Essa conversa aconteceu há muito tempo. Eu costumava visitar o Loureiro, o sapateiro amante dos livros de filosofia e dos vinhos tintos, em sua oficina, localizada na pequena e charmosa cidade que ficava no sopé da montanha que abriga o mosteiro, todas as vezes que eu passava para mais um período de estudos. Como o trem me deixava na estação ainda de madrugada, eu seguia a pé pelas ruas estreitas e sinuosas até a oficina, que era lendária, não apenas pela habilidade e beleza com que Loureiro confeccionava artesanalmente sapatos e bolsas de couro, mas também pelo horário inusitado do seu funcionamento. Abria as portas no alto da madrugada e a fechava ao meio-dia, quando o sapateiro se retirava para almoçar, sempre acompanhado com uma taça de um bom tinto, para depois se entreter com os livros que tanto amava. Como de hábito, naquele dia, eu andava pelas ruas seculares calçadas por pedras irregulares, tendo a sensação que o barulho dos meus passos acordaria toda a cidade diante do quase absoluto silêncio que dominava a noite. Era sempre motivo de alegria quando, ao virar a esquina, eu me deparava com a clássica bicicleta do habilidoso artesão encostada no poste em frente à oficina. Fui recebido pelo meu amigo com um sincero sorriso e um forte abraço. Sem demora, estávamos sentados ao lado do pesado balcão de madeira, com duas canecas fumegantes de café que ele acabara de passar. Tirei da mochila e entreguei uma boina que levara de presente para ele. Ele agradeceu, elogiou e, de modo gaiato, se mirou no espelho com ela. Rimos. Comentei que as boinas voltaram à moda por causa de um filme recente de muito sucesso, cujo protagonista usava um modelo parecido. Loureiro sorriu e disse: “Eu a usarei mesmo após o filme cair no esquecimento e a moda mudar. Gosto do estilo e me sinto bem com ela”.
Comentei que eu o conhecia havia muito tempo e ele sempre se vestira do mesmo jeito. Uma calça de fina alfaiataria, em geral, preta ou cáqui, com uma camisa branca ou azul claro, por dentro das calças e as mangas dobradas acima da altura do cotovelo para não atrapalharem o seu serviço na oficina. Como era alto e esguio, com uma cabeleira branca que a idade não consumiu, se mantinha elegante mesmo com o passar das décadas. Já se locomovia de bicicleta desde a época que a sua geração desejava carros velozes. Nunca aderira a qualquer modismo que, por sua própria estrutura, é momentâneo e passageiro. Ele ponderou: “O que nunca sai de moda é ser uma pessoa sensível, de atitudes firmes quanto aos seus princípios e ética, porém, delicada, gentil e bem-humorada no trato com toda gente”. Bebeu um gole de café e iniciou um breve ensaio filosófico: “A questão da moda é muito parecida com os problemas da opinião”.
Eu quis saber o que uma coisa tinha a ver com a outra. Ele explicou: “A moda no vestir é uma derivação da formação de opinião sobre um determinado assunto”. Falei que tinha entendido menos ainda. Ele riu e ponderou: “Usamos uma determinada roupa por vários motivos. Para nos embelezar, como a boina que você me deu”. Rimos de novo e ele prosseguiu: “Por ser útil, como no caso dos casacos nos dias frios; por ser prática, como bermudas em um passeio à beira-mar em manhãs de sol, certo?”. Lembrei que havia outros motivos, como de indivíduos que usavam certas roupas para serem aceitos em grupos sociais específicos ou para construírem uma identidade”. Loureiro arqueou as sobrancelhas e exclamou: “Este é ponto!”.
Ele prosseguiu: “Se uso jeans e camiseta significa que sou descolado, se uso paletó e gravata alerto a todos que sou uma pessoa séria, seria isto?”. Dei de ombros e respondi que, grosso modo, para muitas pessoas as roupas serviam como o prefácio de um livro que explica as motivações daquela obra. Contudo, o prefácio jamais traduz toda a extensão da ideia contidas nas palavras do autor e o conteúdo oculto em suas entrelinhas. “Exato”, concordou Loureiro.
Ele continuou: “Penso que com a opinião não é diferente. Percebo que somos levados a aderir a determinadas opiniões por serem aceitas nas tribosque desejamos pertencer. Partidos políticos, segmentos religiosos, atividades artísticas, setores profissionais, se prestarmos atenção, cada qual possui um viés dominante de pensamento e modo de expressão. Ao pertencer a determinado círculo social, corremos riscos de rejeição se ousarmos a pensar de maneira diferente ao padrão predominante daquele grupo”.
“Em busca de uma identidade, perdemos a identidade. Nada nos representa tanto socialmente como a opinião que expressamos, por se tratar da manifestação verbal de nossas ideias e sensibilidade. Sem perceber, deixamos de ser sinceros por nos desconectar da nossa essência e nos afastarmos da intimidade que cada um deve ter consigo mesmo. Perdemos a verdade no trato interpessoal”.
“Capitalistas, comunistas, surfistas, magistrados, médicos, artistas, atletas, publicitários, empresários, sindicalistas, entre múltiplos outros setores, ou, liberais, conservadores, religiosos, ateus, modernos, caretas, descolados, ultrapassados, a depender da triboque o indivíduo deseja possuir identificação, ao se expressar de modo diametralmente oposto à linha de pensamento comum, torna enorme e real a chance de acabar rejeitado ou não aceito como integrante daquele grupo”.
“Nem sempre são formalmente expulsos, mas colocados à margem por não comungar das mesmas opiniões. O indivíduo é posto de lado, evitado, esquecido, o que na prática é uma exclusão silenciosa, uma marginalização. Uma condenação imposta pela ousadia de pensar fora dos padrões estabelecidos por aquele determinado grupo social ou profissional. Todos sentem necessidade de pertencer a uma tribo, seja por identificação, seja para se sentirem protegidos. De alguma maneira, sabemos disto, pois faz parte do nosso instinto, percepção ancestral ligada às noções básicas de sobrevivência, transmitida por incontáveis gerações de maneira quase imperceptível desde o início dos tempos. Na maioria das vezes, agimos sem racionalizar, pois, é uma atuação do inconsciente coletivo, uma parte minha que é igual em todas as pessoas. Está tão arraigada em nosso íntimo que influenciam o nosso jeito de pensar sem nos darmos conta disso. Assim se originam os condicionamentos socioculturais e os preconceitos”.
Interrompi para questionar se ele afirmava que nem todas as minhas ideias e, por conseguinte, as minhas opiniões não eram fundamentalmente minhas. Loureiro balançou a cabeça e anuiu: “Sim, é isso. Quando a voz do instinto fala mais alto, significa que outras vozes, bem mais sensíveis, que existem dentro de você foram emudecidas. O problema é que o instinto é uma face primitiva que ainda carregamos, pois está ligada ao medo. Não podemos esquecer que o medo é o maior impeditivo para que possamos desenvolver todo o potencial que temos, ele nega os sonhos e os dons, os voos mais longos, embaça o olhar, confunde o sentir e estreita o pensar. Enfim, o medo impede que encontremos conosco e que sejamos tudo aquilo que poderíamos ser”.
“Sentimos medos por diversos motivos. Não importa a causa do medo, a sua presença, por impedir livre-pensar, deixará a opinião contaminada”.
Falei que fazia sentido. Mas o sapateiro me desconcertou: “Isso é somente parte do problema. O que pode ser mais íntimo a uma pessoa do que os seus sentimentos e ideias? O sentir e o pensar são, em essência, a nossa verdadeira identidade”.
“A identidade de um indivíduo se manifesta ao mundo através das suas escolhas. A opinião faz parte do rol de escolhas legítimas a qualquer pessoa”.
“Contudo, a opinião precisa de uma mente clara e um coração puro para que possa ser construída com dignidade e liberdade”.
“Ninguém encontrará a verdadeira identidade enquanto não se se questionar quais são os alicerces que sustentam a sua opinião?”.
Com o seu usual bom humor, brincou: “O meu pai dizia que eu tinha opinião para tudo. A minha especialidade eram os assuntos que eu não entendia”. Rimos. Ele prosseguiu: “Porém, é uma grande verdade. Não entendemos sobre o que opinamos porque não buscamos os fundamentos que construíram aquela ideia. É mais cômodo e aparentemente mais fácil. Apenas acompanhamos o recorrente fluxo da manada que, por necessidade pedagógica, ao final do pasto despenca em estrondoso desfiladeiro. Apenas lembre de não culpar ninguém, a responsabilidade pela escolha de seguir a multidão sem se questionar, sem consultar todas as vozes que o habitam, foi sua”.
Esvaziamos as xícaras de café, ele tornou a enchê-las e prosseguiu: “Quando somos crianças e adolescente, muitas vezes pedimos autorização para participar de eventos e passeios que, diante da negativa das nossas mães, alegamos: Mas mãe, todo o mundo vai. Elas respondiam: Você não é todo mundo, menino!”. Outras vezes, argumentavam: “Se todos pularem do alto do edifício, você também pulará?”. Dei o sorriso alegre ao me lembrar das inúmeras vezes que vivenciei estes diálogos com a minha mãe. Loureiro concluiu: “Ali estava o cerne de um ensinamento que de tão valioso deveria se tornar inesquecível por sua enorme utilidade: discernimento e identidade. Contudo, o desperdiçamos na maturidade por mera imaturidade”.
“Ainda não aprendemos a construir uma opinião autêntica e legítima”.
“A filosofia nos diz que o homem é produto do meio em que vive. A ideia me parece correta; aceitar o comportamento como inevitável, penso estar errado”.
“Sofro intensa influência de tudo que está ao meu redor. De bom e de ruim. Cabe a mim fazer a filtragem para me banhar em águas claras ou, se preferir, nadar em águas turvas. O processo das escolhas se inicia na construção da minha opinião. Hipocrisias à parte, escolho isto ou aquilo, se sigo por aqui ou por ali, de acordo com a minha opinião. Ela se forma no compasso da minha consciência, ou seja, da percepção que tenho de mim mesmo e do mundo como já consigo vê-lo”.
“Na minha opinião deve prevalecer o consenso que cheguei comigo mesmo após ouvir as vozes que me habitam. Por isto a minha opinião expressa a minha identidade ao mundo. A cada dia, sou a harmonia ou os desequilíbrios dessas vozes. Isto explica a coerência ou a incoerência de quem sou, a lealdade que tenho aos meus princípios e valores, a tudo que amo e entendo essencial. Uma escolha materializa a opinião que tenho sobre determinado assunto”.
“Não preciso ter opinião sobre todas as coisas, apenas sobre aquilo que tenho que me posicionar ou realizar escolhas. Contudo, como construo a opinião que tenho sobre os assuntos que me são fundamentais?”.
“Posso obedecer a voz do medo: Você não vai conseguir!Ou posso seguir o conselho do amor: Se você não tentar nunca irá conseguir”.
“Posso obedecer a voz do medo: Não tente de novo. Você já quebrou a cara uma vez!Ou posso seguir o conselho do amor: “Tente de novo. É impossível ser feliz sem confiar”.
“Posso ter opiniões que deixem a minha vida mais cômoda, mas posso ter opiniões que deixem a minha vida mais verdadeira. Eis a pedra primordial na construção de cada opinião. Você pode desagradar ao segmento profissional do qual faz parte, o grupo social a que pertence e até mesmo as pessoas mais próximas e queridas. O que você não pode é contrariar a sua essência, aquilo que de melhor existe em você, a sua própria verdade que, para tanto, precisa estar livre das contaminações. As suas e as do mundo”.
“Lembra que uma parte da sua mente é o inconsciente coletivo? Isto significa que uma parte de você é a História da Humanidade, que costumamos narrar através de guerras, pragas, destruição, dominação, entre outros acontecimentos sombrios ocorridos desde o início da civilização. Nesta memória ancestral, trazemos conosco elementos que participam mais de nossas opiniões do que somos capazes de perceber, ao menos enquanto não iniciarmos a inevitável jornada da busca por quem somos. Somente então, perceberemos que as páginas da humanidade também foram escritas com as letras do amor e as tintas da superação. Aspectos que devem prevalecer na elaboração de uma opinião”.
“A sua opinião precede muitas outras das suas escolhas”.
“Os alicerces de uma opinião estão fincados em solo de vaidade ou de simplicidade, de orgulho ou humildade, de raiva ou compaixão, de enganos ou sinceridade, de maldade ou de pureza, de impotência ou vontade, de desconfiança ou coragem, de insensibilidade ou de gentileza, de apego ou leveza, de desengano ou de fé. Enfim, de sombras ou de luz”. Franziu as sobrancelhas, como fazia quando concluía um raciocínio e disse: “Entende quantos elementos devemos prestar atenção e filtrar ao misturar a argamassa dos alicerces de uma opinião? Isto se traduzirá em escolhas e definirá o destino de cada pessoa”.
“Se puder, evite formar uma opinião sobre fato que você não vivenciou. O simples modo pelo qual é narrado será decisivo para conduzir o seu raciocínio. Sem falar da manipulação de pequenos detalhes que fazem grandes diferenças. Algo muito comum de acontecer. Assim, a opinião que você expressará, ao contrário do que acredita, jamais será sua, mas a de alguém que você permitiu que a montasse dentro de você. Perde-se a identidade e o destino”.
“Fique atento com o poder de influência exercido por algumas pessoas. Por múltiplos motivos, se tornam formadores de opinião pelo fascínio que exercem sobre os outros. Não rejeite sumariamente nenhuma ideia, mas também não permita que ninguém furte o seu poder de percepção, sensibilidade e raciocínio. Lembre, o seu melhor mestre floresce no amago do seu ser”.
Tornar-se um livre-pensador e maestro da própria existência exige muita atenção e esforço.
Bebi um gole de café e argumentei: “Se a minha opinião me identifica perante outras pessoas, para que ela seja autêntica precisa revelar a sinceridade mais íntima do meu pensar e sentir. Para que seja legítima preciso de um mergulho profundo e uma busca ampla para filtrar as vozes que a influenciam. Preciso entender se a minha opinião representa a minha essência ou se somente se trata de uma influência sociocultural, conveniência profissional e de comodidade existencial”.
Loureiro balançou a cabeça como quem diz que eu havia entendido. Foi quando me ocorreu uma ideia. Expus para me certificar da lógica que possuía: “Partindo do princípio que entender os alicerces de uma opinião é um método eficaz de conhecimento sobre si mesmo, então, na construção de cada opinião eu posso encontrar um pouco mais de quem quero ser. Logo, irei também me aproximar um pouco mais da minha verdadeira identidade e aperfeiçoar as minhas escolhas. Assim, posso concluir que compreender os pilares de uma opinião se equivale a um importante passo no Caminho”. O sapateiro apenas me olhava. Em seguida, indaguei: “A formação de cada opinião poderia se tornar um microciclo evolutivo, desde que devidamente aproveitada para entendimento e transformação pessoal?”.
Loureiro colocou na cabeça a boina que ganhara de presente e fingiu bailar. Rimos. Depois, em resposta, apenas arqueou os lábios em doce sorriso e piscou um olho como se eu tivesse decifrado um enigma. A lição estava oferecida. Transformar aquele conhecimento em sabedoria, dali por diante, caberia tão e somente a mim.
Aquela pequena oficina era uma grande escola.
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9 comments
Gratidão!!! Amo o professor Loureiro, um sábio!!!
Gratidão! 🙏
Cirúrgico irmão das estrelas, e que saudade do meu companheiro artesão Loureiro, mas uma vez o que me resta é espressar minha mais profunda e sem fim gratidão, sem fim…
❤️🌹
Divino.
Sábio e como sempre profundo.Gratidao🙏🌻
Maravilhoso 👏👏👏
Gratidão!!! ❤️
Cabra bom na transmissão de conhecimentos e vivência!!