MANUSCRITOS VII

O morador invisível

Quando o carro começa a descer a serra pela estrada que liga Flagstaff a Sedona, nas montanhas do Arizona, repleta de pinheiros e carvalhos, me sinto como se atravessando um portal dimensional. Há algo de diferente naquele lugar, difícil de explicar. Talvez por causa dos inúmeros vórtex de energia ancorados pelos povos originais desde um tempo que não podemos precisar, e ainda intactos em sua pureza, possivelmente em razão da maioria permanecer desconhecida dos curiosos e profanadores. Não à toa, se diz que ninguém sai de lá igual a como chegou. Trago comigo a nítida sensação de que a consciência escala tons de percepção e sensibilidade, nos levando a conclusões e verdades que demoraríamos algum tempo para alcançar. Devaneio ou não, o fato é que todas as vezes que retornei de Sedona fiz escolhas angulares em minha vida. A beleza do local, associada à natureza quase intocada, gerou o surgimento de alguns resorts de alto luxo, muito procurados por turistas que buscam por dias de sossego em uma cidade privilegiada e bem administrada, que impede o seu crescimento para que não reste descaracterizada. Durante as suas estadas, essas pessoas usufruem das delícias das montanhas, passeiam pelas corredeiras, nadam nos lagos, voam em balões, galopam por belas trilhas e aproveitam a diversidade gastronômica oferecida por excelentes restaurantes. Sem se darem conta, se beneficiam indiretamente das incríveis vibrações do lugar. Mas não vivem as experiências transformadoras dos cerimoniais xamânicos. Existem duas cidades em uma mesma cidade. Ambas são encantadoras por diferentes motivos. A Sedona oculta é a que sempre me fascinou.

Daquela vez eu planejava ficar menos de dois dias. Seria uma visita rápida. Eu tinha ido a Las Vegas para a Comic Com, o maior evento de cultura pop do planeta, responsável por mostrar ao público as novidades do universo das revistas em quadrinho e as suas fantásticas variantes. Eu pensava em me aventurar a editar novos autores brasileiros que faziam literatura nesse formato. Ao terminar a convenção, decidi ir a Sedona. A ideia era apenas dar um abraço no meu amigo Canção Estrelada, o xamã que possuía o dom de eternizar a sabedoria ancestral do seu povo através de histórias e cantigas, para em seguida retornar ao Rio de Janeiro. Atravessei o deserto de Nevada em uma viagem de seis horas de carro. Amizades genuínas valem ousadias assim.

Quando cheguei, a tarde era alta. Canção Estrelada estava sentado na sua cadeira de balanço na varanda. Ele me ofereceu um sorriso sincero ao me ver. Mostrou-se feliz com a surpresa. Deu-me um forte abraço. Depois, disse para eu colocar a mochila no quarto de hóspedes e me sentar na poltrona ao seu lado. O xamã baforava o seu indefectível cachimbo de pedra vermelha enquanto esperava pela primeira estrela da noite. Contei dos meus planos. Jovens autores inéditos precisavam de um canal para mostrar ao mundo seus talentos e histórias. Publicações digitais não careciam de mistérios; revistas e livros em papel traziam uma magia própria e insubstituível. Viabilizar muitos desses universos me parecia uma aventura apaixonante. Conversávamos sobre riscos e oportunidades até sermos surpreendidos com a chegada de Lee, um dos seus sobrinhos. Eu já o conhecia. Era um rapaz alto, com belos traços no rosto bem desenhado e cabelos negros, lisos e compridos ao estilo dos seus antepassados Navajos. Um jovem correto, trabalhador e pouco afeito a brincadeiras e risos. Falava pouco e não se constrangia em dizer o que pensava independente de quem fosse e onde estivesse. Essa postura oferecia a sensação de uma maturidade além da sua idade. Havia casado cedo e tinha dois filhos gêmeos, ainda crianças. Graduara-se em engenharia de software e trabalhava em uma empresa de tecnologia em Phoenix, a cerca de três horas de Sedona. O tio quis saber se estava de férias, o sobrinho contou ter sido demitido. Lee precisava conversar. Desabafar talvez fosse o verbo adequado. Estava revoltado com tamanha injustiça. Disse ter sido vítima de preconceito. Alguns diretores não simpatizavam com a ideia de dividir responsabilidade com pessoas da sua etnia ou de depender delas para o progresso da empresa. Desde a colonização pelos europeus vigorava o conceito da supremacia racial, uma ideia desprezível, lembrou o rapaz. Amaldiçoou o mundo pelos atrasos comportamentais ainda dominantes. Sentia-se muito mal. Não conseguia se concentrar em mais nada, como se aquela situação o aprisionasse. Pensava apenas nas circunstâncias da demissão em todas as horas do dia. Acordava no meio da noite assombrado por uma ideia que o perseguia. Foi pedir ajuda ao xamã para se libertar. Precisava procurar outro emprego, cuidar da família e seguir em frente. Mas não conseguia. Sempre fora autossuficiente. Era a primeira vez que buscava pela ajuda de alguém.

Canção Estrelada ouviu o sobrinho com atenção, carinho e absoluto silêncio. Cada palavra falada era preciosa para mostrar outra palavra que jamais seria dita. Nisso consiste a arte de ouvir. Assim separamos a verdade das versões e suposições. Versões são interpretações pessoais e passionais de um fato ainda incapaz de ser compreendido integralmente; suposições surgem nas vezes que precisamos preencher as lacunas de uma verdade incompleta. As versões mais perigosas são aquelas que fazem uso inadequado de boas ideias ou se utilizam de discursos universais para não admitir as próprias incompreensões. O perigo reside na facilidade da sua aceitação ou no mero conforto de adotar uma tese agradável ao orgulho ou à vaidade. Então, interrompemos a busca essencial para ficarmos estagnados nas mentiras convenientes, confortáveis de acreditar em razão das responsabilidades difíceis de aceitar e sem a necessidade de realizar nenhum esforço. Essas são as mentiras que costumamos carregar por mais tempo. E as que mais nos atrapalham.

O xamã abordou esses conceitos quando voltamos a ficar a sós, depois de pedir ao sobrinho que retornasse no dia seguinte, ao nascer do sol. Realizaríamos o Cerimonial da Verdade, um dos rituais sagrados da tradição nativa. Perguntei se achava que o jovem mentia. Canção Estrelada disse não com a cabeça e acrescentou: “Falamos a verdade do modo como a compreendemos. Não raro, a entendemos na exata medida da nossa conveniência. A verdade integral quase nunca é fácil de encontrar. Ou de aceitar. A dificuldade desses movimentos nos leva a acreditar em versões e suposições que negam a responsabilidade por quem somos e, porquanto, as consequências inevitáveis do comportamento que possuímos. Nem sempre somos quem acreditamos ser”. Fez uma pausa antes de concluir: “Mente quem tem consciência de faltar com a verdade. Não é o caso dele”. Questionei o motivo do xamã acreditar que a história contada pelo sobrinho podia conter interpretações equivocadas. Ele ponderou: “Conheço o vice-presidente da empresa. É descendente dos Apaches”. Argumentei que, sendo assim, a tese do preconceito racial não fazia sentido. Indaguei a razão do Lee ter compreendido o fato da maneira como narrou. O xamã franziu as sobrancelhas e pontuou: “Isso é o que o Lee precisa descobrir”.

Naquela mesma noite, transferi a minha passagem aérea e cancelei os compromissos agendados na editora para a semana seguinte. Não perderia aquele cerimonial por nada. Eu tinha certeza de que aprenderia algo sobre mim mesmo a partir do momento que tivesse a percepção e a sensibilidade um pouco mais aguçadas. Tudo muda na mudança do olhar. Para isto servem os cerimoniais. No dia seguinte, saímos cedo de casa. A picape surrada de Canção Estrelada nos levou até o final de uma esburacada estrada de terra na montanha. De lá, andamos por cerca de meia hora até um incrível platô de onde podíamos, do alto, avistar Sedona ao longe. Enquanto o Lee e eu estendíamos as mantas no chão, o xamã marcava com pedras os pontos cardeais. Os escudos do búfalo branco, da águia, da raposa e do urso foram fechados em círculo. A sagrada Roda de Cura da mitologia xamânica. Orientou que o sobrinho se sentasse no escudo do Leste, o portal da águia. Ficamos ao centro. Pediu para que fechássemos os olhos. Depois, rufou no tambor de duas faces uma música na qual pedia para que a porta do Leste, onde o sol nasce, se abrisse. Que a águia voasse alto e fosse buscar a luz do amanhecer para findar com a noite escura dos sofrimentos; que, imbuído dos atributos simbólicos do pássaro sagrado, sobrevoasse por cima dos enormes muros das incompreensões, não permitindo que nenhum obstáculo interior o impedisse de prosseguir em sua viagem rumo à verdade. Que as velhas formas de pensar e sentir, que tanto o aprisionavam, fossem definitivamente transmutadas. Meditamos ao som do tambor. Após um tempo que não sei precisar, Canção Estrelada pediu para que o sobrinho se sentasse no escudo da raposa, na porta Sul. Era o momento da astúcia no sentido nobre da palavra, de pensar e sentir sem as influências de ideias e emoções que aprisionam os movimentos de libertação sobre quem somos. Para tanto, se faz necessário esvaziar a mente e o coração sem deixar nenhum resíduo de ideias preconcebidas e emoções desajustadas que anseiam por revide e estimulam ressentimentos. Era indispensável substituir os filtros poluídos e as lentes turvas que impedem soluções criativas e regeneradoras. Acontecimentos longínquos e recentes, que ainda faziam parte do álbum das tristes lembranças, necessitavam de uma profunda arrumação para que fossem vistos e sentidos como aprendizados, jamais como cárceres emocionais. Lee precisava redesenhar a si e a vida com diferentes traços e cores, um movimento apenas possível se a verdade inadmitida emergisse à tona da consciência. Em seguida, pediu para que o rapaz se deslocasse para a porta do Oeste, onde o sol se põe e o dia chega ao fim. O escudo do urso. Animal que durante o inverno se recolhe ao interior da caverna para fazer a digestão de tudo que comeu e caçou. Uma analogia às noites da existência, quando nos abrigamos no âmago de quem somos para compreender os acontecimentos vividos e, então, retornar ao mundo mais fortes e equilibrados na primavera daquele ciclo evolutivo. “Todas as situações são neutras. Absolutamente todas, sem importar se foram agradáveis ou desconfortáveis. Todos os acontecimentos vividos são experiências muito importantes. A maneira como as elaboramos e o jeito como reagiremos é que definirá a polaridade positiva ou negativa de cada uma das situações vividas. Sem exceção. Há muitos ganhos na derrota, assim como existem perigosas armadilhas à espreita das vitórias”, explicou Canção Estrelada ao cessar a música. Era momento de quietude e silêncio para que o jovem pudesse ouvir a voz tranquila, equilibrada e decidida da alma. Na confusão dos dias ou na ebulição da desordem interior é impossível escutar o sábio da aldeia intrínseca. A verdade seguirá perdida. Durante um longo tempo a montanha se calou e o vento soprou sem ruído para não atrapalharem o encontro de Lee consigo mesmo.

Tinha chegado a hora do escudo do búfalo branco no portal do Norte, como símbolo da orientação precisa do mensageiro da verdade. Não haveria música, tampouco silêncio. Porém, existiria o movimento fundamental, aquele no qual as estradas internas das transformações são percorridas, caso o viajante esteja pronto e disposto. Do contrário, não seguirá em frente. Era o momento das perguntas certas e das respectivas respostas exatas para que a verdade não permanecesse escondida. Canção Estrelada pediu para que o sobrinho descrevesse como era a sua rotina na empresa. Lee contou que era muito querido pelos funcionários, principalmente os subalternos e os de cargos mais baixos no organograma da firma. Pessoas que, em geral, nem são notadas. Cumprimentava-os com o seu melhor sorriso, perguntava sobre a família deles, os convidava para tomar café e fazia questão de ressaltar as suas importâncias. O xamã balançou a cabeça reconhecendo tanto a verdade contida naquelas palavras como o grande valor daquele comportamento. O rapaz prosseguiu a narrativa até que revelou ter um comportamento completamente diferente com os seus superiores hierárquicos. Não era rude, mas também não era afável. Queria o reconhecimento pelo seu valor, não por ser agradável no trato pessoal. O tio indagou a razão de não tratar todas as pessoas da mesma maneira, sem importar o cargo que ocupavam. Lee disse execrar a figura do puxa-saco. Canção Estrelada questionou: “O que existe de errado em tratar com a mesma atenção e carinho tanto o faxineiro quanto o presidente da empresa?”. Lee tropeçou nas palavras para explicar. Quando não conseguimos explicar uma ideia com clareza significa que ainda não a temos bem elaborada dentro da gente. O xamã prosseguiu na busca da verdade: “Qual o nome do sentimento que o impedia de tratar bem, sem qualquer nesga de subserviência indevida, os diretores da empresa do mesmo modo como fazia com os porteiros?”. 

Autenticidade, respondeu Lee. Disse que jamais se esconderia por trás das conveniências do poder que, embora confortáveis, negavam a verdade, a igualdade e a justiça. Canção Estrelada o corrigiu: “As pessoas não se classificam como boas ou ruins em função do cargo que ocupam. O bem e o mal se estabelecem nas escolhas, comportamentos e posturas. Há bons e maus diretores. Diferente não é com os faxineiros”. Fez uma breve pausa antes de continuar: “A autenticidade se caracteriza pelo compromisso com a verdade, sem se deixar levar pelas delícias da conveniência ou das circunstâncias. Somos autênticos ou somos fugitivos”. O xamã não desistiu da pergunta não respondida: “Qual a dificuldade que o impede de tratar os seus superiores com a mesma delicadeza que usa com os subalternos?”.  Lee repetiu que não era puxa-saco. O tio avançou com o raciocínio: “A delicadeza, a gentileza ou a generosidade são virtudes valiosas que não se confundem com o comportamento daqueles que elogiam sem merecimento ou desconhecem limites para agradar na tentativa de obter privilégios e vantagens indevidas. Tratar as pessoas sem aquelas virtudes, seja o presidente ou a atendente, estabelece uma aspereza desnecessária às relações e caracteriza uma profunda falta de compreensão sobre a beleza e a grandeza contidas em todos os relacionamentos. Ninguém gosta de ser maltratado. Seja quem for. Os maus-tratos atingem a alma sem importar a qualificação profissional ou conta bancária”. O sobrinho disse que pretendia galgar degraus na empresa sem precisar dizer sim quando entendia o não como correto. O xamã concordou para ponderar: “Isoladamente esse conceito traz muito valor em seu conteúdo. A questão me parece que a sua aplicação está descontextualizada. Nada impede que seja gentil, delicado e generoso apesar de negar qualquer pedido que entenda incabível. O respeito pode e deve ter um sabor doce. Do mesmo modo que o sim perde o encanto quando traz lamentos a reboque, o não esgarça bons argumentos quando expressado com aspereza”.

Ainda com dificuldade de aceitar as consequências inevitáveis do seu comportamento, Lee deixou escapar que não se privava em apontar todos os erros e defeitos que identificava. Seja dos subalternos, seja dos diretores. Neste aspecto, tratava todos da mesma maneira, orgulhou-se. O tio perguntou: “Quando ocorre, você o faz em público ou em particular?”. O sobrinho disse que fazia em qualquer lugar, pois queria o melhor para a empresa. Apontava os erros sem melindres nem reservas. A autenticidade exige transparência; a verdade precisa ser dita, argumentou o rapaz. O xamã tornou a concordar para ponderar: “Mais um bom conceito colocado fora do lugar. Sem dúvida que a autenticidade exige clareza e sinceridade nas relações. A obscuridade nos relacionamentos motiva versões, suposições, mentiras e injustiças. Contudo, apontar defeitos de alguns na frente de todos é se valer do escândalo para se promover, é se aproveitar dos equívocos alheios como degraus de uma escalada de algum brilho e nenhuma luz. A exposição pública dos erros serve apenas à condenação, inexistindo a importante intenção do aprendizado pacífico e valoroso. Conflitos e mágoas se instalam. Os corações se afastam. Ao contrário dos discursos de conveniência, não é a melhor maneira de ajudar ninguém. Tampouco a empresa, que perderá com péssimo ambiente gerado após o conflito. Seja autêntico sempre. Sem abdicar da verdade e da transparência, mas critique no particular, dando à pessoa a oportunidade de fazer a correção devida sem precisar se expor às maledicências dos intolerantes e invejosos. Reserve ao público somente os elogios merecidos. Servirá de estímulo a todos”.

Em seguida, questionou: “Já se deu conta que o seu comportamento foi a causa da demissão sem vínculo com qualquer preconceito racial? Consegue compreender o mal que provocou a título de fazer o bem?”.

Lee se irritou. Disse não estar ali para ser acusado. Tinha ido em busca de libertação. Canção Estrelada esclareceu: “Não existe libertação fora da verdade. O autodescobrimento é o único caminho para a alcançar. Antes disso, vigoram as incompreensões, fontes geradoras de todos os sofrimentos e medos, os cruéis cárceres existenciais”. Franziu as sobrancelhas e disse: “Você não é obrigado a continuar. Podemos interromper o cerimonial agora. No entanto, caso queira prosseguir terá de enfrentar a si mesmo com amor, sinceridade e coragem. Como em qualquer história de superação, tão bem contada em notáveis livros e filmes, o protagonista terá de lidar com personagens e cenários assustadores que representam e significam as suas escolhas, comportamentos e crenças. Enquanto evitar a lidar consigo mesmo jamais sairá do lugar”. Lee perguntou como fazer. O xamã explicou: “Quando desacompanhadas dos melhores sentimentos, as boas ideias servem apenas para iludir o indivíduo, o fazendo acreditar ser quem nunca foi ou a estar onde jamais esteve. Somente os sentimentos adequados são capazes de impulsionar as boas ideias rumo à transformação da própria realidade. Tudo mais são mentiras convenientes e estagnação”. Olhou para o sobrinho com doçura e firmeza e tornou a perguntar: “Quais sentimentos o moviam?”. O tio se referia o comportamento do rapaz na empresa.

O jovem fechou os olhos por longos minutos. Rompeu o silêncio para dizer que levaria aquele ritual até o fim. Estava cansado de sofrer, não aguentava mais olhar a vida como se houvesse apenas um ângulo de observação. Ele queria mais. O xamã pontuou: “Então é preciso pensar e sentir como nunca ousou”. Em seguida orientou: “Coloque a humildade na frente do orgulho para desmanchar o muro que o impede de prosseguir em frente”. Lee perguntou se o tio insinuava que o seu comportamento estava envolto em soberba. Canção Estrelada o fez refletir: “A humildade é a ferramenta que permite aceitar as próprias imperfeições, movimento anterior a todo e qualquer aperfeiçoamento. Trata-se de uma virtude essencial à evolução e, porquanto, à libertação”. O rapaz argumentou que a soberba é reservada aos poderosos diante dos subalternos. Logo, o seu comportamento sem amabilidades com os diretores da empresa não podia ser interpretado como soberba. O xamã o corrigiu: “A soberba é do espírito, e não necessariamente oriunda da classe social, financeira ou profissional do sujeito. O orgulho é o sentimento enfermiço que gera atitudes como a soberba, a arrogância ou a empáfia. O presidente e o porteiro podem ser humildes, se forem espíritos iluminados, como podem ter o orgulho como característica e vício se ainda não entenderam o genuíno sentido da vida”. Uma lágrima rebelde revelou as emoções que envolviam o rapaz naquele momento. Canção Estrelada finalizou: “A vaidade o fez confundir autenticidade com arrogância. Do mesmo modo, mostrar eventuais equívocos alheios jamais terá a intenção de colaborar se estiver desacompanhada da gentileza em preservar o outro da vergonha em ver os seus erros expostos nos outdoors da insensibilidade, tornando-o alvo de comentários maldosos e improdutivos”. Fez uma gesto com a mão para ressaltar as palavras e disse: “Suas atitudes foram movimentadas por um sentimento que, enquanto não for admitido, continuará no comando oculto da sua vida. A antipatia no ambiente de trabalho são as rusgas de um vício atuante. Um sentimento oculto que permanecerá influenciando o seu comportamento enquanto não for reconhecido”.

O rapaz tornou a se calar. Desta vez o silêncio veio acompanhado de muitas lágrimas. Havia um sentimento sincero de arrependimento comum à clareza do olhar até então embaçado. Naquele momento, Lee conseguia ver-se com incrível transparência. Os sentimentos que moveram as suas ideias fizeram que se perdesse de si mesmo, confessou. Canção Estrelada anuiu: “As ideias precisam dos sentimentos para que se tornem ações e, por consequência, consigam modificar quem somos. Na sequência dos efeitos, altera as nossas relações com o mundo, além das reações e diálogo que a vida tem conosco. De outra face, boas ideias movidas por sentimentos desconhecidos podem deturpar a rota e o rumo da viagem. Ao nos darmos conta, estaremos em um lugar que não queríamos estar, tampouco saberemos ao certo como chegamos ali”.

Lee interrompeu para dizer que aquela conversa o fazia lembrar de uma das lendas ancestrais do seu povo que falava sobre o cavalo que sorrateiramente comandava o cavaleiro, impedindo que chegasse ao destino desejado. Perguntou se em uma camada mais profunda de interpretação, o cavalo representava os sentimentos inadmitidos ou indomáveis. Canção Estrelada arqueou os lábios em singelo sorriso de satisfação, disse sim com a cabeça e acrescentou: “Bons e maus sentimentos habitam o coração de todas as pessoas. Os bons sentimentos servem à propulsão das boas ideias, nos impulsionando para além de quem somos. O desafio consiste no que fazer com os maus sentimentos. O movimento primordial é os reconhecer para que sejam educados. Enquanto forem negados, se manterão no comando, influenciando as escolhas a ponto de nos enganar. Seremos guiados por esses sentimentos ocultos, sem termos nenhum poder sobre a nossa vontade. Formam-se autênticos e poderosos vícios comportamentais que pouco a pouco nos destroem enquanto acreditamos estar à serviço da nossa construção”. Deu de ombros e concluiu: “O cavalo será sempre útil ao cavaleiro, desde que este esteja no comando daquele. Quando não entendemos os movimentos antagônicos da vida vindo em nossa direção, significa que seguimos incapazes de decodificar os sentimentos que estruturam o nosso comportamento. O adversário mora dentro da gente. Quanto mais invisível, maior o dano”.

O xamã rufou no tambor de duas faces uma melodia de agradecimento para encerrar o cerimonial. A verdade emergira à tona. Cabia ao Lee fazer o devido uso desse inenarrável poder para se libertar de mais um cárcere emocional. Sem darmos conta, são muitas as prisões internas que cerceiam a nossa liberdade. Faz-se necessário abrir as grades de cada uma delas. Da minha parte, durante todo o ritual, refleti sobre o comportamento que tinha com pessoas próximas com quem eu tivera problemas no passado. Era preciso entender quais sentimentos impulsionavam ou impediam que o melhor em mim florescesse através desses relacionamentos. Alguns percebi naquele momento, outros tive mais dificuldade em aceitar. Entendi também a necessidade de identificar cada sentimento oculto que nos rege, como se fossem habitantes invisíveis que moram dentro da gente, como indispensável rito de passagem à maturidade. Antes disso, ainda vivemos a infância da alma com responsabilidades adultas. Os estragos são enormes.

Ao retornarmos à casa do xamã, Lee abraçou o tio como expressão sincera do seu agradecimento pela compreensão alcançada. Voltaria a Phoenix. Sua mulher e filhos o aguardavam. Precisava recomeçar de uma maneira diferente. Agora sabia como fazer. Antes de ir, disse que sem aquela ajuda não conseguiria. Canção Estrelada sorriu e argumentou: “O mérito é seu. Apenas mostrei a estrada. Quem a percorreu foi você. Sem a sua vontade, coragem e amor nada de significativo teria acontecido”. Da varanda, observamos o jovem entrar no carro e partir. Era alguém bem diferente daquele que havia chegado a Sedona alguns dias antes.

2 comments

Maangoba abril 3, 2024 at 6:03 pm

obrigado pela partilha, não teria momento melhor (em minha vida) para uma leitura sobre esse assunto. até a próxima, meu amigo

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André abril 19, 2024 at 5:16 pm

Com certeza essas histórias aparecem no momento certo na minha vida e me ajudam bastante, é como se eu estivesse conversando com os personagens e eles comigo. Gratidão.

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