TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Trigésimo nono limiar – O valor da unidade)

Era uma agradável manhã de céu azul e brisa refrescante. Eu estava diante de uma casa simples e humilde. Ao entrar tive a nítida sensação de estar em um templo de luz. Ninguém na sala. Na cozinha, um homem de corpo franzino coava café em um bule de ferro esmaltado. Ofereceu-me um doce sorriso; com um movimento de cabeça me convidou para sentar à mesa, na qual duas xícaras esmaltadas em branco, típicas do interior do Brasil, estavam postas, indicando que ele me esperava. Sem dizer palavra, encheu as xícaras e se sentou à minha frente. Os seus olhos refletiam a serenidade de quem compreende o fluxo da vida; nada é para o mal; todo bem será encontrado no aprendizado oferecido a cada situação. Neste instante, um beija-flor entrou pela janela, pareceu cumprimentar o homem que, em retribuição sorriu ao passarinho que logo se foi. Comentei que o beija-flor se equivalia ao corvo, animal que em algumas tradições xamânicas simboliza o mensageiro entre dimensões existenciais. O homem tinha a fala mansa e pausada: “O céu pelo qual o pássaro voa tem de estar integrado ao chão em que piso. Do contrário, a vida ficará sem explicação”. Fez uma pausa para eu começar a alocar as ideias que me transmitiria e prosseguiu: “Desde tempos imemoriais, existe a unidade. Uma compreensão fundamental para a integração do indivíduo à natureza. Porém, nada disso acontece enquanto ele não estiver unificado em si mesmo. Isto ocorre quando todas as partes de quem somos trabalham alinhadas sob um mesmo propósito: a luz. Ego e alma, sombras e virtudes, experiências e aprendizados, conhecimento e realização se conflitam no âmago do indivíduo no início da fantástica viagem que fazem rumo à descoberta, encontro e conquista de quem somos. Trata-se de uma jornada linda, porém atribulada, com constantes desconstruções e reconstruções, até o momento em que todos esses elementos fiquem devidamente afinados e sob um mesmo tom, como uma orquestra pronta a entonar a exata sinfonia; enquanto não acontecer, haverá muito ruído e pouca melodia. Cada um é o maestro a reger as músicas da sua própria vida”. Perguntei como me reger com perfeição. Ele respondeu: “A perfeição é a estrela alta que, embora inatingível como destino, serve para indicar o rumo certo àqueles que ousam a percorrer o Caminho”.

Interrompi para saber que estrela era essa a que se referia. Ele esclareceu: “A verdade. À medida que nos guiamos pela luz, o olhar se aprimora, a realidade se modifica. Não que as coisas mudem, isto não acontece; porém, passamos a ver tudo e todos de modo inusitado. Ao clarear um ambiente totalmente escuro, descobrimos algos e alguéns que pensávamos não existir ou acreditávamos diferentes do que são; inclusive, e principalmente, a nós mesmos.  A verdade é um produto resultante da luz”. Indaguei se a luz era a conjunção do amor com a sabedoria conforme me havia sido dito naquela estranha viagem ao Tao através do inconsciente coletivo. Ele confirmou com a cabeça.

Eu quis saber como isso acontecia na prática. O homem explicou: “No compasso do aprimoramento da percepção e da sensibilidade, elementos que estruturam a consciência, a luz conquistada expande ao infinito as fronteiras da verdade. A verdade é uma estrada cuja paisagem se modifica nos passos do viajante pela simples razão de se tornar cada vez mais iluminada. Ao caminhar no escuro, sentimos medo por desconhecer o que está ao redor, os perigos que se avizinham, as feras à espreita. Ainda mais, desperdiçamos todas as belezas e maravilhas que, por todo tempo, estiveram à disposição; no entanto, não as conseguimos ver. No amanhecer do espírito, a claridade concede o equilíbrio e a força oriundas do conhecimento, uma lanterna que ao ser bem usada, serve primordialmente para iluminar as próprias sombras. Este é o fator de transformação oferecido pela verdade. Contudo, não basta ver e saber. A transformação se completa no agir. A verdade precisa de novas ferramentas para abrir portas que antes sequer acreditávamos existir. Essas ferramentas se chamam virtudes; são as construtoras da verdade no cotidiano. As virtudes aplicadas à prática é a única maneira de fazer bom uso da verdade”.

Indaguei como a verdade seria mal utilizada. Ele explicou: “Exibicionismo, arrogância ou veneno. Sem amor contido nas virtudes, a verdade adoece e fere”. Questionei o que ganhamos com a sua correta utilização. Ele arqueou os lábios em sorriso e disse: “Quando usada como elemento orientador das virtudes, além de equilíbrio e força, adquirimos suavidade e leveza para fluir através dos dias. A suavidade é a mestria de se movimentar sem conflitos e rugidos; são desnecessários, uma afronta à alma. A leveza se caracteriza na capacidade de não permitir que mágoas e desgostos apaguem a sua luz em incompreensões sem fim ao criar morada no seu coração. As virtudes concedem esse poder”.

Olhou pela janela por alguns instantes e disse: “Para que se possa ter uma visão ampla da realidade é preciso voar alto. Visto de cima, os acontecimentos têm proporções diversas daquelas de quando o observamos do chão.  Um abismo será um obstáculo instransponível para um animal que usa das patas para se locomover; em sua limitada concepção de realidade, estará diante da última fronteira do mundo. Para aqueles que se valem das asas, esse mesmo rio nunca representará qualquer impedimento e, ainda mais, explicará a grandeza do mar. Olhar o mundo sob o prisma de um voo de grande altitude redimensiona a paisagem”. Deu de ombros e comentou: “Diferente não é com a realidade. Esse é o poder da verdade”.

Bebericou o café antes de acrescer ao entendimento: “De outro lado, o olhar amplo da sabedoria de nada servirá sem as suas corretas aplicações às situações do cotidiano. Das mais complexas às mais banais. As exatas elaborações de todas as experiências vividas oferecem ao indivíduo a profundidade indispensável para que confie em si ao enfrentar as inevitáveis intempéries da existência. Árvores altas de raízes curtas tombam com extrema facilidade; somente as raízes profundas conseguem vencer o tempo e a tempestade. Essa profundidade está no amor contido em cada virtude”. Sorriu ao concluir: “Verdade e virtudes unem o céu com a terra dentro da gente. Desconheço outro jeito”.

Eu quis saber como aplicar aquela teoria à prática. Ele explicou: “Todas as vezes que mundo disser não, nos momentos em que você tiver as suas pretensões negadas, vontades contrariadas e expectativas frustradas, ao invés de se entristecer ou se revoltar, busque pela unidade. Do mesmo modo, nas ocasiões em que uma decisão sua tiver a possibilidade de afetar a vida de outra pessoa, busque a unidade para entender se agirá no expoente de novas capacidades ou se repetirá velhos erros e seguirá limitado a comportamentos de rotina que já se mostraram incapazes de proporcionar qualquer avanço. Observe do alto para que possa compreender o todo ao invés de se limitar a analisar a parte isolada, um comportamento típico de quando estreitamos o olhar. A vida se apequena, a verdade se amiúda. Agiremos aquém do que poderíamos. O céu e a terra continuarão fragmentados dentro de nós. Os dias seguirão confusos e conflituosos”.

Fez um gesto manso com a mão para ressaltar as palavras e disse: “Encontre a virtude correta que aprofundará os fundamentos do amor e da sabedoria; para cada momento existe ao menos uma. Não importa o quão escura é uma situação, sempre haverá uma virtude a servir de candeeiro. A verdade impulsiona a virtude; a virtude indica onde encontrar a verdade; verdades e virtudes se complementam em sentido e utilidade. Esse é o segredo da luz. Assim como você, todas as pessoas têm o direito às suas opiniões, interesses e escolhas que nem sempre estarão de acordo com a sua; todos têm as suas dificuldades e incompreensões. E é importante que seja assim. O respeito as diferenças, muitas vezes nos faz perceber aquilo que pode estar mal construído em nós, nos mostrando outro jeito de olhar e entender a nós mesmos e ao mundo. Assim aprimoramos a percepção e a sensibilidade para compreender que existem realidades além daquelas que vivemos, nos tornando mais receptivos e solidários a toda gente. Isto expande a verdade, nos integra e integraliza, fomenta asas e raízes. Tornamo-nos um bom lugar para viver”.

O homem prosseguiu: “Ainda que reste uma sensação de injustiça, que pode ser verdadeira, o voo alto da verdade permitirá um olhar amplo para entender a situação além da compreensão comum. Onde muitos verão um inimigo ou impostor, você encontrará um fugitivo da verdade, ouvirá um grito disfarçado de socorro, verá alguém amedrontado por negar ou desconhecer as virtudes como ferramentas de transformação da realidade. Nas medida das possibilidades, ajude-o. Os obstáculos do cotidiano se tornam abissais quando separamos o céu da terra; deixamos de ver os portais de passagem, acreditamos nos conflitos para solucionar conflitos; vivemos em contradição com a nossa própria essência. Para tanto, não podem faltar a simplicidade para interpretar os fatos sem enganos, a humildade para refazer os equívocos, a coragem para lidar com os medos, a compaixão para perdoar, a pureza para abdicar do mal, por menor que seja, como método de conquista, a firmeza para não abdicar da verdade e a delicadeza para suavizar a aspereza das relações. Torno-me inteiro quando não separo o sagrado do mundano; a transcendência se faz presente nos ato da sobrevivência. À medida que o indivíduo se integra consigo mesmo, a parte se ajusta ao todo. As conexões se intensificam. Pela unidade, o céu se torna claro, a terra fica firme, o espírito floresce e o vale permanece fértil”. Falei que não tinha entendido a última frase. Ele pormenorizou: “Tornar-me inteiro significa construir um lindo lugar para eu viver em mim. Cada pessoa mora dentro de si mesma. O olhar claro concede equilíbrio e força; sinto-me seguro, alegre e confiante. As atitudes ficam firmes por estarem alicerçadas nos pilares inquebrantáveis da verdade; o medo desparece por falta de sentido, os sofrimentos se desmancham quando entendemos que só existem onde a verdade não habita. Os movimentos se tornam suaves e leves por fluírem através das virtudes. Minhas relações florescem em amor e sabedoria. Conquisto a mim mesmo, descubro as maravilhas da vida, ilumino o mundo e sigo em busca de novas fronteiras”.

Confessei-me encantado com aquelas palavras. O homem sorriu e disse: “Quando os dez mil seres amadurecem, reis e príncipes governam com sabedoria”. Antes que eu fizesse qualquer pergunta, ele se adiantou: “Como ensinou um antigo mestre, os dez mil seres representam também todas a vozes que nos habitam. Elas são muitas por representarem tudo que sabemos e vivemos; uma infinidade de ideias e emoções que duelam na tentativa de assumir o comando da consciência, o lugar onde cada um mora dentro de si. Somos muitos em um. Essa harmonia ou desordem intrínseca define onde vivemos. Há reinos devastados, alguns em demolição e existem quem esteja em reconstrução. À medida que os habitantes da consciência amadurecem, tristezas perdem o sentido de existir, traumas são desmanchados pelas mãos do entendimento, velhas decepções estimulam novas superações; surge espaço para alegrias genuínas e conquistas autênticas. Alma e ego, por serem os habitantes de maior poder, são chamados por esse antigo mestre oriental de príncipe e rei em razão das suas enormes responsabilidades com a transcendência e sobrevivência no reino sagrado de quem somos. Esse é o alinhamento luminoso que encerra o fase de fragmentações e gera a unidade do ser consigo mesmo. A parte se ajusta ao todo; a terra se une ao céu. O divino se manifesta em si e através de si nas ações comuns ao cotidiano; as fontes de equilíbrio e força se intensificam; movimentos e escolhas se tornam leves e suaves”.

Questionei o que acontece enquanto não formos inteiros. Ele explicou: “Fora da unidade, resta o medo. O medo leva ao desespero e à queda”. O medo nasce de um olhar turvo que, ao negar a verdade, gera equivocada interpretação da realidade, dando origem às incompreensões quanto ao fluxo da vida. Diante de qualquer dificuldade ou ameaça, quando nos acreditamos incapazes de lidar com as adversidades, temos a sensação de estar diante do abismo. Os sofrimentos brotam como erva daninha depois da chuva. Por amargar o coração e turvar a mente, o medo será sempre um péssimo conselheiro. Somente o retorno à unidade irá restaurar as forças, reconduzir ao equilíbrio e repor as asas perdidas”.

Indaguei se o abismo somente existia para quem ainda não desenvolveu as próprias asas. O homem sorriu em resposta. Em seguida, falei que tinha entendido que o medo era oriundo de uma equivocada interpretação da realidade, do desconhecimento quanto às minhas capacidades e do genuíno sentido da vida. Contudo, como as virtudes eram ferramentas evolutivas, indaguei quais delas serviriam para desmanchar essa sombra tão comum e destrutiva. O homem disse: “Para enfrentar o medo, coragem. Para diminuir o seu tamanho, esperança. Para desmanchá-lo, fé”. Questionei o que ele entendia como fé. O homem explicou: “Fé é a capacidade de resgatar a unidade ao unir o céu e a terra em si. No despertar do sagrado, basta que o movimente em sentido à luz. Não existirá medo nem sofrimento onde você mora”.

Perguntei se ele conhecia alguém possuidor de tal capacidade. O homem elucidou: “Os sábios conhecem o poder da unidade e de todos os atributos advindos de uma vida alinhada à luz. Por isso são mansos, serenos e possuidores de uma firmeza inabalável. São pessoas nobres”. Estranhei a mistura de nobreza com sabedoria. Ele desfez a confusão: “Nobreza nada tem a ver com títulos, cargos políticos, erudição ou fortuna. A genuína nobreza tem raiz na humildade. Não existe outra nobreza que não a do espírito virtuoso e coerente com a verdade. Por todo tempo, o sábio terá de manter a humildade como o pilar central do seu jeito de ser e de viver. Quem se acredita grande está impedido de crescer; não por ninguém, mas por sua própria ignorância. O humilde está aberto às inovações, suscetível às transformações, não carrega nos ombros a arrogância da perfeição, reside em lugar além da humilhação das críticas e está longe do perigo na estagnação. A humildade é movimento primordial à lucidez. O alto tem por alicerce o baixo; o segredo dos grandes prédios não está no terraço que parece tocar nas nuvens, mas na robustez dos seus pilares ocultos no subsolo; imperceptível a olhos que apenas enxergam o que se mostra à superfície e se deixam fascinar pelos belos contornos da aparência. Os espíritos imaturos aguardam pelos acontecimentos extraordinários, recepções palacianas, homenagens acadêmicas ou midiáticas como se estas fossem angulares em sua existência. Uma tolice bastante vulgar. Transformadores são os acontecimentos banais do cotidiano. A grande riqueza da vida está escondida por trás das situações comuns do dia a dia, na pureza das relações, na simplicidade de uma vida sem enganos, na coragem dos mansos, na humildade dos aprendizes, na misericórdia sem alarde, na alegria da saudade, na compaixão silenciosa, no abraço sincero, no sorriso de esperança, na prece secreta, no olhar doce que transcende as palavras. Nos potes de água que deixamos para saciar a sede de quem vem atrás; está no amor que plantamos quando ninguém nos vê”.

Fez uma pausa antes de prosseguir: “Reis e príncipes serão bons enquanto forem órfãos, imperfeitos e ignorantes’. Interrompi para dizer que não fazia sentido. O homem era um professor paciente: “Lembra que usamos os termos reis e príncipes para nos referir a ego e alma?”. Fiz sim com a cabeça e ele continuou: “São órfãos porque sabem que precisam contar consigo para superar as dificuldades; na viagem rumo à luz só se avança com as próprias pernas; toda e qualquer ajuda é de orientação, jamais de execução. São imperfeitos porque têm consciência das construções ainda inacabadas que existem em si. E são ignorantes por jamais se portarem como mestres. Por mais que tenham avançado, seguem como insaciáveis e incansáveis aprendizes. O Caminho não tem fim”.

Depois, acrescentou: “O maior perigo para um sábio são os elogios. Ao contrário do que muitos acreditam, honrarias não trazem benefícios. Elogios podem se tornar um atalho para o precipício; a fama desperta o orgulho, a vaidade e a cobiça; cria dependência pelo brilho e o leva para morar no castelo dos enganos. O sábio escapa dos elogios como um guerreiro luta para não perecer nos campos de batalha. O inimigo mais traiçoeiro é também o mais perigoso. Saber que o jade vale menos que a pedra resume a mais fina sabedoria”. Pedi para que explicasse melhor. Ele esclareceu: “O jade é uma gema rara e caríssima. Para os tolos, imaturos ou desavisados as joias simbolizam riqueza e poder. Em verdade, são meros ornamentos típicos de um o indivíduo que deseja mostrar ao mundo a sua importância ou posição de destaque na sociedade; sustentáculos de uma imagem vazia em essência. Desconheço outra utilidade. Nenhum bem genuíno o jade produz. O sábio o considerada vulgar. De outra face, a brita, pedra farta na natureza e de preço barato, serve para construir pontes, pavimentar estradas, levantar diques e erguer prédios. O seu valor é incomensurável. Essa é lente da verdade pela qual o sábio faz a leitura da realidade. Ele se esforça para que a sua existência tenha utilidade da pedra comum e fique distante do brilho e da pompa do jade. Nem tudo que reluz é luz”.

Terminamos o café sem dizer outra palavra. No fundo da xícara, a borra formava uma mandala em forma de estrada. Segui em frente.

 

Poema Trinta e Nove

 

Desde tempos imemoriais, existe a Unidade.

Pela Unidade, o céu se torna claro, a terra fica firme,

O espírito floresce, o vale permanece fértil.

Quando os dez mil seres amadurecem,

Reis e príncipes governam com sabedoria.

Fora da unidade, resta o medo.

O medo leva ao desespero e à queda.

 

A nobreza tem por raiz a humildade,

O alto tem por alicerce o baixo.

Reis e príncipes serão bons enquanto forem

órfãos, imperfeitos e ignorantes.

Honrarias não trazem benefícios.

Sabem que o jade vale menos do que a pedra.

 

4 comments

SCHWEITZER março 14, 2023 at 8:22 pm

Muito bom, especialmente a parte do jade e da pedra. Amei.

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Haian março 20, 2023 at 4:03 pm

Grato!

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Rhodolfo abril 4, 2023 at 2:00 am

Gratidão!

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Maangoba setembro 1, 2023 at 8:45 pm

gratidão

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