MANUSCRITOS VII

O colecionador

Era uma madrugada fria. A chuva sem trégua associada ao vento gelado de inverno fazia o curto trajeto entre a estação de trem e a oficina do Loureiro, o sapateiro amante dos livros de filosofia e dos vinhos tintos, parecer uma longa jornada polar. Atraiçoado pela mudança na direção do vento ao dobrar uma das esquinas, o guarda-chuva se quebrou. A lã do sobretudo molhado não servia como barreira ao vento capaz de transformar ossos em gelo. As ruas estreitas e sinuosas calçadas com pedras seculares, irregulares e escorregadias não me permitiam aumentar o passo. Entrar na oficina trouxe a sensação de aconchego, seja pelo calor do ambiente, seja pelo reencontro com um amigo querido. Sem demora, ele colocou o sobretudo para secar e me emprestou um casaco. Duas canecas fumegantes de café foram colocadas sobre o antigo balcão de madeira. Eu ainda tremia devido ao reflexo de um frio que não mais havia. Observador atento, Loureiro comentou: “Assim são as preocupações. Sofremos por motivos que não existem”. Perguntei a razão daquele comentário. O artesão explicou: “As palavras podem esconder sentimentos. A fisionomia, e principalmente o olhar, jamais”. Bebeu um gole de café e disse: “Algo impede a sua alegria habitual. Somente as incompreensões sobre os movimentos instáveis e aparentemente erráticos da vida têm o poder de nos furtar essa virtude essencial à felicidade”.

Argumentei que, em maior ou menor grau, todos temos problemas. Logo, todos temos preocupações. O sapateiro retrucou: “Sem dúvida, os problemas ou as dificuldades são inerentes aos dias. Ainda mais, fundamentais como método de ensino por terem a finalidade de nos conduzir para além de onde estamos. Servem de incentivo à superação na busca incessante por soluções, movimento vital ao descobrimento de dons, talentos e capacidades pessoais ainda desconhecidos”. Fez uma pausa proposital para me permitir concatenar o raciocínio e continuou: “Contudo, problemas nada têm a ver com preocupações”. Como não? Contestei surpreso pelo absurdo do argumento. Como se já esperasse a objeção, Loureiro arqueou os lábios em sorriso e explicou: “Se as preocupações furtam a alegria e sendo indissociáveis aos problemas, que são companheiros valiosos pelo aspecto evolutivo que oferecem, a alegria não passaria de uma ideia de ficção criada por poetas, romancistas e filósofos. A alegria é real, palpável e pode mesmo ser constante e ininterrupta, já que se trata de um valioso atributo conquistado por aqueles capazes de encontrar o lado bom de todas as coisas”.

Mais uma bela teoria inaplicável à prática, contestei. Falta de dinheiro, perda de emprego, enfermidades graves, separações repentinas e indesejáveis eram apenas alguns exemplos de problemas que funcionam como autênticos ladrões de alegria. Não havia nada de bom em viver momentos assim. O sapateiro franziu as sobrancelhas e aumentou o tom da seriedade da conversa: “Ninguém deseja ser assaltado por situações desagradáveis. No entanto, não se frequenta uma escola apenas para brincar. Os desafios são indispensáveis e distribuídos conforme o aprendizado pertinente a cada aluno. Tudo que nos acontece é para o nosso bem. Não do ego, mas da alma. A identidade eterna. Conheci quem mesmo com pouco dinheiro se tornou próspero ao compreender que, sob o aspecto material, o básico basta à felicidade; convivi com outras pessoas que apesar de muito dinheiro, continuaram pobres por nunca terem o suficiente para satisfazê-las.  Vi pessoas se reinventarem após perderem o emprego, indo aonde antes não imaginavam chegar; encontrei outras que nunca mais se levantaram. Vi doentes envolvidos por profundo encanto pela vida ao descobrirem o valor indescritível da própria alma após terem seus corpos comprometidos; encontrei também quem nunca tenha se conformado com aparente infortúnio. Vi indivíduos que somente conseguiram conquistar a si mesmo após a partida daqueles que consideravam o pilar central de suas vidas; encontrei muitos que jamais se conformaram com a injustiça por se acreditarem vítimas das circunstâncias. Enfim, lições semelhantes terão resultados díspares conforme a compreensão do estudante”.

Olhou-me como se pudesse transpassar a couraça com que me disfarço no mundo e questionou: “Todas as suas preocupações e aborrecimentos são dessa magnitude ou como rotina você costuma colecionar aborrecimentos derivados de situações comezinhas do cotidiano?”. Admiti que a quase totalidade das situações que furtavam a paz e desviavam o foco, a energia e o tempo necessários para os meus projetos pessoais não tinham aquelas gravidades. Indaguei o motivo da pergunta. Loureiro explicou: “Há problemas de diversos níveis. Todos são confrontos evolutivos que devem ser recebidos e enfrentados com serenidade e lucidez. A nenhum deles podemos conceder o poder de nos roubar a alegria dos dias. Em verdade, embora de início possam trazer algum impacto, há que se agradecer por cada um dos desafios propostos. Como impulsos à superação, eles existem com a finalidade de nos tornar pessoas diferentes e melhores por nos levar a descobrir a beleza, a magia e os encantos dos caminhos e lugares internos que desconhecemos”. Bebeu um gole de café e prosseguiu: “Os grandes desgastes emocionais costumam vir do acúmulo decorrente dos aborrecimentos triviais do dia a dia. Pequenas aporrinhações que se somam através da existência; tantas e tão pueris que desaparecem da memória, mas deixam resquícios de sujeira emocional que entopem a mente e poluem o coração. Trata-se de vício comportamental típico da imaturidade. Não me refiro a idade cronológica, mas ao entorpecimento da alma realizado por um ego incapaz de entender, aceitar e viver o sentido mais profundo da vida. A imaturidade está ligada ao orgulho, à vaidade, ciúme, ganância e todas as demais sombras pessoais geradoras de contrariedades, incompreensões e conflitos”. Tornou a fazer uma pausa antes de ponderar: “Refiro-me, por exemplo, aos pequenos aborrecimentos decorrentes da maneira grosseira como alguém fala conosco, quando não fazem algo do jeito como gostaríamos ou sofremos a reação inesperada por parte de uma pessoa querida, entre inúmeras outras situações corriqueiras. Enfim, geramos um conflito interno, seja tristeza ou irritação, sempre que um acontecimento escapa à esfera de previsibilidade, desejo ou daquilo que consideramos razoável”. Deu de ombros e avisou: “Todos os dias ocorrem coisas assim. Faz-se necessário entender a dimensão que possuem dentro da gente e o olhar que dispensamos a elas. Quando há maturidade, essas ocorrências são valiosos exercícios de paciência, tolerância e respeito, indispensáveis maneiras de amar. A vida fluirá com leveza e suavidade. Do contrário, nos tornamos colecionadores de aborrecimentos. As vias internas da compreensão entopem pelo excesso de sujeira e desnecessidades. Haverá lentidão e perdas. Ou mesmo estagnação. Sem deslocamentos intrínsecos não existirá movimentos extrínsecos. Somente ações de mera repetição caracterizadas pela falta de compreensão e vazia de qualquer aspecto evolutivo. A vida se torna chata e pesada”. Colocou mais um pouco de café nas canecas e concluiu: “Se tudo que nos acontece é para nosso bem, se faz necessário encontrar a porta oculta por onde conseguiremos avançar em todas as situações: ir além de quem somos, despertar virtudes adormecidas e nos tornar pessoas diferentes e melhores. Do contrário, a oportunidade restará desperdiçada e mais uma peça será acrescida à coleção de aborrecimentos”.

Questionei se não era uma atitude de autorrespeito não permitir abusos em nossas relações. O sapateiro tamborilou os dedos sobre o balcão de madeira, como fazia nas vezes que eu tentava mudar de assunto, e sorriu. Argumentei que a questão do respeito era pertinente e fundamental aos relacionamentos, causa maior das aporrinhações. Loureiro não se negou a abordar o assunto: “Relações sem respeito são abusivas. Entretanto, o respeito dialoga mais com o equilíbrio e a mansuetude interior do que com o enfrentamento viril e rude. Evite o mal com simplicidade. Diga-lhe não sem nenhuma ponderação. Sem a necessidade de qualquer conflito, afaste-se de toda conivência, sintonia e afinidade. A delicadeza é mais forte que a brutalidade. Desequilíbrios e incompreensões alheias devem permanecer do lado de fora. Ajude no que puder, ofereça uma boa palavra, mas não se perca no desatino do convencimento. Ao contrário do que se acredita, o respeito não se ergue no confronto ou no revide. Trata-se de uma atitude interna de dignidade, compreensão, amor e paz. Pouco tem a ver com a atitude dos outros. O respeito fala e traduz o modo como me desloco em mim e me movimento no mundo. Desta maneira, nada do que alguém fizer terá o poder de me atingir ou me deter. Por estar em outra frequência vibracional, os raios de sol transpassam as águas sem se molhar”.

As palavras do sapateiro reverberavam na consciência como um convite urgente à mudança. Na maior parte das horas do dia os meus pensamentos estavam aprisionados a pequenos aborrecimentos ou na projeção de problemas que nunca aconteciam. Embora eu não quisesse, essas ideias pareciam me dominar, comentei com o Loureiro. Ele pontuou: “E dominam. E continuarão enquanto não for capaz de reagir. Somos prisioneiros dos pensamentos densos e recorrentes que não conseguimos dispersar. Faz-se necessário reeducar a mente caso queira conhecer a verdadeira liberdade e tomar posse de si”. Perguntei de onde vinham esses pensamentos que tanto me chateavam. O sapateiro explicou: “Na psicosfera existem uma infinidade de campos energéticos compostos por crenças, desejos, hábitos, modelos de relação, formatos de pensar e sentir que se vinculam ao indivíduo de acordo com a sua afinidade vibracional. Por atavismo, fomos condicionados a ideias de sofrimento, disputas, subjugação e medo. Não à toa, o desespero, a ansiedade, o conflito e a depressão se tornaram companheiros tão íntimos que são aceitos como inevitáveis à vida moderna. São enfermidades tão antigas quanto a relutância ao autodescobrimento e a consequente autotransformação. A cura da alma é a genuína jornada rumo à liberdade e a paz. É indispensável mudar o olhar, os desejos, os hábitos, os prazeres, os interesses e reencontrar novas fontes de pensar e sentir. Uma autêntica reconstrução interna, sem mentiras, enganos ou disfarces. Não uma mudança de palavras, mas de atitudes, cujas raízes são o pensar e o sentir. Trocar as lentes do olhar para encontrar o lado bom de todas as situações, substituir a competição pela colaboração, ainda que seja um ato unilateral e sem parceria. Ninguém vence ninguém; cada um vence a si mesmo ou não conhecerá nenhuma vitória. Não importa o modo como os outros agem, vale o bem que você realiza. Mude a rotina, acrescente tarefas e afazeres que priorizem os prazeres da alma. Faça alguém sorrir. Todos os dias, colabore para iluminar o dia de quem está perdido na própria escuridão. Faça de uma maneira nunca tentada antes; busque em si algo que ainda não conhece. Ajude sem dominar, oriente sem influenciar, ame sem cobrar. Ofereça o melhor, aceite todos do jeito como são. Confie em você, perdoe e siga em frente. Jamais insista para que o acompanhem. Cada um caminha conforme a própria rota, ritmo e passo. Tudo que a sua mão toca irá se desmanchar na estrada do tempo. Seu é apenas o bem ou mal que fizer; se esforce para que a bagagem tenha cada vez mais daquele e menos deste. Tudo mais é menos”.  

O dia amanhecia. Loureiro decidiu comprar alguns croissants para acompanhar mais uma rodada de café. Falou para eu aguardar na oficina. Eu precisava pensar. Silêncio e quietude são fundamentais aos encontros intrapessoais. O sapateiro demorou mais do que o normal para ir buscar os pãezinhos na padaria da esquina. Ele queria que eu reavaliasse os verdadeiros fundamentos das minhas preocupações naquele momento. Se havia razões reais ou se eram inventadas por uma mente acostumada a se alimentar do próprio sofrimento. A mente se molda ao molde do pensar. Hábitos insalubres de pensar e sentir se tornam vícios. Sem darmos conta, terminamos como colecionadores de aporrinhações. A realidade se torna tensa, turva e amarga. Existe a necessidade urgente e primordial de quebrar o molde para libertar a mente e recriar o pensar.

Comentei isso quando Loureiro retornou. O sapateiro concordou e acrescentou: “Sim, o livre-pensar é bem mais do que somente pensar. É romper com o modelo obsoleto a que nos acostumamos a construir ideias e alimentar emoções. Não há definição mais adequada para a expressão regenerar, recriar ou reinventar a si mesmo”. Em seguida colocou os croissants sobre o balcão de madeira e, antes de preparar mais um bule de café, disse: “Viva pelas suas atitudes, jamais se deixe aprisionar pelo comportamento alheio”. Da pequena cozinha nos fundos da oficina, falou um pouco mais alto para que eu pudesse ouvir a sua voz: “O problema é quando não dispensamos o devido tratamento às pequenas chateações que geram sentimentos de injustiça, ingratidão ou falta de consideração. É preciso os desmanchar rapidamente. Quando estas sementes se enraízam no coração, as mágoas germinam. A coleção muda de categoria”. Eu sabia do que ele falava. O autêntico perdão é uma questão complexa enquanto não for tratada com sinceridade (para afastar os interesses do ego em favor dos valores da alma), coragem (para enfrentar os monstros do orgulho e da vaidade que se esforçarão para impedir), respeito a si (o perdão é ato de resgate da própria dignidade pelo mal que se desfaz) e, principalmente, simplicidade (para descontruir o conforto das mentiras e enganos que impedem os necessários deslocamentos internos e os consequentes movimentos externos). Fiquei quieto. O autêntico perdão é uma questão de difícil enfrentamento. O artesão voltou com o bule de café fresco, colocou sobre o balcão de madeira e fixou os olhos nos meus como se soubesse das dificuldades que eu tinha em elaborar várias experiências, algumas antigas, outras recentes, que me aprisionavam nas grades da incompreensão. Confessei ter dúvida se as pessoas que me machucaram mereciam ser perdoadas, vez que sequer mostravam arrependimento pelo que fizeram. O artesão pontuou: “Com humildade e por honestidade, faz-se indispensável admitir que todos carecemos do perdão de alguém por atos já praticados. Sem exceção. O perdão é fundamental para não ficarmos atolados às imperfeições. Tanto as nossas quanto as alheias. Um ato de amor da vida e pela vida. O perdão concede o poder da liberdade e da paz ao ofendido. Um ato de libertação e pacificação de si para si. Em nada depende do ofensor. Nem poderia. O perdão não valida ou aprova o erro, mas arrebenta as correntes que impede de seguir em frente. Todo colecionador de mágoas é um prisioneiro em si mesmo”.

Comemos os croissants sem dizer palavra. Estavam deliciosos. Tinham um gosto diferente. Um sabor de vida que se renova, típico de quando encontramos a saída do labirinto que impossibilita o encontro essencial, aquele que cada um precisa ter consigo mesmo ao compreender o que precisa fazer para se reconstruir de jeito a caminhar livre, leve e suave. Esvaziada a última caneca de café, agradeci a conversa e me despedi. Trocamos um forte abraço e parti para mais um período de estudos no mosteiro. Levava na bagagem um importante conteúdo para reflexão e o compromisso de me desfazer das minhas muitas coleções. A chuva tinha cessado, já não estava tão frio. A manhã era de sol.

3 comments

André maio 23, 2024 at 4:40 pm

Gratidão por mais essa lição que veio em meu encontro e serviu como uma luva para concatenar ideias e sentimentos que estavam em conflito dentro de mim neste momento.

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CRISTINA BOVI MATSUOKA maio 25, 2024 at 12:10 am

Amo suas histórias! Sinto falta dos áudios. Eu gosto de ouvir , assim minha imaginação fica mais livre pra criar os ambientes…

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Maangoba junho 3, 2024 at 8:09 pm

obrigado

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