TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Vigésimo nono limiar – Os dominadores do mundo)

Era um palácio com os requintes nunca vistos. Tinha sido construído com os materiais mais nobres existentes à época. Na antessala do trono, muitos súditos aguardavam as respectivas audiências com o rei. Ao tentar entrar no salão real, fui impedido por um grupo de guardas. Ao me ver, o rei fez um gesto com a mão para que me permitissem entrar. Em contraste ao luxo do lugar, o trono no qual estava sentado era de pedras, sem nenhum conforto. Ele não usava nenhuma coroa, cetro ou joias. Apenas uma estola com as insígnias reais. Como se adivinhasse os meus pensamentos, comentou: “A ilusão ao redor não pode penetrar na minha alma. Entender o poder me faz ter cuidado para não me deixar contaminar por ele”. Tinha a voz tranquila; os olhos eram de um homem bom, nobre e justo. O trono ficava em um patamar mais alto, acessível após oito degraus de pedra. Ele fez sinal para eu me sentar nos degraus. Tive a sensação de que ele me esperava. Em seguida, perguntou se poderia me ajudar.  Falei que procurava pela verdade. O rei balançou a cabeça como quem diz que entendia a busca. Em seguida, ponderou: “Se você chegou até aqui, significa que já esteve com outros antes de mim. Já lhe falaram que a verdade habita no âmago de todos os seres. No seu e no meu. Não a encontraremos em nenhum outro lugar. Contudo, é impossível chegar a ela sem antes se tornar dono de si mesmo”. Falei que eu não era um escravo. O rei sorriu resignado e me surpreendeu: “Há escravos que são livres; há reis que não passam de reles escravos. Quem não for capaz de se libertar das ideias limitantes que trazem revolta ao coração, assim como de serenar as emoções aviltadas que impedem o melhor pensar, jamais conseguirá conquistar o reino onde vive em si. Será vítima de constantes insurreições, não conhecerá a paz nem a liberdade”.

Como se soubesse que pediria maiores explicações, se adiantou: “Todos buscam as glórias e os poderes mundanos, os privilégios e as honrarias, as facilidades e o prestígio, mas todo aquele que desejar governar o mundo, fracassará. Todos que tentaram nada conseguiram além de dores e incompreensões; corpos adornados com a mais fina seda, almas repletas de cicatrizes purulentas. Terão como herança um imenso e escuro vazio; levarão montanhas de pedras na bagagem. Longe da própria essência, distante da luz. De nada vale ganhar o mundo e perder a alma”.

Como se a resposta fosse tão óbvia que não merecesse resposta, prosseguiu: “As pessoas que insistem em adequar o mundo aos seus desejos, vontades ou necessidades são aquelas que ainda não entenderam que a única riqueza do mundo é acender e, depois, intensificar a própria luz. Apenas o que serve a esse objetivo importa; tudo mais é enfeite, tentação e queda. O maior inimigo de um indivíduo é a sua própria cegueira, os seus pensamentos limitantes e tortos, as suas paixões densas e descontroladas”. Apontou para a cabeça e para coração enquanto disse: “Todo poder absoluto reside em dominar esses reinos que, em verdade, se reduzem a apenas um; tudo mais é fugaz. Enquanto não acontecer, seremos os tolos a desprezar o verdadeiro tesouro”.

Ele prosseguiu: “Há muitas maneiras de tentar dominar o mundo. Existem os que se deixam seduzir pelos encantos da fortuna. Quanto mais dinheiro, maior a quantidade de serviçais aos seus pés. Uma inebriante sensação de poder. Há os que querem dispor das multidões por intermédio das leis, sentenças ou tropas; serão obedecidos, jamais respeitados. Existem aqueles que teimam em fazer com que os outros aceitem as suas verdades se tornem absolutas; isto corriqueiramente acontece em casa, no trabalho e entre colegas. Estão perdidos em si mesmo; querem do mundo a aprovação e admiração que não encontram no próprio âmago. Todos esses se movem pelas sombras dos seus medos inconfessáveis. Poderes de papel, de palavras ou de aço são transitórios, rasos e, ao final, se mostram vazios. Um engano vulgar e desejado. Restará sofrimento e amargura”.

Deixou o olhar vagar até a nesga de céu azul que se via da pequena janela e acrescentou: “A liberdade não é um atributo do corpo; nada tem a ver com passear pelos campos, escalar altas montanhas ou viajar até fronteiras longínquas. A liberdade nasce no pensar. Contudo, o livre pensar não é somente pensar. Emoções densas aprisionam os pensamentos. Movido por ódio, ciúme, ganância, orgulho ou medo ninguém é verdadeiramente livre, pois a mente fica embotada, limitando as possibilidades de escolha. O mesmo acontece com quem se move por culpa ou está condicionado a olhar pessoas e situações por um único viés.  Sempre há muito mais; por não conhecer ou considerar, estreitamos possibilidades e, porquanto, desperdiçamos oportunidades de ir além de quem somos. Todas as vezes em que acontece, decidiram por nós sem que déssemos conta disso. Significa que as nossas sombras, os elementos mais nebulosos do reino, ainda estão no comando. Ninguém enxerga o que acredita não existir. Perdemos tudo aquilo que ignoramos”. Olhou para mim e perguntou: “Entende que as piores prisões não possuem grades?”.

Fiz sim com a cabeça. Ele continuou: “O mundo se expande ou se contrai na exata medida de como estruturamos ideias e emoções, pois erguem a realidade como cada indivíduo a percebe e sente. O mundo é o mesmo para todos, mas diferente para todos. Uns entram em uma floresta e se encantam com o poder das ervas e a beleza das flores; outros apenas contabilizam a quantidade de lenha que servirá às suas fogueiras. A fonte da felicidade reside em aperfeiçoar os seus interesses”. Fez uma pausa antes de concluir o raciocínio: “A depuração dos pensamentos e sentimentos servirá de engrenagem fundamental aos novos interesses. Isto significa autêntica mudança de rota. A realidade começa a se modificar. Em seguida, mudam os entendimentos e as decisões. Eis a iniciação à liberdade”. Naquele momento, eu não soube o que falar. No entanto, eu nunca mais esqueceria esse raciocínio.

O rei aprofundou: “O mundo é sagrado, impossível de ser manipulado. Sagrado é tudo aquilo que nos torna pessoas melhores. O mundo é escola e oficina. Conhecer e realizar. A razão de existir do mundo não é a satisfação dos nossos desejos nem a adequação das nossas vontades. Porém, oferecer condições para a nossa evolução. O mundo jamais será do jeito que desejamos ou nos dará tudo aquilo que queremos. Se fizesse, não seria sagrado, pois em nada nos ajudaria. Ele nos entrega dificuldades e problemas como ferramentas de aperfeiçoamento pessoal. Para tanto, cada qual há de firmar consigo mesmo o sincero compromisso para com o seu aprimoramento mental, emocional e espiritual”. Pegou uma ânfora com água e encheu uma taça de metal. Ofereceu-me, aceitei. Ele colocou água em outra taça e me entregou. Em seguida, prosseguiu: “Todas as situações vividas no mundo são geradoras de ideias e emoções. Bons sentimentos clareiam os pensamentos, ampliando as possibilidades de escolhas. O espírito voa. Emoções pesadas limitam o pensar, encurtando o alcance das soluções. O espírito manca. Bons pensamentos desmancham as emoções conflituosas. O espírito se mantém livre. Maus pensamentos causam emoções sofredoras. O espírito se aprisiona”.

Como um alfaiate que costura um belo e delicado tecido, o rei seguiu tecendo as suas ideias: “O mundo é sagrado. Nele, se faz necessário a luta diária pela sobrevivência. No entanto, a sobrevivência somente fará sentido se, ao mesmo tempo, houver um trabalho interno pela transcendência manifesta por intermédio do seu comportamento. Apenas ao alinhar a beleza da transcendência aos atos de sobrevivência nos será permitido compreender e sentir a manifestação do sagrado em cada momento da existência. Viver para priorizar a sobrevivência, a qualquer custo, nos equipara a uma alcateia de lobos famintos. Embora necessária, a luta pela manutenção da vida não pode ignorar o interesse pela conquista da luz intrínseca. Somente assim cada dia se torna sagrado”. Bebeu um gole d`água e concluiu: “Manipular o mundo é enganar a si mesmo. Repetir uma mentira mil vezes não a fará verdadeira. Ninguém se enriquece através de uma existência vulgar. Isto nada tem a ver com fortuna e fama, mas com verdade e virtudes”. Comentei que o amor era o caminho e o destino. O rei me surpreendeu: “A frase não está errada, mas também não está completa”. Esvaziou a taça e explicou: “Não basta amar. O amor não educado se manterá selvagem; pouco uso conseguirá fazer dele. Usa-se bois e carneiros para o bem-estar; nunca leões e tigres. A compaixão e a paciência são fundamentais à paz e ao melhor entendimento; jamais o ciúme e o desejo movido pelas paixões desvairadas”.

Comentei que as explicações, ora eram simples, ora pareciam complexas. O rei deu um sorriso resignado e acrescentou: “As coisas ora avançam, ora recuam; ora se ligam, ora se rompem”. Interrompi para falar que não tinha entendido. Ele explicou: “As incessantes transformações são pressupostos indispensáveis à evolução. As situações avançam ou recuam de acordo com a necessidade do nosso aprendizado. Jamais dos nossos desejos. Todos querem avançar, porém, por vezes, se faz preciso retroagir para refazer rotas que levam ao abismo. Avanços e recuos são importantes experiências, que quando bem elaboradas, servirão para se extrair as virtudes e a verdade que estruturam o nosso equilíbrio e força. Noutras vezes, insistimos em ciclos que já se completaram ou se esgotaram. Faz-se necessário romper com a teimosia, o medo, a comodidade e a estagnação”. Gesticulou com as mãos, como se falasse o óbvio, e disse: “Perguntamo-nos a razão de atitudes que sempre se mostraram proveitosas não mais gerarem os mesmos resultados anteriores. É o Caminho dialogando conosco através das experiências vividas; um jeito de ser e de viver que se mostraram úteis até aquele ponto. A partir dali, se faz necessário modificar a rota para manter o rumo. A vida exige movimento e direção. Do contrário, seguiremos aprisionados em eternas repetições; seguiremos fazendo mais do mesmo. Isto equivale a andar e andar sem sair do lugar. Haverá esgotamento manifestado em revolta ou desânimo. Inusitadas equações nos permitem impensadas soluções”.

O rei se mostrava disposto a não me deixar com nenhuma dúvida: “Do mesmo modo, as relações se ligam e se rompem. Pessoas que sempre foram próximas se afastam sem que necessariamente tenha ocorrido um fato determinado para isto. Pessoas que sempre foram íntimas, aos poucos, perdem as afinidades que sempre as aproximaram. Tornam-se distantes e estranhas. Não há que lamentar. Outras ligações se formam pela mesma razão: afinidade vibracional. Situações diferentes surgem em substituição àquelas que perderam o sentido. Conexões até então impensáveis, se apresentam. O Caminho orienta o viajante por todo o trajeto, basta que aprendamos a entender a sua linguagem. Cada viajante caminha com os próprios pés, os ritmos são pessoais, determinados pela expansão de consciência, virtudes florescidas e o aperfeiçoamento das escolhas; estes são os três vértices do Triângulo Sagrado da Evolução. O triângulo da sobrevivência está virado para a terra; o da transcendência voltado para o céu. Ao sobrepô-los, teremos uma estrela de seis pontas”.

Comentei que a vida se movimentava pela alternância de situações. O rei concordou: “Sim, é verdade. Há tempestades e manhãs de sol. As manhãs de sol são importantes momentos de lazer, diversão e prazer. São os abraços que acolhem, os risos que adoçam, os olhares que convidam, os beijos que enlaçam. São também as conquistas alcançadas e as dificuldades superadas. A razão das tempestades e das constantes mudanças de ventos é para que aprendamos a navegar sob quaisquer condições. Mares bravios são desafios, jamais impedimentos, para quem está determinado a prosseguir. A coragem nos mostra que somos maiores que o maior dos problemas; a fé nos ensina que quem se move através da verdade e das virtudes nunca ficará desamparado. Tem um ditado que conheci com o povo que veio do Norte. Dizem que onde há vontade, existe um Caminho. Inegável sabedoria. Desistir é um lugar que não existe na rota da luz. Por diferentes motivos, precisamos tanto das manhãs de sol como das tempestades”.

Ponderei que isso me levava a perceber o inusitado equilíbrio entre o sim e o não, a firmeza e a delicadeza, o esperar e o agir, a palavra e o silêncio, a generosidade e a justiça. O Rei concordou e esclareceu: “Por isso, o sábio evita extremos, excessos e extravagâncias”. Em seguida aprofundou os conceitos: “O extremo é uma característica das pessoas que querem impor as próprias vontades sem levar em consideração as demais partes do todo. Típico daqueles que acreditam que os fins justificam os meios, que imaginam deter o monopólio da verdade, não aceitam contrariedades, tampouco que você pense e sinta de um jeito diferente do dele. Todo extremista é apressado, ansioso, agressivo e não sabe lidar com o mundo. A sensatez é o perfeito antídoto”.

“O excesso é uma característica da pessoa que desconhece a si mesmo e, portanto, nada sabe sobre as fronteiras do mundo. Por não se entender, não compreende ninguém. O exagero é aspecto típico de uma vida cujos interesses e desejos não têm limites. O exagero é a característica de uma pessoa que não conhece o significado do respeito. Não existe respeito sem limites. Relações sem limites geram intromissões, abusos e sofrimento. Respeitar o outro como se estivesse tratando consigo mesmo é a base da dignidade e principal fundamento da honra”.

“A extravagância é uma característica de um indivíduo que não possui equilíbrio emocional, do viciado em aplausos, da empáfia de quem precisa se sobressair aos demais, mesmo sem possuir os necessários atributos para isto. Típico de quem deseja a glória mesmo que sem méritos. É a fama rasa e espetaculosa do indivíduo que pretende esconder de si mesmo o vazio da própria existência. Humildade e simplicidade libertam indivíduo dessa prisão”.

Eu ouvia encantado. Não me recordava qual rei na História teria sido tão sábio. Ele concluiu: “Apenas as virtudes movimentam vida; a verdade oferece a direção. Extremos, exageros e extravagâncias são enganos e mentiras. Características de quem abandonou o espírito na miséria. Comportamentos comuns àqueles que ainda não são donos de si mesmos”.

Fomos interrompidos por um secretário que veio avisar que o povo aguardava pelas audiências. Alertou ao rei que havia uma situação difícil a espera de solução: duas mulheres se diziam mãe de uma mesma criança. O monarca arqueou os lábios em leve sorriso como quem agradece à vida por mais um desafio oferecido. Em seguida, me avisou que eu precisava partir. Com o queixo, apontou uma porta lateral. Agradeci o encontro e me retirei. Ao ultrapassar a porta, me deparei com uma mandala.

Poema vinte e nove

Quem desejar governar o mundo,

Fracassará.

O mundo é sagrado,

Impossível de ser manipulado.

As coisas ora avançam, ora recuam;

Ora se ligam, ora se rompem.

Há tempestades e manhãs de sol.

Por isso, o sábio evita extremos, excessos e extravagâncias.

4 comments

Pedro Scheleski agosto 19, 2022 at 2:42 pm

IGrande rei Salomao! Uma honra a sabedoria e facilidade com que se passa seu conhecimento yoskhaz! Paz!

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SCHWEITZER agosto 26, 2022 at 4:47 pm

Esse é o rei da Bíblia.

Genial querido.

Amei.

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Terumi setembro 11, 2022 at 12:56 am

Gratidão 🙏

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Fernando Machado outubro 9, 2022 at 1:20 am

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem fim…

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