MANUSCRITOS II

Um espírito livre.

 

Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de semear a filosofia do seu povo através da palavra, cantada ou não, conversava com uma sobrinha em uma mesa ao ar livre, debaixo de uma enorme árvore frondosa. O sol da primavera aquecia o corpo e trazia aconchego à alma. Avistei-os de longe. O ancião e a bela moça, na casa dos vinte anos, com longas tranças e os olhos puxados como o tio, riam com vontade. Ela aproveitara as férias na universidade para visitar a família. Vestia-se como uma jovem da sua idade, com jeans, camiseta e tênis. Ao me perceber, o xamã fez sinal para que eu me aproximasse. Eles falavam sobre a postura divergente da sobrinha em relação a determinados comportamentos de vários alunos, com os quais ela não concordava. Entretanto, de tão enraizados, nenhum dos colegas ousava a pensar diferente, fazendo com que agissem por automatismo ao invés de se permitirem novas possibilidades. Claro que a moça começava a colher olhares atravessados e, até mesmo, desafetos. Em seguida, a jovem pediu licença, pois iria ajudar a mãe em seus afazeres. Ao se despedir, Canção Estrelada a mirou nos olhos e disse com jeito sereno: “O novo sempre assusta as mentes preguiçosas. É como chegar em casa e encontrar um estranho. Com o tempo, percebemos que a casa não é nossa, mas do estranho. E mais, ele não quer que você vá embora. Deseja apenas que aprenda uma outra maneira de se relacionar com a realidade. Lembre-se, todo espírito livre é afeito ao novo”.

A sós com o xamã, falei que tinha me chamado a atenção o fato de, apesar dos entreveros, a moça não estar abalada e mostrar uma interessante mistura de alegria e serenidade. Canção Estrelada explicou: “Um espírito livre já construiu o abrigo da paz no âmago do ser. Assim, nada de fora será capaz de alterar o seu equilíbrio e harmonia”. Dei de ombros e comentei que ela teria muitos problemas na universidade. Sugeri que talvez fosse mais fácil acompanhar o comportamento dos demais a ter atitudes independentes e dissonantes. Ele me respondeu de pronto: “Um espírito livre aprendeu a silenciar os tambores do mundo dentro de si para ouvir a voz do coração. Pedir a um espírito livre para que não seja ele mesmo é não entender a energia vital que o move”.

Perguntei qual a definição de ‘espírito livre’.  Canção Estrelada ficou algum tempo sem dizer palavra, como quem busca a melhor resposta e disse: “Um espírito livre é todo aquele que já entendeu que o mundo tem uma enorme prisão: o medo. É a mais cruel das masmorras”. Mais cruel? Estranhei. Ele explicou: “Porque as suas grades são invisíveis. Quando você não se percebe aprisionado, não entende a necessidade da liberdade. O medo te convence que ali, ao lado dele, você está seguro. Te faz acreditar que fora dos seus domínios não há nada que preste, apenas o risco do sofrimento. Ao aceitar o discurso do medo você abdica das suas asas e, pior, aceita a negociar com o medo”. Perguntei o que impedia as pessoas de se libertarem do medo. A resposta foi seca: “A ignorância é o carcereiro que impede a expansão do seu nível de consciência. A ignorância é o fiel cão de guarda do medo. Juntos, medo e ignorância, criam quase todas as sombras que habitam o ser”. Eu quis saber como fazer para fugir dessa prisão. O xamã falou com seriedade: “Um espírito livre nunca foge ou lamenta. Ele enfrenta e supera”. Deu uma pequena pausa e concluiu: “Não existe liberdade na fuga”.

Argumentei que aquela postura poderia trazer muitas brigas e era contrária a paz que ele tanto defendia. Canção Estrelada balançou a cabeça em negação e disse: “Ser pacífico e pacificador está na essência do espírito livre. Ele sabe que apenas as ideias duelam, jamais as pessoas. Para tanto, é fundamental que diga a sua verdade de maneira clara, respeitosa e serena, sem o desejo de impor, convencer ou humilhar o outro. Mesmo que não concorde, respeita o ponto de vista alheio, pois sabe que cada qual está em distinta curva do Caminho e, em algum momento, todos se encontrarão no infinito; cada um ao seu tempo. Isto o faz reconhecer o valor da paciência, pois a semente de bons frutos, cedo ou tarde, será agraciada pela vida. Assim, se ninguém quiser acompanhá-lo naquele instante, ele seguirá sozinho. Em paz”.

Divaguei sobre o enorme desconforto que um espírito livre, com suas ideias e atitudes fora do eixo, pode gerar em um grupo social devidamente acomodado em esferas de estagnação e privilégios. O xamã, explicou: “O espírito livre sabe que a sua postura, algumas vezes, é o exato espelho a refletir a imagem que o interlocutor não deseja ver. Nem todos já estão prontos para se confrontar com as feridas da alma. O processo de cura exige determinação e coragem, virtudes nem sempre disponíveis. Então, há que se ter compaixão. Ele não toma qualquer atitude na intenção de se arvorar como exemplo de cidadão ou salvador do mundo, o que o tornaria um idiota leviano e arrogante. Apenas vive com sincera humildade, de acordo com a sua condição de eterno aprendiz, alinhado às suas verdades, em respeito a si próprio e de acordo com as suas escolhas”.

“Por esses motivos o espírito livre nunca se sente ofendido com eventuais ofensas. Ele tem plena consciência de quem é. As agressões são incapazes de desenhar ou colorir a sua alma; elas apenas mostram a bagagem que o agressor traz no coração. Qualquer atitude com a intenção de humilhar é desnecessária no trato pessoal. A arrogância e a humilhação são instrumentos de pessoas escravizadas pelo medo e pela ignorância. Elas acreditam nesses muros emocionais como forma de esconderem aos olhos de todos a própria fragilidade através de demonstrações tristes de um poder vazio. As ofensas retratam a inadequação do ofensor consigo mesmo ao perceber em outras pessoas as transformações que anseia, porém ainda não consegue efetuar. As ofensas refletem a confusão interna de quem as profere”.

“O espírito livre sabe que as dificuldades e conflitos são ferramentas valiosas para a sua evolução, portanto devem ser bem aproveitadas. O problema nunca será um problema, mas um fator de crescimento na exata medida em que aprimora a maneira como reage diante do conflito. Sua superação, uma alegria. A maneira como reagimos diante do conflito demonstra não apenas a lapidação do ser, mas o antídoto para o sofrimento”.

“Por outro lado, como sempre se move nos trilhos da dignidade e não ultrapassa a fronteira dos seus valores morais, as chantagens e tentações materiais e financeiras, tão comuns em sociedade, jamais o alcançarão. A sua alma não tem preço”. Me mirou nos olhos e falou com seriedade: “De quanto menos você precisar mais livre será”.

Lembrei das dependências afetivas que, por vezes, criam fortes grilhões. O xamã não se fez de rogado e explicou com tranquilidade: “O espírito livre conhece a importância dos encontros e dos relacionamentos, pois precisamos do outro para que o amor exista e cresça. Somos flores nas planícies da humanidade a embelezar a vida de toda a gente. Não podemos esquecer que o convívio é fonte de preciosas lições. É na convivência com o outro, com suas dificuldades e delícias, que nos revelamos e percebemos o que nos resta a ser burilado. Tendo sempre em mente que o amor é semente que se espalha ao vento e não animal a ser caçado. Ninguém pertence a ninguém ou nunca seremos verdadeiramente livres. Temos a alegria de encontrar muitos pelo caminho, mas a viagem é solitária. Pois é a jornada em busca ao sagrado que existe dentro de si. O que também é motivo de alegria”. Canção Estrelada me observou por instantes e perguntou: “Você entende o que digo ou está confuso”? Respondi que entendia e ele finalizou: “O espírito livre entende que ninguém é responsável pela sua felicidade, salvo ele mesmo. Nunca devemos atribuir ao outro a causa da nossa insatisfação. Porém, perceber o aprendizado que ali se apresenta e aprimorar em si mesmo o resgate da alegria. A felicidade é um jardim germinado no próprio coração com as sementes do amor e da paz, cujas flores espalhamos na beira do caminho para quem vem atrás”. Deu uma pausa e concluiu: “Assim, ninguém poderá aprisionar o seu coração pleno”.

“O espírito livre sabe que estará sempre passível de maus tratos na esfera física através das muitas maldades possíveis. Não raro, a desenvoltura da sua liberdade incomodará os mecanismos limitadores daqueles que ainda são prisioneiros das próprias sombras, que, ao invés de admirar e mirar como uma possibilidade a ser alcançada, invejam e tentam destruí-lo. Mais uma vez, há que se ter compaixão e seguir se movimentando na certeza da indestrutibilidade do espírito. O espírito livre tem consciência de que não é o corpo que veste, mas o espirito imortal que, na realidade, é. A sua alma é inalcançável aos poderes mundanos. Isto o torna leve, faz com que flutue na brisa”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra até que percebi que Canção Estrelada me observava. Quando nossos olhos se cruzaram, ele finalizou: “Desde tempos imemoriais fomos educados para nos proteger dos perigos do mundo. Acostumamos a prestar mais atenção e a temer a vida lá fora na mera intenção de sobreviver. Nos consolamos com passar das horas regado com alguns prazeres sensoriais. A vida é muito mais do que isso. O que nos ameaça e impede de sermos plenos precisa ser enfrentado dentro de cada um de nós. Esta é a cura imprescindível. Estamos tão viciados em nossas jaulas que já nem acreditamos mais que temos asas. Nos tornamos prisioneiros de nossos próprios medos e dos conceitos criados para sustentá-los. Esquecemos do nosso poder de transformar a realidade na medida que somos capazes de nos transformar. Esta é a batalha a ser enfrentada para que cada qual possa alçar voo em perfeita liberdade”. Eu quis saber como iniciar essa fantástica jornada. Canção Estrelada sorriu e disse: “Basta uma escolha, Yoskhaz. Uma única e maravilhosa escolha”.

 

 

 

9 comments

Maurício abril 22, 2016 at 8:29 am

Ainda não li, mas o fato de encontrar um texto novo seu logo pela manhã, já é a paz entrando em meu dia! Obrigado!

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Jonatha Cruz abril 22, 2016 at 11:19 am

Continuo sendo seu fã! Muito bom! De verdade!

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Margareth abril 22, 2016 at 8:58 pm

Concordo com com você Caro Mauricio! É com alegria e gratidão que recebo cada texto. E por “coincidência..rs” trazendo clareza e compreensão para aquele exato momento que estou vivenciando! Obrigada amigo Yoskhaz

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Miquelyna abril 24, 2016 at 2:21 pm

Acompanho cada texto com uma boa música!! Grata!!

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Christina Mariz de Lyra Caravello abril 25, 2016 at 3:16 am

“Se um homem marcha com passo diferente do de seus companheiros, é porque ouve outro tambor” Henry Thoreau.

E “Um espírito livre aprendeu a silenciar os tambores do mundo dentro de si para ouvir a voz do coração. Pedir a um espírito livre para que não seja ele mesmo é não entender a energia vital que o move”.

Desde cedo, ela marchava diferente de seus irmãos e na contra-mão do que já era estabelecido. No colégio interno, alguns acontecimentos puseram a prova sua maneira de ser e de pensar:
Quando parou de exercitar no piano uma música que tocaria na festa de final do ano por que sua professora, que era vice-superiora do Colégio, bateu em seus dedos…
Apesar de saber que seria castigada (e nunca havia sido até então) não atendeu a professora que mandou que ela continuasse a tocar…foi sua forma de protesto

Quando a Superiora do Colégio chamou a ela e a irmã para informar que apesar de estarem em débito com o Colégio e, consequentemente, não poderem fazer as provas finais, caso elas lhe pedissem, ela deixaria… (nenhuma das duas crianças, uma com 10 e outra com 11 anos, abriu a boca) Foi chamada de prepotente… seu olhar foi a resposta

Quando uma freira que tomava conta das alunas em seu horário de estudo e de quem todas gostavam, foi substituída por outra de quem ninguém gostava, ela apenas olhou para a freira que entrava, provavelmente com uma expressão de desagrado…(sua carteira foi colocada de frente para todas…ficou de castigo ) As outras se deram bem…

Quando seus familiares, depois da festa que ela não tocou a música como castigo, souberam do motivo, exigiram que ela fosse pedir desculpas a professora..(ficou vagando pelos corredores com apenas uma certeza: não pediria desculpas nem que tivesse que ficar no Colégio, sem sair de férias.. ela não era culpada de nada.. o principio da coisa estava desvirtuado )Foi salva por uma freira que era muito querida e que, quando avistou a professora de piano, falou em nome dela, não pedindo desculpas, mas desejando Feliz Natal, boas Festas, etc.. Não disse uma palavra, nem olhou para sua professora, que quis abraçá-la, desejar boas férias..)

No trabalho, foi chamada e mais outra funcionária também, para saber se poderiam trabalhar durante o feriado de Carnaval recebendo um dinheiro extra, que foi estipulado para cada uma.. Qualquer dinheiro era muito bem vindo para as duas, principalmente para a outra que estava fazendo enxoval para se casar e tinha uma vida muito dura…Quando o pagamento chegou, chegou pela metade, junto com as desculpas do chefe…Avisou para que nunca mais a chamasse para nada extra e que não iria aceitar aquela importância, porque não tinha sido a combinada…Mandou entregar a parte dela para a outra… A importância era um dinheiro que não estava empenhado oficialmente…por isso ela achou que o chefe havia ficado com uma parte…Receber, seria compactuar com a safadeza dele…

Quando foi fazer o Cursilho, há muitos anos não frequentava a Igreja. O ambiente nos três dias que lá ficou era muito emocional, muito religioso, desenterrou sua formação católica e vários padres estavam à disposição para ouvir, orientar, aconselhar quem quisesse… Mas não quis tomar nenhuma decisão por pressão….6 meses mais tarde, na Páscoa, confessou e comungou na Igreja de seu bairro, por sua livre e espontânea vontade…

Em casa, já trabalhando, muitas vezes divergia da orientação de seu padrasto…ele era muito rigoroso…dizia que a um pai tudo se perdoa, a um padrasto tudo se cobra..ela desobedecia quando achava que estava sendo injusto e numa dessas vezes ele a colocou de castigo …só poderia sair de casa para o trabalho, teria que escrever uma carta para o namorado, oficial da Marinha Mercante que estava viajando, dizendo o que ela havia feito (chegar em casa muito depois da hora estabelecida por ter ido jantar com companheiros do trabalho que haviam preparado uma exposição para o Dia da Árvore) e parar de fumar.. Isso em 21 de Setembro…No dia de finados, em Novembro, todos estavam se preparando para ir ao Cemitério menos ela, que estava lendo. Ele mandou que fosse se arrumar para ir com eles. Ela respondeu que já que não podia sair de casa para nada também não iria ao Cemitério. O castigo acabou naquele dia.

Todas as atitudes dessa moça, desde criança até sua idade adulta, foram o embrião da formação de sua personalidade. Não havia, ainda, nenhum componente de espiritualidade, de aperfeiçoamento, de exemplo a ser seguido. O que a movia era algo empírico. Ela tinha que agir daquela maneira, mesmo sabendo que talvez tivesse um preço a pagar.

“Um espírito livre é todo aquele que já entendeu que o mundo tem uma enorme prisão: o medo. É a mais cruel das masmorras”. Mais cruel? Estranhei. Ele explicou: “Porque as suas grades são invisíveis. Quando você não se percebe aprisionado, não entende a necessidade da liberdade. O medo te convence que ali, ao lado dele, você estará seguro. Te faz acreditar que fora dos seus domínios não há nada que preste, apenas o risco do sofrimento. Ao aceitar o discurso do medo, você abdica das suas asas”.

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Sandra abril 25, 2016 at 4:58 pm

Muito bom ler aquilo que nos ajuda a nos mover neste mundo e nestes tempos de mudanças tão radicais de valores!Obrigada por alimentar minha alma e meu espírito com sábias palavras!

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Gierson Trucolo abril 27, 2016 at 9:09 pm

Fico admirado com a quantidade de iluminação, beleza e sabedoria nas palavras.
Cada frase me faz refletir, pensar sobre a minha situação, sobre o modo como lido com o mundo e comigo mesmo.
Algo que não nos é ensinado é a auto-reflexão, qualidade esta essencial no exercício de uma vida virtuosa. Apesar disso somos condicionados a uma imensidão de “hábitos” danosos como pré-julgamentos, possessividade, ódio, certezas infundadas. E, por causa disso, ás vezes aprender para mim é desaprender, desapegar. .
Gratidão pelos ensinamentos, pelo ponto de vista maravilhoso, pela novo ângulo de percepção.
Essa leitura é minha meditação.

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Yuri miranda junho 28, 2016 at 11:52 am

No momento me sinto fraco, e as lembranças boas tendem me corroer por dentro. Vários ensinamento aqui presente vem me ajudando muito. Agradeço suas belas palavras de conforto . E vida segue e nesse viver o melhor remédio é o tempo

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Luciano P. da silva janeiro 20, 2021 at 12:42 pm

Palavras… espada que carrego para a batalha.
Aperfeiçoamento e purificação no amor.
A recompensa é a paz e alegria que invade meu ser.
Grato pelos ensinamentos.

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