TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Vigésimo primeiro limiar – O poder do olhar e a magia da semente)

O deserto parecia sem fim. Para aonde seguir? Eu não tinha a menor ideia. Sabia que, se ficasse parado, sucumbiria. Apenas como orientação, decidi acompanhar os passos do sol. Caminhei em sentido ao poente. Sim, eu sei que o sol não se move, mas quando se está perdido no meio do deserto, as miragens se confundem com a realidade. Os parâmetros usados conduzem às interpretações; então, ilusão ou verdade. Tentaria me lembrar disto da próxima vez que estivesse diante de um problema, seja qual fosse. A solução costuma residir na troca de um simples ponto de vista. Para tanto, há que se atentar nos filtros e nas lentes usadas; não podem estar contaminados por paixões aviltantes nem embaçadas por ideias empoeiradas. O olhar define o destino.    

Caminhei pelas areias por um tempo que não sei precisar. Sentia muita sede e um pouco de fome. Ao final da tarde, o cansaço era grande e a esperança se apequenava. Sentei-me. Se as mandalas eram portais, talvez eu tivesse atravessado a mandala errada. Considerei a possibilidade de estar perdido em uma dentre as mil dimensões do universo. Decidi esperar um pouco. Quando não se sabe o que fazer, significa que a melhor escolha ainda não encontrou condições para amadurecer. Inobstante, o desespero surge na crença quanto às próprias incapacidades em superar alguma dificuldade momentânea; acreditamos que o problema irá no devorar; entramos em espiral descendente de desânimo e incredulidade. Somos maiores do que quaisquer problemas; entender este conceito permite a compreensão do imensurável poder de duas preciosas virtudes, coragem e fé. Uma conquista permitida no aperfeiçoamento do olhar, seja na percepção de si mesmo, seja na observação dos movimentos da vida. Esforcei-me para alinhar a mente junto à minha essência, sem me perder em pensamentos destrutivos. Estava difícil. Exausto pelo esforço físico desprendido durante o dia, me deixei levar pelo cansaço. Embora ainda não tivesse anoitecido, adormeci. 

Fui acordado por um homem vestido à moda dos povos do deserto; um turbante azul envolvia a sua cabeça. Apenas os olhos estavam descobertos. Neles, havia doçura, mas também firmeza. Com uma das mãos, ele apoiava a minha cabeça; com a outra, me dava água em um cantil feito com pele de cabra. O homem estava sentado sobre os joelhos. O camelo repousava não muito distante. Falei que estava perdido. Ele disse: “O poder está em seguir o Caminho”. Falei que estava aprisionado entre dimensões. O homem fez não com a cabeça e esclareceu: “Você está onde tem de estar, pois aqui se colocou. Assim é com todos”. Expliquei que nada sabia sobre qual caminho seguir. Ele prosseguiu de modo enigmático: “Nem sempre será possível entender o Caminho. Na existência é caótico, na vida é sutil”. Falei que não tinha compreendido. Ele explicou: “O Caminho dialoga conosco o tempo todo, justamente para que não fiquemos perdidos nem sigamos para a direção errada. Contudo, insistimos em não ouvir”. Perguntei qual seria a direção correta. Ele falou como se dissesse o óbvio: “A da luz”. Em seguida esclareceu: “Só existe luz onde as virtudes predominam”. Disse mais: “Por vezes a linguagem do Caminho nos parece caótica, mas somente acontece quando nos mostramos incapazes de entender as suas sutilezas, negando a leitura das entrelinhas nas mensagens oferecidas”.

“Porém, não lamente o caos. Ele é do bem. O caos se instala como uma terrível tempestade de areia, destruindo tudo que já deveríamos ter desconstruído por vontade própria, mas recusamos a fazer. Então, ele chega para ajudar. Faz-se necessário que haja espaço para o novo se instalar em nossas vidas; para tanto, antes algo precisar não mais estar onde sempre esteve. Só que nem sempre entendemos as maravilhas das intenções e direcionamentos permitidos pelo caos. Por serem contrárias as expectativas e desejos vigentes, a realidade parece confusa e sem sentido. Enquanto pensarmos assim, desperdiçaremos as oportunidades de regeneração oferecidas. As situações apresentadas são as ferramentas disponibilizadas. Use-as na construção da obra de si mesmo. Todo lamento significa falta de entendimento”.

“Tudo que nos acontece é para o bem. Ainda que naquele momento não haja a exata compreensão. Acredite nisto para se reinventar através da verdade improvável que restou dos escombros. Depois, seguir em frente. O Caminho é inusitado, porém, farto”. 

“A vida se move em ciclos de evolução. Quando nos acomodamos em um deles, seja por mero conforto, seja por desorientação, a estagnação nos domina. Para retornarmos ao movimento será preciso mudar o olhar. Assim, o Caminho age de modo irresistível ao destruir e desequilibrar tudo ao redor. Os fracos sucumbem; os fortes se movem em busca da reconstrução. Estes, aos poucos, conseguirão encontrar toda a força e equilíbrio em si mesmos, um poder definitivo, imensurável e desconhecido até aquele momento. Ao mudar, o olhar expandiu o próprio alcance. Agradeça ao caos”.

Questionei se não seria possível manter esse diálogo de maneira mais suave. O homem disse sim com a cabeça e explicou: “Sempre há. A sutileza é o idioma preferencial do Caminho. No entanto, é você quem escolhe a maneira pela qual irá dialogar com ele. Para conversas suaves há que ser manso, humilde, simples e compassivo. O caos é a linguagem usada para falar com os distraídos, acomodados, orgulhosos, vaidosos, maliciosos ou revoltados. É como um grito necessário para afastar um perigo maior, a estagnação no próprio erro, o império intrínseco das sombras; é a tentativa de corrigir a rota equivocada rumo à escuridão”. Fez uma pequena pausa antes de prosseguir: “Para se orientar pelas orientações sutis, há que se viver com leveza, sem se ater aos interesses rasteiros, ruídos e rugidos do mundo. É andar com pés pela areia do deserto, mas manter os ouvidos como antenas sintonizadas às estrelas. Do contrário, não escutará as mensagens escritas em um texto sem palavra, cujo significado está presente em todas as pessoas, coisas e situações disponibilizado todos os dias”. 

Arqueou os lábios em sorriso e segredou: “Entre o caos e a sutileza há uma semente. Ela é genuína, é o núcleo da vida, é o âmago do ser. Dentro dela habita a verdade. Na verdade, a força e equilíbrio do universo; o poder da vida”. Pedi para ele explicar melhor. O homem parecia ter todo o tempo do mundo: “Seguir o Caminho é estar alinhado com a verdade no limite em que já a alcança. Jamais negocie com ela. A verdade estabelece os princípios e valores que funcionam como mapa e bússola, estrada e destino. Assim, enraizamos a confiança e despertamos a força da superação. Você se descobre capaz, criativo e virtuoso. Isto concede força e equilíbrio, indispensáveis ao bem-estar e às transformações seguintes. A verdade também se modifica, pois, como tudo mais no universo, ela também evolui. Assim, o poder da vida começa a germinar nas palmas das mãos”.

Deixou o olhar vagar pelo deserto por alguns instantes e pontuou: “No entanto, para encontrar a verdade é preciso despertar a semente adormecida no âmago do ser. Nela estão as flores e os frutos da vida. Quando a semente não germina de dentro para fora através dos movimentos sutis, a sua casca será rompida de maneira brusca, de fora para dentro, por intermédio do caos. Nenhuma semente será esquecida em sono eterno”.

Falei que eu viajava em busca da verdade. Perguntei como eu faria para me valer do poder da verdade. O homem lembrou de algo que eu já ouvira: “Certa vez, um sábio ensinou: conheça a si mesmo e conhecerás a verdade. Alguns séculos depois, um grande mestre acrescentou: conheças a verdade e vos libertará. O poder da verdade é incomensuravelmente maior do que a maior das tempestades do deserto. Alinhe-se à verdade, viva pelas virtudes; nada o deterá”. Questionei sobre qual libertação a verdade iria me proporcionar, uma vez que eu não estava preso. O homem esclareceu: “Os cárceres mais severos são os sofrimentos e os medos; as paixões destrutivas e os raciocínios limitantes. Eles obstruem a liberdade, a paz, a dignidade, o amor e a felicidade. Eles impedem o mel da vida”.

“A verdade irá mostrar, um pouco de cada vez, as desnecessidades dos medos e dos sofrimentos; o poder impulsionador dos sentimentos nobres, a capacidade transformadora das ideias que reconstroem o ser através de um jeito aprimorado e diferente de viver. Os medos só vigoram em razão de não acreditarmos em nossas capacidades, por não usarmos as virtudes, por desconhecermos as estruturas que sustentam e animam a vida. Os sofrimentos se perpetuam por causa da falta de percepção e a equivocada sensibilidade que temos quanto a realidade, que se modifica à medida do refinamento do olhar. Na verdade, as virtudes; nelas, toda a luz”. Olhou-me com seriedade e aconselhou: “Esse poder é seu. Aprenda a usá-lo”.

Eu quis saber como ele sabia tudo aquilo. Ele arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Como sei? Eu conheço a semente”. Em seguida apontou para o próprio peito e falou: “Este caravaneiro se conhece um pouco mais a cada dia. As transformações não cessam. Passo a passo, vou deixando todos os medos e sofrimentos pelas areias do deserto. Cada grão de areia representa um deles”. Fez uma pausa e concluiu: “Não existirão flores nem frutos se não houver uma semente. A beleza da vida se inicia na essência para depois se manifestar no mundo. Todo poder e magia o aguardam na semente de si mesmo. Vá ao seu encontro”. 

“Toda semente guarda em seu âmago um maravilhoso jardim. Vê-lo cabe aos bons olhos. Fazer com que floresça e frutifique é a obra de si mesmo, a arte da vida. Executá-la permite encerrar o deserto dos dias”. 

Fiz menção em fazer outra pergunta, mas o homem colocou o dedo sobre os lábios. Era momento de aquietar. Com os olhos, me mostrou o sol que se deitava por trás do mar de dunas. O vento suave entoava uma canção. No círculo alaranjado havia uma linda mandala. Cogitei se tratar de uma miragem, mas a voz do silêncio me aconselhou a ir em frente. Agradeci ao caravaneiro. Ele me sorriu em resposta.

Poema vinte e um

O poder está em seguir o Tao.

Nem sempre será possível entender o Tao.

Na existência é caótico.

Na vida é sutil.

Entre o caos e a sutileza há uma semente.

Ela é genuína.

Dentro dela habita a verdade.

Na verdade, a força do universo;

O poder da vida.

Como sei?

Eu conheço a semente.

6 comments

MAGNUM maio 18, 2022 at 11:47 pm

Obrigado.

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Sílvia maio 21, 2022 at 2:27 am

Não existe o vigésimo primeiro?

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Yoskhaz maio 22, 2022 at 10:32 pm

Na realidade se trata do vigésimo primeiro poema. Fizemos a correção. Muitíssimo obrigado por nos avisar. O vigésimo segundo será publicado esta semana.

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Leticia Fonseca maio 21, 2022 at 5:09 pm

Há alguns anos uma pessoa me indicou os manuscritos de Yoskhaz, e desde então os textos me acompanham na minha vida Nômade, é como se tudo o que eu vivo nas minhas viagens e busco compartilhar , está escrito nesses textos. Obrigada Yoskhaz por tanta sabedoria. Obrigada também a pessoa que me indicou e que nessa experiência terrena foi um instrumento para o meu processo de evolução.

“Tudo que nos acontece é para o bem. Ainda que naquele momento não haja a exata compreensão. Acredite nisto para se reinventar através da verdade improvável que restou dos escombros. Depois, seguir em frente. O Caminho é inusitado, porém, farto”.

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Terumi maio 29, 2022 at 1:02 am

Gratidão 🙏

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Cris Matsuoka outubro 23, 2022 at 9:14 pm

Estava estagnada. Voltei a andar

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