MANUSCRITOS VI

O inimigo

As duas canecas fumegantes de café estavam sobre o pesado balcão de madeira da pequena oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos. Há muita alegria envolvida quando dois amigos se encontram pelo simples fato de estarem juntos; a amizade é uma poderosa irmandade cósmica. Sempre alinhado no vestir e elegante no trato pessoal, o artesão pediu desculpas por costurar uma bolsa de couro enquanto conversávamos. Eram os últimos arremates. A cliente aguardava a encomenda para aquele dia. Falei que eu era quem deveria pedir desculpas por sempre chegar sem avisar. Loureiro comentou que as verdadeiras amizades dispensam formalidades. Amigos se entendem até sem falar. A conversa estava animada. Ríamos bastante. Foi quando a nossa atenção foi desviada pelo agradável perfume que acompanhava uma bela mulher que entrara na oficina. Na faixa dos quarentas anos de idade, vestida com roupas de fino corte e uma maquiagem leve, que me pareceu mais esconder do que realçar a sua beleza, tinha os cabelos negros e sedosos, cortados na altura dos ombros, que pareciam dançar acompanhando os menores gestos do seu rosto. Um lindo rosto, de traços delicados e harmônicos, cujos olhos, também negros, demostravam o poder de quem sabe o quer para si. Nunca a tínhamos visto na charmosa cidadezinha de ruas estreitas e sinuosas, calçadas com pedras seculares, onde se localizava o atelier de Loureiro, no sopé da montanha que abrigava o mosteiro. Ela explicou que morava em uma famosa metrópole distante a cerca de três horas de trem. Em seguida, se confessou encantada com a habilidade do sapateiro. Conhecera o seu trabalho por intermédio de amigas que usavam bolsas e sapatos manufaturados pelo artesão. 

Era uma mulher de negócios, explicou. Tinha trabalhado muitos anos em uma conhecida multinacional de petróleo, na qual chegou a ocupar um cargo na diretoria regional. Recentemente havia se desligado da empresa para exercer a sua vocação de consultora e gestora de novos negócios. A sua função era de alavancar pequenas empresas, tornando-as maiores e mais lucrativas. Exemplificou com dois ou três exemplos alguns dos sucessos que já alcançara. Depois, disse estar ali para propor algo parecido ao Loureiro. Alegou se tratar de um desperdício todo aquele talento restrito a uma produção artesanal. A arte do sapateiro, aliada à experiência empresarial da bela mulher, possibilitaria que em poucos anos a marca do cáctus, como era a logomarca da pequena oficina, através de uma produção industrial e lojas franqueadas, estivesse presente nas cidades mais cosmopolitas do planeta. Alegou que, sem muita dificuldade, era capaz de angariar investidores interessados no projeto.

Embora eu não passasse de um simples expectador daquela conversa, admito que fiquei empolgadíssimo com a proposta. Para mim, não foi difícil imaginar a marca do cáctus rivalizando com as badaladas grifes de bolsas e de sapatos. Talento e criatividade não faltavam ao sapateiro. Lembrei-me que já assistira ele recusar um convite tentador, ao menos no aspecto financeiro, para se tornar o estilista de uma dessas empresas famosas. Porém, daquela vez a proposta era diferente. A bonita mulher garantiu que Loureiro teria total autonomia para a criação de todos os produtos. Era a sua marca, sob a sua própria direção criativa, se multiplicando em franquias mundo afora. Toda a parte administrativa e comercial ficaria sob a responsabilidade da bela mulher e das pessoas que trabalhavam com ela na sua consultoria. Ela foi honesta e, desde logo, deixou claro algumas condições básicas. Sim, seriam sócios; sim, os investidores também adquiriam cotas da pequena empresa para que pudesse se tornar um grande negócio; sim, haveria metas a cumprir; sim, algumas decisões não mais caberiam ao Loureiro. No entanto, os ganhos auferidos pelo sapateiro seriam infinitamente maiores, proporcionando acesso a bens exclusivos a um seleto grupo de pessoas. No mais, viver sem ter de se preocupar em correr atrás do dinheiro para pagar as contas do dia a dia é um conforto sempre desejável. Alegrei-me pelo meu amigo. Projeto e ideias perfeitas. Irrecusável.

O sapateiro ouviu a exposição da bela mulher sem a interromper. Tampouco fez qualquer pergunta. Com a serenidade e a delicadeza que lhe eram habituais, agradeceu a oferta, mas a recusou sem qualquer hesitação. Com seus modos sempre elegantes, explicou que não queria alterar a rotina que construíra para si. Gostava do estilo de vida que construíra; abria a oficina de madrugada, com as estrelas ainda altas, para cerrar as portas na hora do almoço, quando costumava encontrar com amigos e conversar por toda a tarde. A alegria na rotina que criara era fundamental à sua criatividade e a leveza da disciplina necessária a qualquer trabalho. Amava os seus dias. Isto se refletia na qualidade dos produtos que confeccionava e, por consequência, na conquista de uma clientela que, embora pequena, lhe proporcionava o suficiente para uma existência confortável. Não havia luxo, mas não faltava o essencial; e ainda sobrava um pouco para pequenas extravagâncias, como as camisas de linho e algumas breves viagens. Não ligava para carros; a sua clássica bicicleta, que quando estava trabalhando, ficava encostada no poste em frente à oficina, era tão conhecida na cidadezinha quanto as bolsas e os sapatos que produzia. Apesar das dimensões reduzidas e da simplicidade, a sua casa lhe bastava. Os seus filhos, já estavam crescidos e não mais moravam com ele. Enfim, tinha tudo o que precisava. A linda mulher se valeu de outros argumentos para demover aquela ideia do sapateiro. Projetou como seriam interessantes os dias de Loureiro depois que a marca do cáctus ganhasse o mundo. O seu talento, somente conhecido por um punhado de pessoas, seria admirado por multidões. Teria um novo e empolgante estilo de vida; garantiu que ele não sentiria saudade da atual rotina. Era uma proposta justa e interessante. Não houve jeito. Então, ela agradeceu, deixou um cartão para que ele a procurasse caso mudasse de opinião e foi embora. 

O perfume dela ficou. Com o bom aroma ficou também a sensação ruim de uma oportunidade desperdiçada. Naquela época, a agência de publicidade da qual era um dos sócios, era uma das maiores do mercado. Embora eu vivesse um excelente momento financeiro, não gostava de pensar sobre determinadas práticas utilizadas para angariar clientes e contas. Eram ideias que eu tratava de afastar pelo incômodo que me causavam. A ética na esfera empresarial não era a mesma que eu ensinava às minhas filhas. Não há como ser santo em um mundo de demônios, dizia para mim mesmo, recalcando qualquer desconforto consciencial. Não, eu não queria fazer mal a ninguém, apenas jogava nas regras do jogo, ainda que a contragosto. As regras já estavam estabelecidas quando cheguei ao mercado. Eu fazia o que todos faziam sem que ninguém se melindrasse com aquelas práticas. Eu não tornara o mundo um lugar pior para se viver; ao contrário, era um bom homem, porém, restrito às amarras do meio e da sobrevivência. Não há outra maneira, repetia para mim todas as vezes que os pensamentos me assombravam. Ao assistir àquele convite feito ao Loureiro, fiquei inconformado. A sós com o meu amigo, questionei qual problema ele tinha com o dinheiro. Expliquei que o dinheiro, assim como todas as coisas do mundo, eram apenas ferramentas de polaridade neutra. É a maneira com as usamos estabelece a sua polaridade positiva ou negativa; para construir ou destruir. Acrescentei que ele não deveria ter nenhum tipo de preconceito quanto a qualquer ferramenta, entre elas, o dinheiro, que quando bem utilizado servia para importantes construções, fossem materiais, como as pontes e prédios de concreto, fossem imateriais, como a caridade, pontes de amor e misericórdia. Loureiro concordou comigo: “Corretíssimo o raciocínio. Você tem razão quanto à análise que faz sobre o dinheiro”. Porém, fez uma ressalva: “Ao contrário do que você imagina, eu não tenho nenhum preconceito em relação ao dinheiro nem a riqueza. Serão sempre bem-vindos. Contudo, existe outra questão importante que deve conviver com as demais sem qualquer atrito”. Fez uma pausa e acrescentou: “Refiro-me as prioridades. Haverá pouca beleza em mim enquanto eu não entender e viver as minhas prioridades”. 

Perguntei ao Loureiro por qual razão ele se recusava a crescer profissionalmente. Quis saber se ele tinha algum problema em se tornar grande. O sapateiro franziu as sobrancelhas, disse não com a cabeça, e explicou: “Primeiro, ser pequeno não revela nenhum demérito; ao contrário, é preciso se entender miúdo para que um dia possa se tornar verdadeiramente graúdo; me parece mais vantajoso ser pequeno, mas dono absoluto das minhas escolhas, a ser grande, mas não ter o comando do meu próprio destino. A amargura e as delícias dos dias se molda através de cada movimento, mesmo aqueles que aparentemente não fazemos por comodidade ou fraqueza. Não existe riqueza em se viver as coisas do mundo distante dos valores da alma”. 

Em seguida, acrescentou: “No mais, depende o que você entende por ser grande. Trata-se um conceito pessoal que irá direcionar as escolhas e, porquanto, o próprio destino”. Bebeu um gole de café e disse: “Adoro a rotina que tenho. Embora simples, e talvez por isto, ela seja a estrada que percorro para a felicidade”. Sim, era inegável a alegria, o bom humor, a delicadeza e a serenidade que Loureiro transmitia no trato com toda gente. Isto autenticava as suas palavras. Nada falei, pois o sapateiro continuava a explicar: “Gosto de receber os clientes, ouvir o que precisam, aquilo que querem. Desenhar a ideia colocando aspectos da personalidade deles naquilo que irão usar; depois, a transformar em objeto de uso e satisfação pessoal. Faço arte para que esteja em movimento e tenha utilidade. Acredito ser o meu dom. Administro o tempo e os dias conforme as minhas vontades, interesses, compromissos, possibilidades e sabores. Oriento as minhas escolhas através das minhas verdades. Sou dono do meu processo de criar e de viver; sou dono do meu sim e do meu não. Entendo que preciso mudar muitas coisas, mas não necessariamente na minha rotina. Mas em mim, onde reside o meu campo de batalha. Isto sim, como consequência, poderá alterar a rotina que tenho. Sim, quero sentir que conquistei um pouco mais de mim a cada escolha que faço. Uma percepção possível quando sinto alguma virtude, que ainda não alcancei, se manifestar cada vez com mais intensidade nas minhas decisões. Para tanto, há que acalmar as horas. Todas as noites, antes de dormir, ao fazer a retrospectiva do dia, busco entender se consegui amar melhor, se desmanchei os medos que se avizinhavam, se descontruí os sofrimentos que me roubavam a paz, se consegui me manter digno com toda gente, se me libertei de ideias e emoções que me impediam de viver no expoente das minhas capacidades. Esse movimento é fundamental para compreender se caminhei na estrada do tempo, na qual avançamos através das múltiplas transformações intrínsecas. Acredito que, dessa maneira, a minha luz se tornará mais intensa, seja pela força e equilíbrio que vibram em meus pensamentos e sentimentos, seja pela leveza que me envolverá por ter afastado a aspereza em mais uma das minhas relações. Claro que tudo isso é muito pessoal, cada um tem o seu próprio jeito de fazer a vida acontecer, de ser feliz e de amar; esse é o meu. Para mim, assim me torno grande. Nada mais”. 

Falei que ele se enganava. Em análise mais sincera, Loureiro mentia para si mesmo ao se negar a um desafio que seria angular em sua existência. Recordei da outra ocasião na qual ele também recusara uma oferta de crescimento profissional. Falei que ele tinha medo de crescer. O sapateiro arqueou os lábios em doce sorriso e disse: “Fui honesto contigo ao oferecer os fundamentos da minha escolha”. Insisti que ele cometia um erro ao fugir da vida. Loureiro maneou a cabeça e, sem perder a delicadeza que lhe era característica, disse com firmeza: “Respeito o seu olhar, amigo. No entanto, jamais a certeza de alguém terá o poder de bagunçar a minha verdade. Minha vida, minhas escolhas, meu poder”.

Fiquei irritadíssimo com o que eu considerava falta de maleabilidade e de sensibilidade para as inevitáveis mudanças da existência. Porém, nada mais falei. Como estava no horário do meu embarque, agradeci a conversa e o café, me despedi e fui para a estação ferroviária. Levei na bagagem uma estranha amargura.

Como ainda faltavam alguns minutos para a chegada do trem, acomodei-me em banco próximo à plataforma de embarque. Estava observando o movimento da estação, quando reparei em uma cigana, vestida com trajes típicos, se oferecendo para ler a mão das pessoas. Embora nunca tenha sido determinante em minhas decisões, sempre senti um encanto irresistível por oráculos de todos os tipos. Quando ela se aproximou, de imediato estendi a palma da mão para que ela fizesse a leitura. A cigana me surpreendeu: “Não preciso olhar para a sua mão. A cor da sua aura narra o principal. Você está dominado pela inveja. Por isto, a irritação”.

Apesar de surpreendido, falei que ela estava enganada. A inveja era uma sombra há muito superada em mim. A cigana disse: “Nada agrada mais uma sombra do que a nossa ignorância em relação ela”. Falei que era absurdo o discurso de que eu desconhecia o significado da inveja; todos sabiam do que se tratava. No mais, era inconcebível que fosse incapaz de identificá-la em mim; eu me conhecia muito bem. Ela explicou com o seu jeito peculiar de se expressar: “Desconhecer é diferente de ignorar. Desconheço aquilo que sei não saber. Ignorância é diferente, ela me domina todas as vezes que eu não souber que não sei. Enquanto for imperceptível, não sentirei a necessidade de me libertar. Por isto, a ignorância será sempre uma prisão cruel”.

Admiti que estava irritado. Mas era por uma sandice de um amigo que eu muito admirava. Não havia qualquer inveja quanto ao Loureiro, eu nutria por ele sincera admiração por seu talento. Inveja eu teria se eu quisesse para mim a vida dele. Acrescentei que eu vivia um momento financeiro muito confortável, além de ter meu talento reconhecido através de alguns prêmios internacionais que a agência havia angariado. Isto me concedia acesso a vantagens e privilégios que eu gostaria que ele também usufruísse, pois não lhe faltavam talento e capacidade. Contudo, ele se recusava às oportunidades que a vida lhe oferecia através daquele desafio. Eu apenas desejava o melhor do mundo para ele. Por todos esses motivos, eu não precisava ter inveja do meu amigo sapateiro. A cigana me ensinou: “Cada qual tem os seus próprios desafios, pois a evolução é personalíssima; ninguém a faz por ninguém. O seu desafio é saber ser o mesmo homem com ou sem dinheiro. Uma prova muito difícil, que eu tenho dúvida se conseguirá superar. A maioria sucumbe nessa batalha, por se tornarem escravos quando deveriam ser senhores”.

Pedi para ela explicar melhor. A cigana disse: “O seu amigo não despreza as coisas boas do mundo, tampouco deprecia o dinheiro. No entanto, é senhor de si, não escravo das regras do mundo. Para ele, dinheiro é ferramenta, jamais a obra. Se servir para colaborar na obra, o dinheiro será bem-vindo; se atrasá-la, será deixado de lado”. Indaguei se ela se referia a obra de si mesmo. A mulher fez sim com a cabeça. Sem que eu nada perguntasse, ela me respondeu: “Embora saiba disso, você ainda não consegue. Se ele fizesse escolhas parecidas com as suas, você acreditaria justificada algumas das suas próprias decisões que tanto o incomodam nos porões da alma. A sua inveja não se refere à fortuna ou fama possíveis ao seu amigo, pois você já as têm, mas à tranquilidade aliada à firmeza com as quais ele faz as escolhas e percorre o Caminho. Apesar de tudo que sabe, você ainda não consegue; isso o incomoda. Daí a inveja”.

Insisti que ela estava enganada. Eu reconhecia também esse talento em Loureiro e, por isto, o admirava. Sim, não era inveja, tinha admiração por ele ter alcançado tal conquista. A cigana me ensinou: “O inimigo mais perigoso é aquele que acreditamos não existir. Se fosse admiração, você teria se alegrado com a escolha que ele fez. A inveja por não ser capaz de fazer o mesmo, trouxe a irritação”.

O apito do trem abafou a conversa. A porta do vagão se abriu à minha frente. Os olhos da cigana me observavam com doce compaixão. Não consegui me levantar. Não por acaso, vi a bela mulher, a mesma que mais cedo estivera na oficina, entrar e se acomodar em umas das poltronas. Outro apito, as portas se fecharam e o trem seguiu. A cigana sorriu. Sem dizer palavra, girou nos calcanhares e foi embora. Peguei a mala e tentei acompanhá-la. Eu tinha muitas perguntas a fazer. Ágil, ela se esgueirou por entre as muitas pessoas que estavam na estação e desapareceu. Desconcertado, tornei a me sentar. Perdi a conta dos trens que chegaram e partiram. Algo em mim precisava ser desconstruído. Sem noção de quanto tempo se passara, me levantei para ir ao encontro do Loureiro. Era preciso reconstruir a nossa última conversa. Eu sabia que ele me aguardava. Os amigos sempre sabem.

4 comments

Terumi junho 23, 2021 at 9:04 pm

Gratidão 🙏

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Claudia junho 24, 2021 at 12:36 pm

ES-PE-TA-CU-LAR 👏👏👏👏👏

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L.MOON junho 24, 2021 at 6:25 pm

Gratidão gratidão gratidão!!!!!

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Fernando julho 22, 2021 at 10:37 am

Gratidão profunda e sem fim, não por acaso tinha pulado esse sem ver, e li hoje no momento exato….gratidão irmão amado, gratidão

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