MANUSCRITOS III

Aqui e agora

 

Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos, encheu as nossas canecas com café fresco para iniciarmos uma conversa vadia quando fomos surpreendidos por Zinedine, um simpático artista plástico local, que se dedicava a esculpir peças em bronze. Embora tivesse talento e sensibilidade, a maior parte das suas obras estavam inacabadas. Ora porque enquanto esculpia uma peça era tomado por outra ideia, que considerava melhor, e abandonava a anterior; noutras vezes largava o trabalho no meio por não o considerar suficientemente bom. O tempo parecia lhe passar com rapidez, esgotando a herança deixada pela família. Tinha grande urgência de que a arte passasse a ser também um ofício e fonte do seu sustento, fato que o deixava cada vez mais agoniado. Contou que acabara de chegar de uma viagem e, embora tivesse sido bem agradável, confessou que a partir de determinado momento sentiu saudades de casa. Ocorre que passados alguns dias do regresso, já tinha sido tomado por uma enorme vontade em tornar a viajar. Loureiro ofereceu a ele uma xícara de café e disse: “Viajar pode ter um efeito parecido a renovar o guarda-roupa da alma ao nos depararmos com outras culturas: maneiras diferentes de ser na vida e estar no mundo. Isto amplia as possibilidades e indica rumos nunca antes imaginados, o que é maravilhoso. Como somente sentimos saudades do que é bom, revela que em casa introduzimos ao cotidiano os hábitos que nos agradam e alegram. Se ao estar fora, depois de um determinado momento, você não sente falta da sua casa e rotina, revela que há algo de errado em suas escolhas ou que ainda não sabe onde é a sua casa nem entendeu a rotina que deve construir para si. A viagem tem o poder de nos revelar o caminho de casa”, deu uma pequena pausa antes de concluir: “Em todos os sentidos”.

Zinedine argumentou que possuía a natureza inquieta. Quando estava aqui queria estar ali e vice-versa. Admitiu que nunca estava totalmente à vontade em um local, pois quando estava em casa trabalhando lembrava das delícias de descobrir uma nova cidade e os hábitos do seu povo; quando viajava sentia vontade de voltar para inserir em suas obras as maravilhas do mundo e da vida que tinham sido descortinadas. Loureiro comentou: “O movimento é gratificante quando dirigido pela necessidade consciente da busca por si mesmo; quando desorientado, o indivíduo se move em sentido contrário, atrás de distrações e fugas que adiem o encontro mais importante de sua vida, aquele que cedo ou tarde terá consigo próprio. Não raro, se torna uma pessoa impaciente. Então, é hora da introspecção e da quietude, um movimento que fazemos para dentro; a viagem interior capaz de nos revelar diferentes maravilhas, de um encanto sem igual, que não encontraremos em nenhum outro lugar do mundo”.

“Há os se sentem bem em fincar raízes como árvores milenares. Outros ficam à vontade em flanar como o vento levando e trazendo os perfumes de outras estações e dimensões. Existem os que circulam como as águas conduzindo pessoas em suas correntes e fertilizando as terras por onde passam. Alguns se comportam como o fogo para destruir as velhas formas e a forjar o aço de uma nova realidade”. Bebeu um gole de café e acrescentou: “Não estranhe se ora você for de um jeito e, em outros momentos, de outro. O importante é entender que cada qual é único e todos são essenciais; nisto reside a beleza da vida”.

“Quando o movimento se torna de dentro para fora as escolhas são serenas e alegres, na percepção do aprimoramento pessoal, no florescimento das virtudes, da conquista da liberdade, da paz e da plenitude ao refletir a evolução interna no embelezamento planetário. Ao se deixar levar pelo movimento contrário, o condicionamento imposto pelo atual estágio da humanidade alimentará as sombras do orgulho e da vaidade a direcionarem as escolhas pessoais. A falta de profundidade torna efêmera todas as situações e pessoas, criando no indivíduo a necessidade de reabastecimentos cada vez mais frequentes em forma de purpurina e aplausos para maquiar uma existência baseada nas tintas de uma casca vibrante, sem qualquer entendimento quanto ao valor da semente adormecida no âmago. O moto-contínuo dessa fome frenética e voraz estimulará a ansiedade em um primeiro momento, que quando expandida ao máximo, cede a vez à agonia e à depressão”.

“A falta de entendimento sobre a essência de si mesmo gera a insatisfação em relação a tudo que o cerca, bagunça o coração, bloqueia a mente e oculta o caminho de volta para casa ao adiar o devido alinhamento entre o ego e a alma, tornando ainda mais dolorosa a batalha do ser dividido. Para esses, o mundo nunca será um bom lugar para viver, por mais luxuoso que seja o castelo de cimento e tijolos por eles habitado”.

Inteligente, o artista plástico perguntou se o sapateiro usava aquele discurso como uma maneira indireta de explicar o fato de ele, Zinedine, nunca se sentir satisfeito onde estava ou por deixar as suas obras inacabadas ao iniciar a construção de outras. Loureiro franziu as sobrancelhas e disse: “Se você não sabe o que quer dizer nenhuma palavra fará sentido nem trará clareza; se não sabe onde deseja estar, nenhuma casa se tornará um lar”. O artista argumentou que em sua cabeça polvilhavam muitas ideias e ele ficava em dúvida sobre qual delas era a melhor. O sapateiro tentou explicar: “Todas as ideias são boas, depende apenas da maneira como será trabalhada. Todos os assuntos podem tocar no coração das pessoas, basta a abordagem adequada”.

“Quando começar algo, prossiga. Desmanche, recomece, insista. Aprenda com as dificuldades. Refaça, apare, burile, aperfeiçoe. Vá, volte e retorne a ir. Nada está pronto, tudo está por fazer e carece de chegar ao final”.

“O importante é ser por inteiro onde quer que esteja, em absoluta intensidade com toda a magia oferecida pelo momento. Quando faço um sapato, algumas vezes faço apenas um sapato; noutras consigo aproveitar a oportunidade para transformar o couro como arte circulante em pés alheios. A diferença será o quanto do meu coração foi depositado naquele trabalho”. Tornou a beber um gole de café e comentou: “Uma folha de papel pode servir para embrulhar o pão, escrever uma poesia, virar um origami ou ser apenas uma folha de papel. A sua mente poderá levá-lo até a esquina ou a lugares fantásticos, depende apenas do quanto de você mesmo for ofertado em cada olhar e gesto”.

“Independente da situação, quando olhamos e agimos com amor o universo se manifesta em luz”.

“Assim é o fato de sempre desejar estar em outro lugar, diferente daquele no qual se encontra. Enquanto eu não entender quem sou não saberei onde estou. Sem referências sobre a minha direção pessoal não entenderei o sentido do Caminho. Penso no táxi de Londres quando estou no metrô de Tóquio; desejo um restaurante de Nova Iorque enquanto almoço no mercado em Istambul. Acabo por desperdiçar o tesouro da existência”. O artista plástico quis saber sobre esta riqueza referida pelo sapateiro. Loureiro disse: “É uma valiosa sabedoria ensinada por Buda, que de tão antiga, muitos a julgam obsoleta”, arqueou os lábios em leve sorriso e acrescentou: “O melhor lugar do mundo é aqui e agora”.

“Independente de onde estiver, aqui estão as suas lições e o mel da vida. Agora é a hora de oferecer o seu melhor, de fazer diferente e ser feliz. Não existe nenhum outro lugar ou momento”.

“A espera nem sempre significa paciência. Movimento nem sempre se traduz em transformação. Ansiamos tanto pelo porto seguro que esquecemos que a vida acontece nos mares da travessia. Desperdiçamos a fila do ônibus, o supermercado lotado, a criança chorando, o faminto que pede pão, o amigo problemático, os parentes encrenqueiros, a difícil e bonita luta pela sobrevivência, sementes de todas as lições. Afinal, no desejo pelo paraíso, onde não exista nenhuma dessas chateações, perdemos a vida na espera da hora ideal e do lugar perfeito. A luz é um dom latente no ser; a queremos, mas nem sempre percebemos o véu que a esconde diante dos nossos olhos. Por ansiar pela obra pronta esquecemos das ferramentas oferecidas, da responsabilidade como criaturas e da alegria por participar da criação”.

“O momento certo e o lugar adequado será sempre onde estiver o seu coração. E ele apenas pode estar aqui e ser agora”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Foi Zinedine quem rompeu o silêncio ao perguntar se o sapateiro o aconselhava permanecer com uma ideia ou em determinado lugar mesmo quando não mais estivesse satisfeito. Loureiro balançou a cabeça e respondeu: “Em absoluto. A insatisfação é o primeiro sinal da necessidade de mudança. Ninguém é obrigado a nada. As escolhas são e precisam ser livres para que possam nos traduzir e conduzir pelo Caminho. A liberdade é uma ferramenta indispensável às mutações. Independente de ir ou ficar, permanecer ou trocar, apenas não devemos nos comportar de maneira superficial e volúvel. Lembre que lições estão ocultas nos problemas. O importante é aproveitar a situação vivida aqui e agora com a máxima intensidade, se colocar por inteiro no momento para que ele possa se preencher, expandir até o limite e, então, transmutar em outra possibilidade nunca antes imaginada”. Abaixou a cabeça e sussurrou como quem conta um segredo: “Então, a luz”. Bebeu o último gole de café e finalizou: “Fora do aqui e agora não existe vida, apenas um espectro de vida”.

Zinedine fechou os olhos e sorriu em agradecimento.

10 comments

Gabriel maio 11, 2017 at 2:20 am

Eu esperei por esse texto por dias… pois de algum modo sabia que seria para mim!
Grato pela sua sabedoria!

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Michelle maio 11, 2017 at 8:12 am

😍

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Anna maio 11, 2017 at 5:25 pm

Iteração. E dessa vez em diminuta palavra: grata.

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Claudia Pires maio 11, 2017 at 11:08 pm

Maravilhoso texto.

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Joane Faustino maio 12, 2017 at 12:57 pm

Grata! Sabia que também esse texto seria pra mim…lindo!!!

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Miquelyna maio 12, 2017 at 11:37 pm

Que a Luz Transmute-nos!!

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Nazaré Dimaria maio 13, 2017 at 12:31 pm

Sempre perfeito!

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Priscila junho 14, 2017 at 10:08 am

Texto maravilhoso! Tenho imensa dificuldade em terminar o que começo. Muito grata!

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Christina Mariz de Lyra Caravello agosto 5, 2017 at 12:48 am

“A vida acontece nos mares da travessia. Desperdiçamos a fila do ônibus, o supermercado lotado, a criança chorando, o faminto que pede pão, o amigo problemático, os parentes encrenqueiros, a difícil e bonita luta pela sobrevivência, sementes de todas as lições. Afinal, no desejo pelo paraíso, onde não exista nenhuma dessas chateações, perdemos a vida na espera da hora ideal e do lugar perfeito. ”

Desperdiçamos a chance de ficar em silêncio e de sermos críticas e mordazes em comentários que não levam a nada, desperdiçamos a chance de sermos humildes …
desperdiçamos a chance de sermos caridosos…desperdiçamos a chance de pedirmos perdão…
Desperdiçamos….desperdiçamos….desperdiçamos

Não damos a importância ao aqui e ao agora e a toda beleza contida no momento presente. Este é o momento mais importante, porque é o real.

Desse olhar, desse sentir, desse entender esse momento resulta todo o aprendizado necessário para construirmos o futuro, para realizarmos nossos sonhos como pessoas melhores e mais evoluídas.

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Domingos M. Júnior setembro 19, 2018 at 5:59 pm

Um grande Mestre nos ensinou que “Onde estiver o vosso Tesouro, aí estará o Vosso Coração”.
Neste Belíssimo texto você nos mostrou que “Onde estiver o Teu coração, aí estará o Teu tesouro”
Gratidão!!!

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