TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Nono limiar – Tudo que é sólido se desmancha com o tempo)

POEMA NOVE – TUDO QUE É SÓLIDO SE DESMANCHA NO TEMPO.

Pela janela pude me dar conta de estar em uma torre alta, de onde era possível avistar uma cidade que não envelhece nem perde o encanto. A Veneza de séculos atrás não difere daquela que nos acolhe hoje. No passado, ficou conhecida como um importante entreposto comercial, causa de muita riqueza e também por abrigar a razão dos que ousavam a pensar além dos cânones religiosos e científicos em uma época de enredos interesseiros e repressores. “A liberdade é para quem está disposto a correr os riscos das escolhas e das diferenças, em viver de modo coerente com a verdade no limite que já consegue alcançá-la e, talvez, arcar com o repúdio provocado por tamanha ousadia”. A voz era de alguém que estava atrás de mim. Ao virar, me dei conta que o cômodo onde estávamos na torre, embora espaçoso, era circular. Sentado à janela, um homem cujo rosto estava protegido por um capuz, sem desviar o olhar da bonita vista proporcionada pela requintada arquitetura veneziana, prosseguiu: “A verdade, assim como o universo, possui infinitas janelas. A verdade, assim como o universo, não admite muros”.

A verdade estava de volta à viagem. Ele prosseguiu: “Como algo que não tem fim, borda, lado ou margem, poderia ter um centro?”. Apontou com o queixo uma das janelas que havia no cômodo e pediu que eu observasse a cidade a partir daquele ponto. Obedeci. Depois, que a olhasse de cada uma das várias janelas que havia na torre. Ele esperou em silêncio e ao final do percurso, comentou: “De cada janela você viu algum detalhe da cidade que não conseguiu avistar de outra, certo?”. Anuí com a cabeça e ele esclareceu: “Foram vistas diferentes cidades embora seja apenas uma. Veneza possui um sem números de janelas, o que a torna peculiar para o olhar de cada pessoa”. 

Fez uma pausa breve antes acrescentar: “O universo e a verdade mudam de acordo com a ótica do observador. Isto afeta a realidade de acordo com quem olha e de onde está posicionado. Em cada prisma encontramos apenas uma fatia da verdade, embora os tolos acreditem a possuir por inteiro. Acreditam reter consigo aquilo que, por ser incomensurável, transborda ao entendimento e não cabe em suas caixas mentais de estreitas dimensões. Há que se ter humildade para que haja um bom relacionamento com a verdade, por vezes amargas. Noutras, ainda não estamos preparados para lidar com ela. Entretanto, por mais que a renegamos, seja por contrariar interesses e desejos, seja por não suportamos a imagem refletida em seu espelho, não há como construir a genuína liberdade sem usar a verdade como pilar central da obra”. 

Deu de ombros como se dissesse o inevitável e falou: “Diferente não é com o universo. Ao conhecê-lo com o recurso dos olhos, ainda que auxiliado por lentes e telescópios, teremos acesso a uma pequena fração do infinito”. Arqueou os lábios em sorriso, como se as próprias ideias fossem a razão do seu encantamento, e disse: “Não pode haver centro onde não existe fim. Somente os tolos podem crer que a Terra seja o miolo de uma fruta sem casca. Olhar o mar a partir da praia não concede a ninguém o conhecimento sobre os mistérios do oceano. Indivíduos orgulhosos e vaidosos jamais admitirão os quão pequenos e limitados são. Não compreendem que a ignorância é um cárcere de eleição; ou seja, o prisioneiro é quem o escolhe para si”. 

Ponderei que ninguém é detentor de todo o conhecimento. O homem me explicou: “Há uma diferença entre o desconhecimento e a ignorância. Saber que não sei é desconhecimento; fato saudável e aspecto fundamental à evolução. Não saber que não sei é ignorância; ponto onde se constrói os cárceres existenciais”.

Olhou para mim e só então puder ver o rosto acobertado pelo capuz. Ele acariciou o fino bigode, e comentou: “Por ora, aceite a relatividade de todas as coisas. A intransigência é a característica mais relevante dos ignorantes. Seja generoso com o novo, seja gentil com o desconhecido, para que sempre haja espaço e tempo disponível às maravilhas da vida. O que é mantido cheio perde a utilidade”.

Balancei a cabeça por concordar com aquelas palavras. Era um homem educado. Ele me disse: “Se pudesse, eu o levaria para passear pelas ruas dessa belíssima cidade. Muitos acreditam se tratar do centro mundo”, sorriu e argumentou: “Os que vivem em Roma pensam da mesma maneira quanto à cidade que moram”. Franziu as sobrancelhas e comentou: “Buscam pelo poder onde não existe nenhum à disposição nas prateleiras do mundo. Acreditam na força advinda do aço das espadas que, por ficarem cegas ao final de cada batalha, precisam refazer o fio para manter o corte. Esquecem que, de muito afiada, a espada quebra”. Voltou a olhar através da janela, como se a sua alma buscasse por amplidão, e comentou: “Conquistas feitas pelas espadas são vitórias vazias. Não há verdade contida fora do amor e das virtudes; não há libertação sem a presença da verdade. A vitória nunca pertence ao corpo nem está no mundo; se não há ganho à alma, a conquista foi vã. Entre os mil aspectos da verdade, esse é o primordial”.

Falei que gostaria de conhecer Veneza ao seu lado. Ele se desculpou: “Estou preso nesta torre à espera de julgamento. Fui excomungado três vezes”. Perguntei sobre qual crime era acusado: “O mais temível de todos os delitos: pensar diferente, mostrar algo onde ninguém enxerga, acreditar em si mesmo e viver de modo coerente com a própria verdade. Sou acusado de praticar um crime, embora não tenha ferido o corpo de ninguém, tampouco dilapidado o patrimônio alheio. Ousei a viver a liberdade em nuances imperdoáveis por aqueles que acreditam deter a verdade e possuir o direito de a todos dominar. Ainda que pese toda pompa e honrarias, todo ouro e tesouro, o poder dos seus exércitos e da destruição que provocam, não passam de fieis representantes da miséria humana. Nada do que possuem lhes acrescentam à alma. Muito têm, pouco são; brilho intenso, nenhuma luz”. 

Virou-se para mim e, mantendo o tom sereno da voz, esclareceu: “Em verdade, serei punido pelo atrevimento de mostrar o poder contido na simplicidade da alma desnuda de enganos; atingi a quem precisa das riquezas do mundo para disfarçar o coração em farrapos. O que precisa de enfeite não é um tesouro verdadeiro. Admitir em si mesmo tal conceito traz um desconforto insuportável. Alguém sempre será punido quando trouxer um olhar desagradável às autoridades da vez, a verdade que mostra como elas são frágeis e pequenas. Poucos se comportam com dignidade quando têm as suas mentiras reveladas”.

Comentei o fato de Veneza ter se notabilizado por seus homens ricos e poderosos, que por não temerem quaisquer reis, protegiam o livre pensamento e incentivavam as artes. O homem balançou a cabeça e afirmou: “Isso é verdade, mas também não é. Amontoar ouro e jade torna a casa vulnerável. O problema do ter é o medo de perder. A riqueza amealhada tem fatores ambíguos e contraditórios, pois o risco de ficar sem aquilo que angariou, acaba por mostrar a fragilidade contida no excesso. Ostentar riquezas e honrarias atraem a desgraça. Não raro, para se manter o ouro, perde-se a dignidade. O melhor conselho que se pode oferecer a alguém é tudo aquilo que tiveres medo de perder, não vale o esforço para ganhar. O medo é a antítese da paz”. 

Comentei que a sua tranquilidade diante da ameaça iminente, me assombrava. O homem me explicou: “Ao contrário daqueles que muito têm e a tudo podem perder, o que sou, ninguém pode me tomar, salvo com a minha permissão. Isto, jamais terão”. 

Em seguida, me contou: “Fui protegido pela vaidade de quem busca os aplausos por possuir um animal de espécie rara em seus domínios, como são os livres-pensadores e as girafas; até que me tornei um perigo desnecessário, um risco insustentável e uma presença desconfortável. Ontem eu era um troféu, como aqueles que orgulham os caçadores; então, ficava exposto para a admiração das visitas durantes as festas. Quando o meu jeito de pensar trouxe mal-estar por mostrar como eram pequeninos e frágeis aqueles que se acreditavam grandes e invencíveis, me tornei uma ameaça, como são os animais indomesticáveis”. Abriu os braços como quem revela o óbvio e acrescentou: “Em alguns salões, a verdade é mais temida do que a peste”.

Falei que a situação era revoltante. O homem me ofereceu um sorriso doce, repleto de compaixão, e esclareceu: “Somente os tolos se revoltam, lamentam ou se entristecem. Fiz o meu melhor e isto me basta. Além da imaginação de muitos, abri portas que estiveram fechadas por séculos. Daqui em diante, aqueles que estiverem prontos poderão fazer uso desse conhecimento em favor do bem comum. Concluída a obra, devemos seguir em frente. O que ficou para trás revela aquilo que não cabe na bagagem. Assim é o Caminho”.

Questionei se ele não temia a condenação, face o rigor da Inquisição. Com a voz serena, explicou: “Quem deve temer a sentença são aqueles que a proferem. O castigo do réu é leve diante da pena aplicada ao juiz injusto. Mil vezes preferível perder o corpo a ter a alma aprisionada. A autêntica liberdade pouco fala ao corpo, pois pertence à alma. Os brutos podem me atingir o corpo efêmero, jamais a minha alma livre e imortal. O corpo é um personagem; na alma, a genuína identidade. Entender isso é o passo inicial para a conquista de si mesmo; a vitória eterna. Eis outro aspecto da verdade que alicerça a liberdade”. Tornou a sorrir e piscou um olho como quem concede acesso a um mistério. 

Em seguida, entre duas janelas que permitiam avistar alguns barcos riscando os vários canais, característica marcante daquela fascinante cidade, ele fez um singelo movimento com o queixo para que eu notasse um lindo vitral multicolorido. Uma mandala cintilante me aguardava. Segui viagem.

Poema Nove

O que é mantido cheio perde a utilidade.

De muito afiada, a espada quebra.

O que precisa de enfeite não é um tesouro verdadeiro.

Amontoar ouro e jade torna a casa vulnerável.

Ostentar riquezas e honrarias atraem a desgraça.

Concluída a obra, devemos seguir em frente.Assim é o Caminho.

4 comments

Fernando dezembro 12, 2021 at 1:20 pm

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas 🌟, sem fim…

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Jéssica P. dezembro 13, 2021 at 2:20 am

Os brutos podem me atingir o corpo efêmero, jamais a minha alma livre e imortal. O corpo é um personagem; na alma, a genuína identidade. Entender isso é o passo inicial para a conquista de si mesmo; a vitória eterna. Eis outro aspecto da verdade que alicerça a liberdade”.

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Terumi dezembro 14, 2021 at 9:47 pm

Gratidão 🙏

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SCHWEITZER fevereiro 23, 2022 at 5:04 pm

“O medo é a antítese da paz”

O que dizer quando o texto ja diz tudo em menos palavras?

Cada limiar e um pequeno fragmento de verdade, a medida que vou lendo, vou apreciando a beleza do diamante de sabedorias que esta sendo formado diante de mim.

Mais que um estoria, sinto que que estou recebendo um tesouro.

Obrigado.

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