauração, embora eu tenha dito isto várias vezes antes da obra. Mas não insisti. Entendi que a argumentação dele era um detalhe sem importância, pois cada qual sempre agirá de acordo com o seu exato nível de consciência. O mal-estar foi desfeito e me restou a certeza de que a verdade, colocada de jeito claro e manso, é como uma boa semente que germinará depois das chuvas. A minha alegria tinha voltado e com ela, a paz.

O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Essa é a lição do muro, em todas as suas dimensões existenciais”. Como meus olhos apresentaram um enorme ponto de interrogação diante dessas palavras, o monge se fez mais claro: “A ideia do muro, desde tempos imemoriais, está ligada a necessidade de proteção. No entanto, temos que ter cuidado com o muro que construímos para nos resguardar da vida. Pois, o mesmo muro que protege é o que nos impede de ver e ir além. Viver é muito mais do que a segurança intramuros, mas o fantástico e definitivo voo sobre o abismo do medo”.

6 comments

Mauricio maio 17, 2016 at 8:44 am

Obrigado, Yoskhaz!
Tenha uma ótima semana, muita luz no seu caminho.

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Christina Mariz de Lyra Caravello maio 17, 2016 at 11:23 am

A ideia do muro, desde tempos imemoriais, está ligada a necessidade de proteção.

Muralhas de Jericó
Muralhas da China
Defesa
Muro de Berlim
Imposição – Arbitrariedade
Diques da Holanda
Necessidade

Mas o que permeia todos eles é o medo. Porque os invasores, em sua ânsia de penetrá-los, procuram meios, invenções, estratagemas. E os que estão dentro das muralhas, nunca se sentem totalmente protegidos. São incessantemente assombrados pelo fantasma das catapultas.

O maior e pior muro é o medo. Nós mesmos construimos esse muro incessantemente. Ele nunca está totalmente acabado. Sempre achamos brechas. Nossa segurança está em nosso mundinho conhecido.

Os invasores são uma nova maneira de pensar, são os novos horizontes a conquistar, são uma nova maneira de viver, são a coragem para mudar.

E, apesar de o medo ainda nos dominar, as pequenas brechas em nossas defesas começam a minar nossas certezas e , insidiosamente, nasce o desejo, a curiosidade de conhecer e experimentar essas novas possibilidades .

“Pois, o mesmo muro que protege é o que nos impede de ver e ir além. Viver é muito mais do que a segurança intramuros, mas o fantástico e definitivo voo sobre o abismo do medo”.

“Desta maneira, nos permitiremos o envolvimento em esfera de alegria e leveza, na medida em que ousarmos a pensar de maneira diferente quanto a possibilidade de modificar as nossas escolhas e, assim, oferecer o que até então era inimaginável. O fardo, até aqui pesado, se transformará em asas”.

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Otavio maio 17, 2016 at 1:01 pm

Muito inspirador! Namaste!

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Júlio Araújo maio 17, 2016 at 6:38 pm

Gratidão, Yoskhaz!

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Regineide maio 18, 2016 at 8:56 am

” A melhor maneira de cuidar do mundo é aperfeiçoar a si próprio. Não se detenha para criticar o estágio evolutivo de ninguém, salvo de si mesmo”. Pois quando criticamos o estágio evolutivo do outro estamos atrasando ainda mais a nossa evolução!

Obrigada, Yoskhaz!!

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Sheylla Maranhão maio 20, 2016 at 9:31 am

Gratidão.

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