TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Vigésimo sétimo limiar – O segredo da fonte)

O deserto parecia sem fim. Eu olhava para todos os lados e só encontrava um imenso mar de areia. O sol se inclinava à oeste. Desorientado, subi uma enorme duna na esperança de, ao ampliar o meu raio de visão, encontrar ajuda. Ao longe, avistei uma caravana que montava acampamento para passar a noite. Fui ao seu encontro. Quando cheguei, a lua cheia auxiliava os lampiões a iluminarem as tendas. Em uma delas, um pouco afastada das demais, uma mulher colocava ervas em infusão para o chá. Ela não se mostrou surpresa nem assustada com a minha aproximação. O tom da sua voz, entre a doçura e a firmeza, ressaltava o poder das palavras. Ela disse: “A boa caminhada não deixa rastros”. De imediato, olhei para trás e vi as minhas pegadas na areia do deserto. Argumentei que a textura daquele solo tornava impossível não deixar gravada as marcas dos meus passos. A mulher fez sim com a cabeça e explicou: “Nisto reside a sabedoria do deserto. Quando deixamos rastros, ficamos à mercê dos predadores”. Fez uma pausa antes de me desconcertar: “Cada indivíduo é o grande predador de si mesmo”.

Antes que eu me manifestasse, ela fez um gesto com a mão como um convite para eu me sentar sob um tapete repleto de almofadas coloridas. Esperou eu me acomodar e esclareceu: “Todos temem os perigos do mundo, mas esquecem que os maiores riscos são gerados pelas incompreensões que o viajante tem sobre si mesmo. Culpamos o deserto pela dureza da travessia sem entender que tudo depende da maneira como conduzimos a caravana”. Enquanto retirava o chá do fogo e servia as duas xícaras, continuou: “Para não deixar rastros, mesmo sobre o chão firme do mármore, é preciso estar com os pés limpos. Deixaremos dívidas todas as vezes houver impurezas nas nossas escolhas. A pureza é a virtude de usar o bem mesmo quando o mal está à disposição e pode proporcionar vantagens aparentes. Em nenhuma hipótese poderão existir segundas intenções, motivações vingativas nem impulsionamento das sombras pessoais. Acredite, é mais difícil do que parece. A escolha de abdicar do mal é mais difícil do que parece. O problema surge no mal que nos influência, em alguns casos até mesmo domina, mas ainda não somos capazes de o identificar. O mal é sorrateiro com os seus mil truques e disfarces, nos fazendo acreditar que é a melhor ou a única escolha”. Deu de ombros e comentou: “Não se chega ao destino certo percorrendo a estrada errada. Ninguém alcançará o bem ao praticar o mal a alguém. Ao contrário do que se acredita, os fins nunca justificam os meios. Apenas deixam os rastros que nos tornam presas fáceis das noites escuras do deserto”.

Entregou-me a xícara, se sentou à minha frente e prosseguiu: “Do mesmo modo, a boa palavra não deixa imperfeições”. Bebeu um gole do chá e falou: “As falhas de comunicação dão causa a muitos conflitos. Nem sempre conseguimos manifestar a essência dos nossos pensamentos e sentimentos através das palavras. A incorreta expressão ou a inadequada compreensão geram conflitos. A maneira clara, objetiva e serena de falar é fundamental. Clara para que não reste dúvida quanto às nossas intenções; toda meia-verdade é uma mentira. Objetiva para usarmos as palavras em quantidade exata, pois, de mais ou de menos, darão margem a interpretações equivocadas. Palavras de menos não explicam tudo; quando em excesso, dispersam o sentido e perdem o vigor. Serenidade para se expressar é indispensável para que haja boa recepção às ideias que defendemos. Na rispidez, grito ou discussão os melhores argumentos desaparecem nas névoas dos conflitos”. Fez uma pausa para ressaltar: “A palavra tem magia. A má palavra gera tristeza, conflito e mágoa. A palavra tem a magia de transmutar o ânimo e a realidade de quem as escuta. A boa palavra é honesta, sensata, gentil e justa. Um feiticeiro da luz as usa para deixar reflexões, jamais insatisfações. A boa palavra é fonte de alegria, esperança e amor”.

Esperou eu beber um gole do chá. Estava delicioso. A mulher tornou a me desconcertar: “Do mesmo modo, o bom cálculo não utiliza número”. Ela não parava de me surpreender: “O bom cálculo é a medida da vida. Não se mede a vida com réguas, planilhas e gráficos. Não se programa o destino como quem projeta uma casa ou constrói uma catedral. As alegrias e tristezas dependem de como irei reagir a cada situação que se apresentar. As dificuldades surgem na proporção exata das minhas necessidades de aprendizado. A vida tem o alcance do amor, nunca a exatidão da matemática. Não alcançarei o bem se o pratiquei apenas no intuito de me proteger do mal. Este não é o cálculo correto. Alcançarei o bem quando praticar o bem, não por temer o mal, mas nas vezes que agir por amor à verdade e à virtude”.

Esperou eu concatenar a ideia, bebeu mais um gole de chá e acrescentou: “A boa porta não necessita de ferrolho para se manter fechada”. Desta vez nem precisei pedir por explicações, ela se adiantou: “A boa porta são os limiares que impedem o viajante de prosseguir a viagem, seja neste mundo, seja em outros planos existenciais. Ao contrário do que muitos acreditam, existem muitas portas aquém e além da morte. A incoerência das escolhas com a verdade alcançada ou ainda ignorada, assim como a não aplicação das virtudes como ferramentas de construção da grande a obra em si mesmo são as razões de o viajante ficar impedido de seguir em frente. O orgulho, a vaidade, o ciúme ou a ganância, entre outras sombras, o impedirão ver a porta. Será impossível passar”.

No mesmo diapasão, a mulher acrescentou: “Dizem os antigos que o bom nó não precisa de uma corda para atar o que carregamos conosco. O bom nó amarra a bagagem do viajante. O verdadeiro patrimônio são os pensamentos, sentimentos e atitudes. Nenhum deles se leva em carroças, tampouco correm o risco de serem roubados. Aonde quer que vá, cada um levará consigo tanto a luz quanto a escuridão que movimentar. Pode-se evitar muitas coisas, nunca a si mesmo. Transmutar sombras em virtudes é a fonte da leveza na viagem oferecida pela vida”.

Esvaziou a xícara e se levantou para servir mais. Perguntou se eu também queria. Aceitei de bom grado. Enquanto enchia as xícaras, explicou: “Por isso, o sábio se preocupa com todas as pessoas e coisas; tudo e todos lhe são importantes. Ele sabe que todos os acontecimentos são para o seu bem; todos os problemas são as fontes dos aprendizados que ele necessita; todos os fatos são oportunidades de exercício para as virtudes que já possui e daquelas que ele ainda precisa desenvolver; todas as pessoas são fundamentais ao seu aperfeiçoamento e plenitude. Compreender e aceitar essas verdades suaviza a travessia e revela as maravilhas ocultas do deserto”.

Entregou-me a xícara e concluiu: “Aprendizados geram transformações. Assim, o iluminado se torna luminoso. Quando estamos na escuridão, precisamos da luz de alguém a nos orientar os passos de volta ao Caminho. Contudo, a partir daí, para que não surja dependência e haja uma genuína evolução, será preciso acender a própria luz. Onde há luz não existe medo nem sofrimento. Um movimento fundamental rumo à liberdade e à paz”. Sentou-se e aprofundou o raciocínio: “Enquanto as dificuldades não forem vistas como oportunidades de aprendizado e transformação, o viajante se esgotará em inconformismo e desânimo. A conquista da luz é o sentido da viagem”.

Perguntei como seria isso na prática. Ela explicou de maneira inusitada: “O sábio é bom com o homem mau; o homem mau é bom para o sábio”. Ela se divertiu ao perceber um ponto de interrogação na minha fisionomia e esclareceu: “Entenda por homem mau toda pessoa ainda nos primórdios da consciência e com dificuldades para viver o amor. O sábio não escolhe a lição mais fácil. Ninguém tem tal poder. Ele aceita com serenidade todas as situações que se apresentam; busca pelo mestre oculto que nelas se esconde. Cada aprendizado servirá para iluminar um canto escuro de si mesmo; isto irá intensificar ainda mais a sua luz. Então, diante da adversidade imposta por uma pessoa complicada, o sábio agradece a oportunidade. Quanto mais difícil for o problema, maior a transformação oferecida. As virtudes bebem nas fontes das dificuldades”.

Comentei que ninguém gosta de ter problemas: “Quem não respeita a fonte, sente sede; mesmo inteligente, fica desorientado. A repulsa às adversidades faz com que dons e talentos sejam desperdiçados. Ao negar a transformação, a vida forçará o aprendizado com rigor cada vez maior. Surgirá o sofrimento, não como punição, mas como efeito das próprias incompreensões”. Fez uma pausa para olhar a lua cheia no céu do deserto e disse: “A vida exige movimento e respeito. Esperar as condições desejadas para se movimentar pode equivaler a estagnação eterna. Nunca acontecerá, sempre faltará um detalhe. Então, a absurda justificativa para a inércia. Sempre haverá as condições ideais para que cada indivíduo desenvolva em si as capacidades condizentes com aquele momento da viagem. Respeitar a fonte significa a sincera admiração, encanto e amor pela vida, que, ora se manifesta como escola, ora como oficina, apresenta as oportunidades de iluminação através das variadas dificuldades oferecidas”.

Bebeu o último gole e finalizou: “Na fonte está a essência da verdade. Nas dificuldades encontraremos sempre uma parte desconhecida de quem somos à espera de ser descoberta e conquistada. Assim nos tornamos inteiros. Orgulho, vaidade, ganância, ciúme, usura, impaciência são algumas das fontes turvas dos infindáveis problemas manifestados nas mais variadas situações cotidianas. Sem entender a fonte, a realidade se torna opressora; haverá muralhas por todos os lados. Atribuir aos outros a responsabilidade dos conflitos é natural para quem acredita que a felicidade e a paz dependem das concessões do mundo. Um erro grosseiro e vulgar. Ao se mover por intermédio da humildade, simplicidade, compaixão, sinceridade, mansidão, entre outras virtudes, das sombras se faz luz. A fonte que era turva se torna clara. Passagens que sempre estiveram disponíveis, apenas não éramos capazes de vê-las por estarmos na penumbra da vida, surgirão por entre os muros das incompreensões. Os conflitos se desmancham por suas desnecessidades. As virtudes são as genuínas fontes de luz, indispensável à conquista da verdade”.

Eu precisava de tempo para alocar aquelas palavras. A mulher me aconselhou a seguir a minha viagem: “Esta caravana não é a sua”. Ela tinha razão. Entreguei-lhe a xícara, agradeci a conversa e fui embora sem olhar para trás. O clarão da lua formava um tapete prateado estendido nas areias do deserto. Em momento que não sei precisar, da lua cheia se fez uma mandala. Atravessei o portal.

Poema vinte e sete

A boa caminhada não deixa rastros;

A boa palavra não deixa imperfeições;

O bom cálculo não utiliza número.

A boa porta não necessita de ferrolho para se manter fechada.

O bom nó não precisa de uma corda para atar.

Por isto, o sábio se preocupa com todas as pessoas e coisas;

Tudo e todos lhe são importantes.

Assim, o iluminado se torna luminoso.

O sábio é bom com o homem mau;

O homem mau é bom para o sábio.

Quem não respeita a fonte, sente sede;

Mesmo inteligente, fica desorientado.

Na fonte está a essência da verdade.

4 comments

Fernando julho 30, 2022 at 11:13 am

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem fim…

Reply
Terumi agosto 18, 2022 at 1:09 am

Gratidão 🙏

Reply
CRISTINA BOVI MATSUOKA outubro 28, 2022 at 12:43 am

Lindo, profundo

Reply
Maangoba fevereiro 9, 2023 at 2:38 pm

obrigado mais uma vez, mestre.

Reply

Leave a Comment