Os ventos eram fortes e traiçoeiros. Encrespado, o mar balançava a caravela como se estivesse enlouquecido. O rugido da madeira do casco trazia a nítida sensação de que não resistiríamos por muito tempo à fúria do Atlântico. A sua fama de engolidor de barcos não era sem motivo. A tripulação recolhera as velas para que não se rasgassem; em seus postos, restavam aos marujos rezar pelo fim da tormenta. Havia medo nas feições desses homens. No alto do convés, de pé junto ao piloto, impávido, o comandante mantinha o olhar firme para o horizonte. Apoiando-me do jeito que podia, demorei para conseguir me aproximar. Embora percebesse a minha presença, sequer me olhou. Ao perguntar se não temia que a qualquer momento o navio se quebrasse em mil pedaços, o comandante respondeu: “O medo me dirá que jamais conseguiremos desembarcar no Tejo. Por nunca me oferecer bons conselhos, não me serve como mentor”. Ponderei que muitos naufragaram naquelas condições. Ele se virou para mim e argumentou: “Do que me serve essa informação neste momento?”. Não respondi. De fato, o medo em nada ajudava. Indaguei o que ele faria diante daquela situação desesperadora. Ele argumentou: “O desespero, por ser o sentimento típico daqueles que não conseguem ver ou acreditar que sempre existe uma solução, não cabe em mim”. Indaguei se estava arrependido de realizar aquela viagem. Com a voz serena, afirmou: “De jeito nenhum. Se eu pudesse dar um único conselho, diria para todos percorrerem o grande caminho”. Desconfiei de que falávamos de assuntos distintos. Perguntei qual o trajeto daquela viagem. O homem voltou os olhos para o horizonte e disse: “Da escuridão à luz, da incompreensão à verdade, da agonia à paz. Ninguém consegue percorrer essa estrada fantástica tendo o medo como conselheiro”. Falei que o medo nos avisa dos perigos. O comandante me corrigiu: “Ledo engano. Quem faz isso é a lucidez que advém da verdade. O medo diz que eu não tenho nenhuma chance, que irei perder. Alerta para eu fugir ou pedir ajuda; se não tiver como, me entrega aos domínios do desespero. Quanto maior o medo, mais reduzido será o mundo e a vida. De outra face, a lucidez me avisa dos perigos, me faz discernir o bem do mal, diz para ter cuidado, porém, sempre me mostra uma passagem para eu seguir adiante.”.
O comandante prosseguiu: “O medo é uma reação contrária à vida; logo, a luz. Basicamente, surge todas as vezes que nos acreditamos incapazes de lidar com determinadas situações. Várias são as origens do medo. A mais usual delas são as experiências dolorosas que, enquanto não forem corretamente elaboradas, nos deixarão fragilizados diante de situações semelhantes. O passado é uma escola ou uma prisão, a depender de como o indivíduo processa cada acontecimento. O problema reside nas situações que nos trouxeram frustações, mágoas e ódio. Atribuímos ao mundo os maus sentimentos que carregamos. O medo entre eles. Se acredito que os meus sofrimentos são decorrentes dos acontecimentos que me envolvem, abdico do poder de iluminar a minha vida e de me curar. Torno-me fraco e dependente. Ora, não importa o que façam comigo, sou o único responsável por montar e manter a minha bagagem. Os meus sentimentos fazem parte de quem sou; essa compreensão me recoloca no eixo da luz e me devolve o poder sobre a minha própria vida. Ao permitir que um conjunto de situações ou a atitude de alguém determine se serei triste ou alegre, amargo ou doce, agressivo ou calmo, honesto ou desonesto, bom ou mau, me comporto como uma embarcação indefesa à mercê de piratas e bandoleiros. Ainda não estou pronto para a travessia”.
“Outra origem comum ao medo são as crenças que reprimem o desenvolvimento da percepção e da sensibilidade, os alicerces da consciência, com intensa influência no mau processamento das experiências vividas. A mente faz a conexão instantânea e quase imperceptível entre um momento atual com um fato anterior cujo resultado trouxe sofrimento, embora a lembrança deste fato nem sempre venha à tona. A projeção de dor se antecipa à lógica e ao bom senso. O medo se apresenta como suposta proteção; o movimento é travado; a vida estaciona. A desconstrução dos medos passa necessariamente pela reformulação das crenças como método de libertação da consciência, permitindo a regeneração do pensar e do sentir. Como o medo está instalado na superfície da consciência – enquanto as crenças residem na região mais profunda, o inconsciente, e isto as torna mais difíceis de serem identificadas – o medo nos domina sem que consigamos compreender a origem do seu império em nossas vidas. Não há como combater um inimigo que não se consegue ver ou se sabe existir. O medo impede conquistas fundamentais como a paz e a liberdade”.
Perguntei se todas as crenças eram ruins. O homem disse não com a cabeça e reforçou com palavras: “De jeito nenhum. Mas cuidado com o que você acredita, pois as crenças têm enorme influência em como irá perceber e sentir tudo ao redor, determinando escolhas e destinos. Compreender que as virtudes devem pautar todas as suas decisões, permite que experimente soluções inimagináveis, impossíveis para pessoas que se conduzem por ganhos ou perdas meramente materiais, por exemplo”. Deu de ombros e acrescentou: “Creio se tratar de uma boa crença”. Eu quis saber como poderia identificar as crenças que geravam medos, uma vez que habitam as camadas profundas da consciência. O Comandante explicou: “Todos os dias são perfeitos à reconstrução. Para tanto, entender a função da rotina é fundamental. A rotina é a rota dos dias. Através das atividades cotidianas traço o itinerário para sair de um lugar e chegar a outro. Rotinas são trechos diários em uma viagem de longo alcance. Possuem uma função imprescindível. Comece a prestar atenção em como você formula as suas escolhas; se pondera diante de cada situação antes de decidir, assim como a maneira como realiza as tarefas. Os movimentos instintivos e espontâneos costumam indicar crenças. Você dirá que são questões já resolvidas internamente. Analise se esse jeito de agir o move conforme a rota traçada. Repense. Talvez haja um jeito diferente para se posicionar melhor perante situações comuns e conhecidas. Não há evolução sem transformação”. Amarramo-nos na murada para não sermos varridos pelas ondas que lavavam o convés. As nuvens escuras, densas e baixas anunciavam a dificuldade que nos esperava. Depois de passar algumas orientações ao piloto da nau, voltou ao assunto: “Cada dia é uma oportunidade para avançar na viagem. Dificuldades jamais podem significar desistência; ao contrário, fazem parte do processo de aperfeiçoamento do viajante. Quanto maior a dificuldade, maior será a conquista pessoal, mesmo que só você compreenda os ganhos auferidos. Agradeça sempre às dificuldades pelas oportunidades oferecidas”. Ponderei que alguns obstáculos se assemelhavam às impossibilidades. Ele argumentou: “Quando surgirem, não desista; apenas mude a rota para se manter no rumo”. Em seguida, para espanto da tripulação, ordenou que as velas fossem içadas. E comentou: “Todo medo é fruto de alguma incompreensão. Se continuarmos a lutar contra o vento, seremos destruídos; vamos mudar a direção para avançar a noroeste; mais à frente, aproveitaremos as correntes marítimas em direção à costa para fazer as correções necessárias ao estuário do Tejo”.
Comentei que a vida era complicada. Ele voltou a me corrigir: “O Caminho é simples para quem o percorre sem enganos, ilusões e interesses escusos. Mas as pessoas preferem os atalhos da pressa, dos desejos desmedidos, das conquistas de muito brilho e pouca luz. Atalhos são passagens para as desilusões. O Caminho é uma jornada realizada com esforço e compromisso, mas também com prazer, alegria, suavidade e leveza. A realidade são as fronteiras do mundo pela ótica do observador. Os atalhos costumam servir para o entorpecimento da realidade com a qual não conseguimos lidar por falta de entendimento ou vontade. Trata-se uma inútil tentativa de pular etapas, como chegar ao topo da montanha sem se dar ao trabalho da escalada. A evolução não dá saltos. Não se pode falar de transformação sem aprendizado, nem de evolução sem realização. Cada trecho do Caminho é insubstituível, cada curva serve ao aperfeiçoamento. As dificuldades são fundamentais à compreensão que o viajante precisa adquirir sobre as mudanças em seus movimentos, sem as quais não conseguirá seguir adiante. Cada passo revela uma pequena conquista. Acreditar no poder dos atalhos é como crer na possibilidade de montar o telhado de uma casa antes de erguer as paredes ou construir os pilares de sustentação”.
Questionei qual a maneira mais eficaz de alcançar as pequenas conquistas intrínsecas a qual se referira. Ele me desconcertou: “Mude o paladar”. Falei que não tinha entendido. O comandante explicou: “Pare de priorizar o gosto do ego e, aos poucos, se eduque a viver ao sabor da alma. Entenda para onde o conduzem os prazeres que o animam; se o tornam uma pessoa diferente e melhor; se trazem leveza e suavidade aos seus movimentos, desfazendo ressentimentos e evitando confusões sempre desnecessárias; se os meios escolhidos são adequados para conduzir aos fins desejados. Não se chega ao destino certo através da estrada errada. A rotina dos dias elabora a rota da existência”. Fez uma pausa para ressaltar: “No entanto, a rotina que o trouxe até aqui possivelmente não servirá para o levar adiante. Será necessário aperfeiçoar o olhar, acrescentar virtudes, modificar práticas. De nada valem as festas luxuosas se os campos estão abandonados”. Eu compreendi que ele falava da euforia do ego imaturo em prejuízo ao esquecimento da alma. O homem continuou: “A mudança do paladar descortina a verdade nos pormenores dos dias; o olhar adquire maior alcance, a realidade se modifica. Cada vez mais o sagrado se faz presente nos atos simples do cotidiano. Porquanto, você já não será mais o mesmo. Mais virtudes, maior a luz; menos obstáculos internos, menor a influência das sombras. Tudo começa quando, ao mudar o paladar, você se permite priorizar o bem em detrimento ao que é apenas bom, o certo ao invés do legal, o justo no lugar do privilégio ou da conveniência, o bem substituindo o que convém. Mudar o gosto modifica a vida. Na rotina, a elaboração da perfeita receita”.
Eu tinha muitas dúvidas. Falei que tinha entendido que a rotina correta refinava o sabor pela vida. Contudo, existem muitas maneiras de levar os dias. Há gosto para tudo. Eu quis saber como ter certeza de que a receita adotada me conduziria à evolução. A resposta foi categórica: “A bagagem”. Pedi para que explicasse melhor. O comandante era generoso: “A bagagem do viajante é o próprio viajante. O conteúdo de cada pessoa estabelece o seu comportamento e valor. De nada vale ostentar espadas afiadas na cinta se os armazéns permanecem vazios. Quem muito pode, mas nada realiza, carrega uma bagagem sem valor e beleza. Alegrias ou tristezas, dores ou aprendizados, mágoas ou perdão, orgulho ou humildade, enganos ou verdades, medos ou coragens, egoísmo ou amor, respeito ou abusos, aparência ou essência, igualdade ou privilégios, conquistas ou desistências, compreensão ou intolerância. Enfim, há muito para acrescentar em igual proporção ao que existe para descartar na bagagem. A rotina é ferramenta de construção da realidade”.
Aos poucos a tempestade amainava. A esperança tornava a animar a tripulação corroída pelo medo havia pouco. A coragem e a ousadia do comandante em mudar a rota para aproveitar os ventos, ao invés de lutar contra eles, permitiria à embarcação manter o rumo e chegar ao destino. Para ele, os ventos nunca seriam um adversário. Nem o medo. Comentei isso. Ele franziu as sobrancelhas e disse: “Cada pessoa escreve a própria história por intermédio da rotina que elabora e das modificações no conteúdo da bagagem no decorrer da travessia. As multidões desejam por bagagens milionárias, repletas de ouro, sedas e especiarias como a dos porões desta caravela ao zarpar de Calicute. Por lei, cada membro da tripulação tem direito a uma fração dessa carga. Receberão uma boa quantia. Nada há de errado nisto; é fruto de trabalho digno. Um dinheiro justo, necessário e bem-vindo. Todos têm família e questões pessoais para cuidar. Contudo, quantos deles entenderão que a riqueza de maior valor não está nos porões, mas nas experiências transformadoras proporcionadas pela viagem?”. Sem esperar pela resposta, sussurrou como quem conta um segredo: “Muito brilho, pouca utilidade. De certo, este não é Caminho”. Sorriu ao ver um intrépido raio de sol ultrapassando a barreira de nuvens espessas e seguiu com o raciocínio: “A beleza não está na superfície da existência, mas na essência da vida; não reside na fama, na beleza física ou na fortuna, mas na utilidade aplicada aos dias. Para chegarmos ao destino, as sedas finas e caras guardadas nos porões não servem para substituir as velas confeccionadas em algodão rústico e barato que movem esta embarcação”.
Em seguida, o comandante pediu ao piloto que seguisse em direção a uma nuvem que tocava o mar como se também o navegasse. Tinha uma textura fina e cores que variavam entre o rosa e o abóbora em reflexo ao sol que a transpassava. Era uma mandala. Ele fez um gesto de despedida com a cabeça; sorri em agradecimento pela conversa. Em instantes, atravessamos o portal.
Poema Cinquenta e Três
Se eu pudesse dar um único conselho,
Diria para todos percorrerem o grande caminho.
O caminho é simples.
Mas as pessoas preferem os atalhos.
As festas são luxuosas nos palácios,
Os campos estão abandonados.
As espadas se mantêm afiadas,
Os armazéns estão vazios.
Muito brilho, pouca utilidade.
De certo, este não é o Tao.
4 comments
Que viagem magica que essa estoria me proporcionou.
A tempestade do medo se esvai com o sol da sabedoria.
Amei.
Gratidão! Linda reflexão! 🙏😁
Gratidão 🙏
Lindo e conflitante. Como aplicar tais conhecimentos no mundo atual onde, infelizmente, precisamos de dinheiro pra tudo? To passando por uns conflitos internos e esse texto foi como lenha na fogueira. Queria eu ter a oportunidade de uma conversa com você, meu amigo distante, Yoskhaz. Quem sabe um dia… quem sabe um dia…
Obrigado